Opinião

A emergência do protonacionalismo em Angola

Filipe Zau |*

Músico e Compositor

Antes da I República em Portugal (1910-1926) e após as independências do Haiti (1804) e da Libéria (1847), Luanda e Benguela passaram de portos negreiros a centros de tertúlia, onde se defendiam, publicamente, os ideais da Revolução Francesa e se manifestava o desejo de obtenção de uma autonomia política, com recurso à actividade jornalística e literária. No dizer de Mário de Andrade, foi “a génese do escrito protestatário” com “correntes de formação de uma consciência nativista – a dos “filhos do País”.

26/05/2021  Última atualização 06H05
Passados 60 anos após a independência do Brasil (7 de Setembro de 1822), José Fontes Pereira, um dos mais esclarecidos jornalistas angolenses, num artigo intitulado "A república a crear raízes em Angola», publicado no nº 36 do jornal Pharol do Povo, de 27 de Outubro de 1883, noticiava assim o primeiro grito de independência: "Benguela abraçou com grande entusiasmo aquella ideia, e quando se proclamou a independência do Brazil, o grande povo d’aquella cidade secundou aquele estado de coisas, tendo hasteado a bandeira do café e tabaco na fortaleza de S. Filipe. Dirigiu esse movimento o tenente-coronel Francisco Pereira Diniz, homem preto, natural de Benguela que comandava as companhias de linha d’aquella capitania”. O nativismo exprimia o sentimento colectivo de ser portador de valores próprios, o referente de identificação e confluência de aspirações a uma autonomia e futura independência, pelo que, os escritores "angolenses” ou "filhos do País” passaram a considerar a portugalização como uma ameaça à sua identidade e ao seu desenvolvimento económico, social e cultural. 

Contudo, de acordo com Pepetela, a mesma tinha uma posição algo equívoca, que, por vezes, deixava transparecer nos seus escritos. Denunciava com veemência as discriminações e o racismo coloniais e defendia as mesmas oportunidades para todas as "raças”; acusava a administração colonial de pouco fazer pelo desenvolvimento da colónia e pela educação das populações; batia-se pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade; censurava violentamente a corrupção existente nas altas esferas do poder e colocava-se em posição de quase advogar a independência da colónia. Porém, essa mesma elite chegava a aplaudir as campanhas do exército colonial contra os chefes tradicionais que se iam revoltando; encorajava a ocupação militar dos reinos do interior, que, Portugal, no quadro da Conferência de Berlim para a partilha de África, deveria submeter pela força para legitimar a sua posse… 

Para a elite urbana dos finais do século XIX, as populações do interior eram consideradas bárbaras e ignorantes. Com esta opinião formada, não sentia, aquela elite, qualquer repugnância na submissão e integração das populações do interior através da força das armas, já que tal era entendido como forma de as mesmas poderem "receber as luzes da civilização e da Fé católica”. Como republicanos e democratas virados para si próprios, não tinham conseguido ainda estender os valores republicanos e democráticos para benefício de todos os angolanos. Na essência, estas grandes famílias guardavam na memória os sinais de esplendor da sua origem, provenientes, essencialmente, do tráfico de escravos, que se fazia em detrimento das populações do interior e que envolvia brancos, negros e mestiços pertencentes àquela mesma camada social urbana ou classe média africana, na colónia de Angola. 

Com a abolição do tráfico de escravos (1836) e com a vaga de novos colonos inseridos na chamada política de povoamento, surgiram novos impostos, que, para além de serem muito pesados e injustos, recaíam sobretudo sobre a população local. A classe média urbana africana passou então a enfrentar um violento processo de concorrência, chegando a haver, em 1881, uma Petição de 70 chefes de família de Luanda à Fazenda Pública, protestando contra o aumento dos impostos. Consequentemente, as populações do interior passaram a reclamar contra o poder despótico das oligarquias biológica e culturalmente mestiças mais poderosas de Luanda e Benguela. Talvez este possa ser um indicador de estudo para a explicação das divisões no seio do moderno nacionalismo angolano, com repercussões, que ainda hoje se sentem (?!).

Enquanto beneficiaram de uma política de liberdade cambial e de crédito, os comerciantes iam tendo su-cesso nos seus negócios, conseguindo levar as caravanas ao interior através da utilização dos antigos circuitos de captura e transporte de escravos para o litoral. Mas, a rentabilidade desse comércio dependia da importação de bens industriais (tecidos, armas, etc.), que seriam posteriormente trocados por outros produtos, tais como: a borracha, o café, ou a jinguba. Porém, os interesses da indústria metropolitana forçaram uma revisão pautal em sentido contrário. Nesta conformidade, o ministro Oliveira Martins promulgou, em Janeiro de 1892, uma pauta aduaneira, que, para proteger a indústria têxtil algodoeira, agravava fortemente os impostos sobre os têxteis ingleses. Os comerciantes estabelecidos em Luanda e Benguela sentiram-se fortemente lesados porque os têxteis, em muitas regiões, constituíam uma das bases de troca por produtos locais. 

A partir de 1900, os conflitos com a administração colonial agudizaram-se devido à crise do comércio da borracha, que fez diminuir grande parte da procura de têxteis metropolitanos em Angola. Os conflitos comerciais e o bloqueio metropolitano aos capitais industriais em Angola começaram por opor facções da burguesia da metrópole e da burguesia do litoral e do sertão angolano. Os conflitos aumentaram com o estabelecimento de grandes investimentos estrangeiros, que levaram à criação de refinarias, conservas de peixe e outros estabelecimentos industriais em Angola, como foram os casos da CUF e da DIAMANG. 

Em 1901, é publicada, em Lisboa, uma colectânea de vários autores, intitulada "A Voz de Angola Clamando no Deserto", que passava a constituir a afirmação de uma consciência "nativista”, que criticava a chamada "Acção Civilizadora de Portugal em África” e que reclamava por uma participação na condução do poder político nas colónias. No fundo é esta elite protonacionalista, surgida da camada social urbana de finais de século XIX, que passou a ser considerada como estando na génese do moderno nacionalismo angolano.
* Ph. D em Ciências de Educação e Mestre em Relações Interculturais

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