Cultura

A “invenção” e a ausente empatia cognitiva

O falecido filósofo ganense Kwame Gyekye (1939-2019) apresentou uma interessante refutação das premisssas subjacentes ao conceito de “invenção” com que operam Kwame Anthony Appiah, seu compatriota, e o democrata-congolês V.Y.Mudimbe, respectivamente, nos seus livros “In My Father’s House” e “The Invention of Africa”. O que está em causa parece ser a ausência de uma empatia cognitiva.

17/01/2021  Última atualização 13H06
Efeitos da balcanização linguística
O professor Gyekye distingue os sentidos que Kwame Anthony Appiah e V.Y.Mudimbe associam à "invenção de África”, mas sustentando uma perspectiva que aponta para uma empatia histórica e cognitiva, numa apologia da unidade e da diversidade, à luz dos fundamentos históricos antigos, constitutivos do pensamento africano. Por isso, é de leitura obrigatória o seu livro de que não temos notícia de tradução em português: "An Essay on African Philosophical Thought. The Akan Conceptual Scheme” (Ensaio sobre o Pensamento Filosófico Africano. O Esquema Conceptual Akan).

Na filosofia ocidental, o conceito contemporâneo de "empatia” foi pela primeira vez usado pelo alemão Theodor Lipps que trabalhava em domínios da estética e da psicologia no final do século XIX e início do século XX. Seguiu-se depois Robert Vischer. À lingua inglesa chegou pela mão de Edward Titchener que a traduziu a partir do vocábulo grego "empatheia”.

 Do ponto de vista do objecto a que se aplica bem como das  suas propriedades, o conceito de empatia é pré-existente em África e, consequentemente, tem tradução em várias línguas africanas. Por exemplo, em língua Umbundu designa-se por "Ocikembe” e o sujeito que a pratica "Ukuacikembe”.  Se a empatia cognitiva é a capacidade de entender o estado de espírito de outra pessoa a partir da sua própria perspectiva, em língua Umbundu dir-se-ia: "Ocikembe ci uloño ciukwene”. O provérbio resume a ideia: "Ohali nda ikasi kukwene, kotaliseko, kopasule, oco eteke okamolavo ongongo, ukwene akakutaliseko vo ohali yove” (Se o sofrimento apoquenta o outro, visite-o. Assim, poderás contar com ele no dia que estiveres passando por igual sofrimento). A empatia é a mãe da simpatia e da compaixão.

O antropólogo norte-americano Clifford Geertz denunciou algumas das formas mais espúrias de empatia que na antropologia ocidental pretendem ser tomadas como universais. Isto aconteceu em 1974, por ocasião da cerimónia de atribuição do prémio da Academia Americana, durante a qual proferiu uma conferência com o seguinte título: "From the Native's Point of View: On the Nature of Anthropological Understanding» (Do ponto de vista do nativo: Sobre a natureza da compreensão antropológica). Trata-se de uma excelente reflexão sobre a empatia que serve os interesses dos que cultivam o etnocentrismo e outros preconceitos em relação a outros povos.

A empatia deve ou não ocupar um lugar central na actividade de quem se dedica ao estudo do pensamento dos Outros? Esta é uma questão a que muitos autores se propõem responder, tais como Karsten R. Stueber, no seu livro "Rediscovering Empathy. Agency, Folk Psychology, and the Human Sciences” (Redescobrindo a Empatia. Agência, Psicologia Popular e Ciências Humanas). Ele entende ser legítimo restaurar o interesse  que lhe é devido, considerar que, apesar da negligência filosófica ocidental de mais de um século, a empatia é um "método epistemicamente central” para a nossa compreensão de outros agentes.

Empatia e anti-empatia

O problema da empatia, que tem a anti-empatia como o seu contrário, releva da compreensão de experiências e manifestações da existência humana do Outro. Por isso, no contexto angolano a expressão "Isto não é Congo!”, é bem reveladora de um estado de espírito de anti-empatia, atalho para a construção imaginária de um inimigo concreto. Trata-se de uma fórmula depreciativa, através da qual se negam virtudes, capacidades e competências de comunidades e populações. Foi vulgarizada na década de 60 do século XX pelos colonos portugueses que viviam em Angola e que tinham abandonado o Congo, logo após a sua independência. Ainda hoje a expressão é usada em certos círculos no nosso País,  sendo-lhe atribuído um sentido que consiste em estabelecer uma recusa de compreender o povo congolês, o Outro na sua plenitude.

Pode dizer-se que a geopolítica linguística global e a glossobalcanização continental, consequência histórica do  imperialismo cultural e linguístico europeu, permitem afirmar que o actual panorama reflexivo sobre a África Global conta ainda com vários obstáculos, entre os quais a ausência de empatia cognitiva inter-africana. Aparentemente a ausência desta empatia impede o diálogo entre os povos do continente e suas diásporas.

As manifestações disso são várias. Verificam-se, por exemplo, ao analisar as  razões invocadas pelos intelectuais dos diferentes espaços geolinguisticos, quando se interpreta as suas lamentações a este respeito e se avalia o sentido que lhes atribuem. Na sua "Histoire de la Philosophie Africaine” (História da Filosofia Africana, 2009), o filósofo camaronês Hubert Mono Ndjana lamenta a falta de conhecimento sobre o pensamento filosófico nos cinco países africanos que têm o português como língua oficial, considerando que a longa guerra civil em Angola e a novidade das instituições universitárias desses países são razões para a falta de um verdadeiro conhecimento filosófico.

