Opinião

A independência orçamental das Autarquias Locais: o ajuste pontual na revisão da CRA

O Parlamento aprovou, recentemente, na generalidade a Proposta de Lei de Revisão Constitucional, proposta pelo Presidente da República que, no geral, prevê o ajuste de 40 artigos da nossa lei fundamental.

29/03/2021  Última atualização 14H05
Dentre as alterações propostas pelo Chefe de Estado, chama-nos particular atenção o ajuste pontual ao artigo 104º (Orçamento Geral do Estado), com a introdução de uma nova redacção aos números 2 e 3. Desta possível alteração resultam consequências várias, desde logo, o Orçamento Geral do Estado (OGE) deixará de comportar os orçamentos das futuras Autarquias Locais, isto é, retira-se a imposição constitucional de o OGE incluir os orçamentos das autarquias locais.

A nova proposta de redacção constitucional tem particular relevo, pois representa a reafirmação da garantia de autonomia financeira das autarquias locais (artigos 214º e 217º CRA), visto que, para que estas possam no futuro satisfazer as necessidades das respectivas populações, devem ter poderes reais e efectivos de natureza financeira com vista à concretização dos anseios dos residentes da respectiva circunscrição territorial. Aliás, só podemos falar numa verdadeira autonomia das autarquias locais se ela comportar uma autonomia financeira (autonomia patrimonial, tributária, tesouraria, creditícia e orçamental).

Neste sentido, vale dizer que manter as Autarquias Locais dependentes do OGE é, em abono da verdade, o maior ataque que se pode perpetrar ao carácter autónomo das Autarquias Locais.
A iniciativa do Chefe de Estado não é surpreendente, ela está em harmonia com a Lei n.º 13/ 20, de 14 de Maio – Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais.

Na prática, as futuras autarquias locais passam a ter orçamentos próprios e independentes do Orçamento Geral do Estado. Por outras palavras, passam a ser os órgãos autárquicos a elaborar (Câmara Municipal), aprovar (Assembleia Municipal) e executar o seu próprio orçamento, consagrando-se, deste modo, uma verdadeira independência financeira que abrange tanto a independência das receitas como das despesas autárquicas. Com base nesta proposta de Revisão Pontual da Constituição, pretende-se clarificar que, por força desta autonomia financeira, o orçamento autárquico estará desagregado do Orçamento Geral do Estado, de resto, expressão máxima da descentralização financeira.

É ponto assente a imposição constitucional de existência das Autarquias, como essa solução o que se pretende é evitar um processo de autarcização falhado, do ponto de vista financeiro, pelo que, a proposta vai no sentido de conferir às futuras autarquias locais uma ampla autonomia na formulação das suas despesas e receitas. Essa autonomia na fixação das suas receitas lhes permitirá fazer a gestão do seu património, bem como aquele que lhes sejam afecto; cobrar e dispor as receitas pela utilização de seus bens e serviços, assim como a titularidade da receita tributária referente aos tributos cobrados nessas circunscrições definidas por lei.

Repare-se, por outro lado, que os futuros autarcas deverão traduzir as suas intenções em programas e projectos específicos, cumprindo assim as atribuições dos respectivos órgãos, pelo que, os entes autárquicos deverão ordenar e processar as despesas municipais legalmente autorizadas no orçamento autárquico mediante à afectação de recursos financeiros.

Do exposto, não restam dúvidas de que a nossa ordem constitucional passa assim a conferir às autarquias locais uma autonomia financeira ampla, e confere certeza de que aquando da sua institucionalização ficam definidas legalmente as suas receitas e os outros apoios financeiros que decorrem da lei. A amplitude desta independência orçamental, confere igualmente, a autonomia de execução e de controlo orçamental e a competência de gestão que é atribuída aos órgãos próprios de cada ente autárquico.

Com o efeito, convém chamar particular atenção ao facto de os orçamentos das autarquias locais estarem sujeitos às regras que se aplicam ao Orçamento Geral de Estado, nomeadamente: anualidade, unidade, universalidade, especificação, não consignação, não compensação, equilíbrio orçamental, publicidade e aos princípios da contabilidade pública. Estamos, com isso, a dizer que os princípios constitucionais relativos ao Orçamento de Estado são aplicáveis ao orçamento autárquico.

Vale dar nota ao facto de que na proposta de revisão constitucional apresentada pelo Presidente da República, o OGE passa apenas a prever os recursos financeiros que o Estado deverá transferir às autarquias locais em cada ano fiscal. Essa solução representa o acolhimento constitucional do sistema de participação das autarquias locais nas receitas do Estado, constituindo-se em transferências obrigatórias de receitas do OGE para as autarquias locais. De acordo com o Regime Financeiro das Autarquias Locais, prevê-se a existência do fundo de equilíbrio das autarquias locais, nestes fundos estarão, pois, os montantes que o Estado vai transferir do OGE para as autarquias com vista a assegurar a justa repartição dos recursos financeiros para a correcção das desigualdades financeiras entre elas.

A solução proposta pelo Chefe de Estado é susceptível de aguçar algumas visões pessimistas, que encaram perigos de descontrolo financeiro, descontando os exageros que, habitualmente, acompanham as visões negativas sobre o futuro, cumprindo reconhecer que elas existem e que devem ser tomadas contra eles as devidas precauções, todas elas previstas no já aprovado Regime Financeiro das Autarquias Locais. Estamos a pensar, nomeadamente, em medidas como as seguintes:

1. O facto de estar consagrada a fiscalização administrativa e financeira da execução orçamental, por parte da Câmara Municipal, à Assembleia Autárquica, o órgão de tutela do Executivo em matéria de finanças públicas e finalmente pelo Tribunal de Contas;
2. A consagração da tutela inspectiva do Poder Executivo no plano financeiro em relação as seguintes matérias: plano de actividades, orçamento e sua execução; contabilidade; endividamento e gestão patrimonial que podem ser efectuadas uma vez por ano ou sempre que se julgar necessária;
3. Finalmente, encontra-se vedado o recurso ao endividamento, pelo menos, nos primeiros quatro (4) anos de implementação das Autarquias Locais.

Anísio Samandjata, jurista e docente universitário

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