Reportagem

25 de Abril de 1974: O dia em que os “ventos da história” reforçaram o movimento descolonizador

Santos Vilola

Jornalista

Faz hoje 47 anos desde que foi desmantelado, em Portugal, o regime fascista de quatro décadas (1928-1974) que a si próprio se intitulou de “Estado Novo”. Partilhamos, nesta edição, memórias individuais de dois académicos sobre a data. Onofre dos Santos e Alfredo Miguel são os rostos de duas realidades diferentes vividas exactamente no dia da queda do regime que viu, inicialmente, António de Oliveira Salazar “reinar” de forma ditatorial de 1932 a 1968. Onofre dos Santos, na altura juiz substituto no Tribunal de Menores e de Execução de Penas, em Luanda, considerou que sempre sentiu que, desde os primeiros anos da década de 1970, estava em marcha uma mudança radical da política ultramarina, enquanto, as memórias de Alfredo Miguel sobre o 25 de Abril de 1974 remetem-no ao Cazenga, em Luanda, onde já fazia parte de um núcleo de jovens revolucionários que zelava pela segurança do bairro e recorda a agressão a comerciantes brancos e vandalização de lojas em zonas urbanas, em Luanda.

25/04/2021  Última atualização 08H20
Onofre dos Santos e Alfredo Miguel © Fotografia por: DR
Estava no meio de uma conferência de conciliação de pais desavindos com problemas de sustentação dos filhos, em Luanda, no Tribunal de Menores e de Execução de Penas, quando foi avisado por Mateus Van-Dúnem sobre a revolução, em Lisboa, que iria bruscamente mudar o destino da então província de Angola.

Nas memórias do 25 de Abril de 1974, Onofre dos Santos, 34 anos, lembra que foi o então escrivão do tribunal, Mateus Van-Dúnem, pai da actual ministra da Justiça de Portugal, Francisca Van-Dúnem, e de João Van-Dúnem, quem lhe deu conta da notícia das primeiras manifestações pela liberdade na capital portuguesa.

"Recordo-me que achei mais importante decidir a qual dos progenitores eu devia entregar as crianças do que sair a correr da sala do tribunal para ouvir as notícias”, lembra Onofre dos Santos, na altura juiz substituto do Tribunal de Menores e de Execução de Penas.

Onofre dos Santos lembra que era então juiz substituto porque não era magistrado judicial e continuava a advogar (desde 1967), embora só o pudesse fazer nos outros tribunais. Hoje, magistrado jubilado, recorda que, depois dos Acordos de Alvor (15 Janeiro 1975), recebeu no tribunal a visita oficial do ministro da Justiça do Governo de Transição, Diógenes Boavida, seu colega de advocacia no início da actividade profissional. "Nessa altura eu estava inteiramente confiado que a minha vida profissional continuaria como dantes, mas sentindo uma maior proximidade entre governantes e governados.

Professor de Noções Básicas de Direito num curso de assistentes sociais do Instituto Pio XII, além de advogado, Onofre dos Santos lembra ter transmitido, numa das suas aulas, as alterações legais introduzidas por Marcelo Caetano, que assumiu o cargo de presidente do Conselho de Ministros, ainda antes da morte de António de Oliveira Salazar.   

Onofre dos Santos considera que sempre sentiu que, "desde os primeiros anos da década de 1970, estava em marcha uma mudança radical da política ultramarina, sendo os dois principais sinais o facto de Angola e Moçambique deixarem de ser províncias ultramarinas, mas Estados, com órgãos de governo próprio.”

"Até aí, a expressão legal usada era a de órgãos próprios de governo. A nova expressão tinha um alcance diferente e, isso, era evidente pela sua tradução para inglês como órgãos de 'self-government'”, lembra Onofre dos Santos. Reza a história que o projecto ultramarino do Estado novo  implicava que Portugal se mantivesse nos territórios coloniais a todo o custo, mas essa política de resistência ao movimento descolonizador acabou por se revelar desastrosa para aquele país e para o regime.

A hostilidade ao Governo de Lisboa intensificou-se entre 1956 e 1960, à medida que novos países africanos integraram a Organização das Nações Unidas, que se convertera em "porta-voz do Terceiro Mundo”.
Um ciclo de incidentes desemboca em Angola, em 1961, com o início da guerrilha. Estes acontecimentos, em Março de 1961, com a revolta da Baixa de Cassanje, demonstram que Portugal não ficaria imune aos "ventos da história”.