O mesmo acontece na "Oxford Encyclopaedia of African Thought” (Enciclopédia do Pensamento Africano, 2010),  publicada sob a responsabilidade editorial dos professores nigerianos Abiola Irele (1936-2017) e Biodun Jeyifo, onde se encontra uma entrada que revela a insignificância da lacuna e a escassa informação acerca do pensamento filosófico dos cinco países africanos que têm o português como língua oficial.

A glossobalcanização continental, isto é, o conjunto das presumíveis barreiras linguísticas existentes entre as comunidades e os povos africanos, parece constituir a causa principal da situação. Na verdade, trata-se de um falso obstáculo, por conseguinte, transponível e removível. O reitor da Universidade de Lubumbashi, Professor Kaumba Lufunda, dá conta do carácter artificial da balcanização linguística de África, no seu discurso de abertura no Colóquio Internacional sobre as Literaturas Africanas de Língua Francesa, realizado em 2005.

Instando os participantes a dedicarem-se ao estudo de um género de discurso da literatura oral africana, a "oração”, o Professor Kaumba Lufunda defendia que a oração pontua os modos de saudação e cortesia dirigido ao "transcendente”. Ilustra-o com as práticas discursivas das comunidades Lunda-Ndembu, da RDC, Zâmbia e Angola, que concebem a saudação, sempre na terceira pessoa, em língua Cokwe como forma de transmitir a força vital do superior ao inferior. "Moyo wenu” exprime o desejo para "que a força vital esteja consigo”; "Tunemushenu mawani” significa: "nós o saudamos, por favor”; "Tunayimushi moyu wawuvulu” significa: "saudamo-lo com abundante força vital”. Estas são fórmulas de saudação partilhadas por populações que residem nas regiões linguísticas transfronteiriças dos três países referidos, mas do ponto de vista semântico e pragmático são comuns em todo o continente.

Manifestação e níveis de empatia

O potencial de empatia existente entre as pessoas e os povos em geral não encontra correspondência entre os intelectuais africanos. No entanto, são as excepções que tornam possível advogar a crença na necessidade de se cultivar uma ética da empatia pelos problemas africanos, também ausente nos meios intelectuais, académicos e políticos angolanos.

Em 2006, integrando a equipa de diplomatas do Embaixador Assunção dos Anjos, Decano do Grupo Africano, fui responsável pela organização de um colóquio sobre o nosso continente que teve lugar no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Entre os oradores encontravam-se três professores universitários democrata-congoleses,  residentes na Europa, um em Espanha e dois em França. Eram eles, Mbuy Kabunda, cientista político, Mwatha Ngalasso, linguísta, e Mwayila Thsyiembe, também cientista político. Foi Mbuy Kabunda que espontaneamente protagonizou uma elevada manifestação de empatia quando se apercebeu da presença, entre os oradores idos de Luanda, de um dos decanos da política angolana, o Mais-Velho Lopo do Nascimento.

De modo efusivo, ele manifestou a sua admiração pelo político angolano cujo desempenho ele acompanhava na segunda metade da década de 70 do século XX, isto é, no período de transição e após a independência de Angola. Alto, em som audível, Mbuy Kabunda, que é originário da região do Kasai, disse: "Ah! Lopo do Nascimento, c’est mon idole! (Lopo do Nascimento é meu ídolo). E explicou porquê. Era estudante de ciência política na Universidade de Lubumbashi e vivia-se a efervescência dos anos da descolonização de Angola e início da guerra civil.

É óbvio que do lado de Angola abundavam manifestações de empatia e havia igualmente quem acompanhasse com interesse o que se passava na então República do Zaire. Em tempos de estudante, o autor destas linhas partilhava as inquietações panafricanistas com outros companheiros de geração. Por isso, procurava desvendar as cortinas das fronteiras artificiais para saber da arte dos "sapeurs”, o dandismo congolês, da música, literatura, política e da filosofia do Congo. Assim, foi em finais da década de 70 do século XX que por empatia cognitiva tomei contacto com obras dos escritores, políticos, filósofos e intelectuais africanos.

De resto, foi essa motivação que esteve na origem do manifesto estético-literário do Grupo Literário Ohandanji. Para a germinação da minha consciência pessoal estiveram conversas antigas. Inicialmente com amigos, tais como Jessé Kamundongo e Eliseu Kanda. No campo específico do pensamento literário, tomou forma  posteriormente em diálogos com os escritores Aníbal Simões, António Fonseca, Domingos Ginginha, Frederico Ningi, Lopito Feijó e Ruy Duarte de Carvalho.

Mas se é possível admitir a reciprocidade desse sentimento, ocorre perguntar sobre o tipo de problemas que suscitam interesse. Deste modo, justifica-se que façamos um exercício com o qual se possa determinar os níveis de empatia que podíamos ter manifestado pelos intelectuais vizinhos perante a qualidade dos debates e dos problemas vividos na então República do Zaire.

Portanto, ao considerar que em África a empatia histórica e cognitiva tem a dignidade de ser tematizada, estou desde já a admitir a possibilidade de as línguas e as literaturas africanas constituírem dois dos mais importantes domínios para o desenvolvimento deste filão reflexivo no nosso continente. Trata-se de uma virtude epistémica que é, ao mesmo tempo, uma virtude moral cujas fontes ainda estão por explorar. Para o efeito os estudos sobre a argumentação não-monotónica africana, assente nas virtualidades do discurso proverbial, apresentam-se como um dos campos privilegiados.

* Ensaísta e professor
universitário

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