Opinião

A decadência da verdade?

Jacques dos Santos

Escritor

Francisco Sarsfield Cabral, conceituado jornalista português especializado em assuntos políticos e económicos, pronunciou-se há dias sobre os problemas do Jornalismo a nível mundial.

17/01/2021  Última atualização 10H37
Com o conhecimento que lhe confere uma longa carreira recheada de experiência, referiu, entre várias questões, que a comunicação social atravessa uma fase difícil e de futuro incerto. No conjunto de várias considerações, consta a afirmação de que nas últimas décadas tornou-se visível uma decadência deontológica na comunicação social. Percorrendo vários caminhos e fazendo uma incursão que o transportou até ao chamado jornalismo tablóide, passando por travessas que o levaram às estações de televisão e aos seus conteúdos, teve tempo para considerar alguns deles como degradantes, e fazer conjecturas sobre a passividade do telespectador que é obrigado a consumir aquilo que não gosta.

Não foi parco em adjectivos quando teve que utilizar nome adequado para classificar o sensacionalismo, a publicidade enganosa e manipuladora. Abordou ainda a questão dos cidadãos que não sendo jornalistas, filmam nos seus telemóveis e fazem notícias e, principalmente, quando, segundo ele, se dá prioridade ao chocante, ao escândalo, ao sangue e à tragédia como espectáculo.

Referiu-se também aos blogues anónimos que insultam as pessoas e falseiam a verdade mas, apesar de todas as contrariedades, manifesta a sua convicção de que o jornalismo consciente e a figura do jornalista íntegro e capacitado, jamais desaparecerá de cena. Um texto daquela dimensão e qualidade é sempre difícil de ser comentado correcta e integralmente e por isso fiquei com a ideia de que se referiu pouco à rádio, embora não tenha nunca posto em causa a importância desse meio na comunicação social.

Aproveitando o tema, falando de rádio e de nós, que é sempre o que me interessa mais, devo dizer que fui seguidor fervoroso da Rádio Cinco, o canal da Rádio Nacional de Angola que trata exclusivamente o desporto. Amante assumido da grande maioria das modalidades desportivas que se disputam, excepção feita ao rugby e ao golfe – já manifestei a minha aversão a essas modalidades nesta coluna –, às quais adiciono o boxe e o automobilismo, estes pela perigosidade que representam a cada momento do espectáculo que proporcionam. Dediquei, pela minha paixão ao desporto, muito do meu tempo disponível à Rádio Cinco. Lembro-me de programas e rubricas assinadas pelo Vaz Quinguri, pelo Arlindo Leitão, pelo Nando Jordão, pelo Arlindo Macedo e por vários outros que dominavam modalidades específicas como o rei futebol, o andebol, o basquetebol, o atletismo, na verdade um vasta equipa de especialistas que nos punha a par do que se passava em matéria de desporto, no país e no estrangeiro.

Na LAC, desde sempre se deu espaço ao desporto e não esqueço os programas elaborados e conduzidos, muito bons de acompanhar, sob a  batuta do Mateus Gonçalves que era secundado pelo Manecas Leitão, pelo José Cunha e pelo João Armando, estes e, claro, os demais que completavam os painéis de discussão e dos quais não lembro nomes mas recordo rostos e vozes. É evidente que não perdia a hora do noticiário que era repartido entre o da RNA e o da LAC. As notícias de âmbito geral e o desporto na televisão era também um forte factor de indecisão na escolha concorrente das minhas preferências na comunicação social onde, em momentos precisos, apareciam no pequeno ecrã os rostos dos que na rádio apenas conhecia as vozes.

As minhas viagens e as permanências fora do país, mas não apenas isso, também algum desencanto pela retórica banal, afastaram-me, por razões óbvias, dos programas radiofónicos e, hoje não consigo opinar sobre a qualidade radiofónica desportiva em Angola, por virtude do que atrás fica explicado. Não foi também e apenas a profundidade do texto de Francisco Sarsfield Cabral que me sugeriu este longo intróito. Limito-me a dar seguimento ao meu comprometimento de trazer novamente à vida e ao mesmo órgão que a viu nascer, esta coluna iniciada há mais de trinta anos no Jornal de Angola. Fazer crítica social, estar sempre próximo da verdade e banir a mentira é o meu propósito. Colocar dúvidas também faz parte dele e recordar quer o bom como o mau na nossa terra, também integra o cardápio.

Sem querer fazer uma abordagem "científica” a questões deontológicas no jornalismo angolano, mormente o generalista, e aproveitando o melhor possível a dica relativa à decadência, sempre direi que, lembrando tempos que não são tão distantes assim, e particularizando o desporto e a Rádio Cinco, fontes de inspiração para esta crónica, ouvi durante muitas semanas e meses num programa que se fazia – não sei se ainda se faz – e que, aos sábados, reunia mais velhos, algumas glórias do passado, para cavaqueiras com os comes e bebes do costume. Revisitando lembranças, muitas vezes pensei neste termo.

Decadência. Sobretudo decadência da verdade. Se algumas dessas reuniões tinham interesse desportivo e até histórico, outras havia que eram autênticos compêndios de disparates, a fazer lembrar um célebre programa de rádio de "Os Parodiantes de Lisboa” que, no tempo antigo, ridicularizava o dia-a-dia de Portugal e das suas colónias. Não podia deixar de pensar nisso quando no meio desses caldos de sábado eu ouvia dizer, entre várias incongruências, que o Praia, habilidoso jogador do Progresso do Sambizanga, era melhor que Franz Beckenbauer e que um alto dirigente na altura em que jogava futebol, tinha um remate tão forte que um dia, na sequência da marcação de um livre directo, o dito cujo, bateu a bola com tal força e velocidade que, ultrapassando o muro do velho Campo de São Paulo, foi atingir em cheio, na rua, um pobre porco que passava, matando imediatamente o coitado do animal. Simples brincadeira, bajulação descarada, ou a decadência da verdade na rádio?
Fico-me por aqui. Até para a semana, como sempre, à hora do matabicho.

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