Onofre dos Santos lembra que estas soluções legais revelavam uma progressiva autonomia política que seria imparável até à Independência de Angola.  "Não havia uma previsão cronológica, mas era evidente que Marcelo Caetano tinha uma noção de evolução histórica que seria convergente com as recomendações das Nações Unidas”, refere o jurista, acrescentando que era uma questão de tempo e de conversações a vários níveis, sendo fundamental criar as condições para a escolha dos futuros governantes. O 25 de Abril, segundo Onofre dos Santos, interrompeu essa evolução, "porque foi uma revolução e essa revolução contaminou igualmente o processo de descolonização.”

De quem lhe deu a notícia sobre o início da revolução, Onofre dos Santos lembra que, sem a ajuda de Mateus Van-Dúnem teria muitas dificuldades em conseguir realizar um trabalho.
"Praticamente todos os dias agendávamos uma dezena de conferências de conciliação de pais desavindos com problemas de sustentação dos filhos”, lembra.


A dimensão da conquista em Angola
Um dos objectivos daquela que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos era a "descolonização rápida e pronta a usar”, na medida em que a independência dos vários domínios portugueses em África já deveria ter acontecido há muito tempo, considerou Onofre dos Santos.
O académico refere que a existência, porém, de três Movimentos de Libertação em Angola "não facilitava a vida aos novos governantes revolucionários em Portugal.”

Ao contrário dos demais antigos domínios coloniais, não havia em Angola apenas um interlocutor legítimo a quem transmitir o poder, segundo Onofre dos Santos. "Consequentemente, o que se negociou com os três Movimentos foi um processo electivo em que estes participariam antes de 11 de Novembro de 1975, mas tal solução eleitoral não era realista”, justificou.
Onofre dos Santos lembrou ainda que, depois dos Acordos de Alvor, ainda recebeu, no Tribunal de Menores e de Execução de Penas, a visita oficial do ministro da Justiça do Governo de Transição, Diógenes Boavida, que tinha sido seu colega de advocacia.

"Nessa altura, eu estava inteiramente confiado que a minha vida profissional continuaria como dantes, mas sentindo uma maior proximidade entre governantes e governados”, recorda.
Nem Portugal conseguiu fazer as suas primeiras eleições antes de decorridos dois anos desde a revolução, considera Onofre dos Santos. "Anos depois, em 1991, e numa situação mais consolidada da Independência Nacional, os Acordos de Bicesse previram 18 meses para registar os eleitores e realizar as eleições”, sustenta o jurista, que foi o primeiro director-geral das primeiras eleições em Angola, em 1992.

"Se Portugal podia viver sem eleições em plena euforia popular, Angola também poderia seguir-lhe o exemplo. A Lei Constitucional, de 11 de Novembro de 1975, iria precisamente optar pela legitimidade revolucionária. Foi um período, deveras, extraordinário da nossa História que merece muito estudo e investigação, e que tenho a certeza um dia será ensinado nas nossas universidades”, reforça.

Onofre dos Santos nasceu em Angola e viveu o período de transição de um país colonial para o país independente que hoje é. Sobre essa experiência, escreveu o livro Os (Meus) Dias da Independência. Em 1992, desempenhou o cargo de director-geral das Eleições. Em sequência, publicou "Eleições Angolanas 1992 – Uma Lição para o Futuro e Eleições em Tempo de Cólera”, reunindo crónicas semanais escritas a partir dos países onde trabalhou na organização de processos eleitorais. Publicou ainda livros de contos e de histórias curtas, como "O Conto da Sereia”, "O Astrónomo de Herodes”, "O Gosto Amargo do Quinino”, "Memórias de Um Dark Horse” e o romance histórico "Descompasso – Angola 1962”. Actualmente, é juiz - conselheiro jubilado do Tribunal Constitucional.


Os eventos da data
A Revolução de 25 de Abril, também conhecida como Revolução dos Cravos ou Revolução de Abril, é um evento da história de Portugal resultante do movimento político e social, ocorrido a 25 de abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático e com a entrada em vigor da nova Constituição, a 25 de Abril de 1976, marcada por forte orientação socialista.
Esta acção foi liderada por um movimento militar, o Movimento das Forças Armadas (MFA), composto na sua maior parte por capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que tiveram o apoio de oficiais milicianos.

Este movimento surgiu por volta de 1973, baseando-se inicialmente em reivindicações corporativistas como a luta pelo prestígio das forças armadas, acabando por atingir o regime político em vigor. Com reduzido poderio militar e com uma adesão em massa da população ao movimento, a reacção do regime foi praticamente inexistente e infrutífera, registando-se apenas quatro civis mortos e quarenta e cinco feridos em Lisboa, atingidos pelas balas da DGS.
O movimento confiou a direção do país à Junta de Salvação Nacional, que assumiu os poderes dos órgãos do Estado. A 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado Presidente da República.

O cargo de primeiro-ministro seria atribuído a Adelino da Palma Carlos. Seguiu-se um período de grande agitação social, política e militar conhecido como PREC (Processo Revolucionário Em Curso), marcado por manifestações, ocupações, governos provisórios, nacionalizações e confrontos militares que terminaram em 25 de Novembro de 1975. Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova Constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República. Na sequência destes eventos, foi instituído em Portugal um feriado nacional no dia 25 de Abril, denominado como "Dia da Liberdade”.


"A euforia da revolução fez com que várias pessoas
atacassem comerciantes brancos e vandalizassem lojas”

As memórias de Alfredo Miguel sobre o 25 de Abril de 1974 remetem-no ao Cazenga, em Luanda, onde já fazia parte de um núcleo de jovens revolucionários que zelava pela segurança do bairro.
No dia 25 de Abril de 1974, Alfredo Miguel tinha 19 anos e já fazia parte de um grupo organizado de jovens do Cazenga (zona do Império) orientados por Pedro Bonifácio, que já vivia a luta de libertação nacional na clandestinidade.

Docente universitário hoje, Alfredo Miguel lembra que o núcleo de jovens tinha como uma das missões preparar uma resposta aos desafios colocados pelo 25 de Abril. O Cazenga, recorda, já era uma "montanha” de jovens revolucionários quando eclodiu a "Revolução dos Cravos”.
"Era, então, preciso estarmos preparados para receber os compatriotas que iriam sair das matas e dos vários países africanos em que estavam exilados, para entrarem em Angola, tal como foi com o MPLA, UNITA e FNLA que constituíram o suporte do poder político da altura”, refere o professor de Direito no Instituto Superior Politécnico Metropolitano de Angola (IMETRO).

Mestre pela Universidade Técnica de Lisboa, Alfredo Miguel lembra que o núcleo passou a ter funções de assegurar o bairro, porque, no Cazenga, já havia roubos e assaltos. "Com o 25 de Abril, o núcleo passou a assumir a responsabilidade de, por um lado, defender o bairro, e, por outro lado, manifestar regozijo pelo que se traduziu politicamente o 25 de Abril para nós angolanos”, sustenta.
Na altura, o 25 de Abril teve como uma das repercussões o facto de ter sido uma gesta política da "Revolução dos Cravos”, em Portugal, e que iria acabar com a guerra que os portugueses impunham para manter o sistema colonial em Angola e impedir uma luta pela independência e liberdade dos angolanos, quando em Portugal havia também um sistema de ditadura. Outro desafio colocado aos angolanos, segundo o académico, era a preparação, aqui no país, para interpretar o que significava o 25 de Abril para Angola.

O académico, que esteve na fundação da Direcção Nacional para o Ensino Superior antes da criação da Secretaria de Estado do Ensino Superior, que foi absorvida pelo Ministério do Ensino Superior, lembrou que, em alguns momentos, depois do anúncio da revolução, várias pessoas atacaram comerciantes brancos e vandalizaram lojas. "Eu vi isso. Vivia exactamente perto do Matopá, na fronteira com o bairro Marcelo Caetano, onde viviam muitos brancos”, recorda.

Em relação à dimensão da data para a auto-determinação dos povos em Angola, o académico lembrou, de uma forma geral, que os portugueses estavam cansados e precisavam de encontrar uma saída. "A Revolução dos Cravos foi politicamente importante porque veio reforçar a luta pelo que temos hoje: Independência Nacional, não só em Angola como nos países de expressão portuguesa”, sustentou o professor de Introdução ao Estudo do Direito, História do Direito, Direito Internacional Público e de Políticas Públicas e Gestão Governativa.

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