Opinião

A lavra da vitória

Arlindo dos Santos

Jornalista

Há um provérbio popular Kimbundu que diz “kalakima ni kiririkié”. Traduzido à letra para o português, significa “cada coisa com o seu lugar”.

06/04/2021  Última atualização 08H05
A propósito, recordo o 25 de Abril de 1974. O Movimento dos capitães acelerou a Independência Nacional e veio também, em certa medida, pôr as coisas no seu devido lugar. A partir daí passamos todos a entender e a fazer política. Vivemos arrebatadamente esse tempo de valentia, de excessos, de comícios cheios de vibrantes palavras de ordem. "A luta continua, a vitória é certa”, gritavam os afectos ao MPLA. Se não estou em erro, os da FNLA diziam, "a vitória é nossa”.

Conheci por essa altura o dr. Joaquim Pinto de Andrade (curiosamente tive a oportunidade de assistir aqui em Lisboa, à comemoração e a partes do debate que no dia 30 de Março, assinalou os 50 anos do julgamento do famoso sacerdote e de mais 10 pessoas, entre as quais Diana Andringa, Garcia Neto, Rui Ramos e o meu mui estimado amigo Raul Feio, acusados de apoiar naquele distante 1971, o MPLA). Certo dia, em Luanda, o dr. Pinto de Andrade falou numa roda de amigos.

"Andam uns a dizer que a vitória é certa, outros gritam que a vitória é nossa. Pois eu digo que a Vitória é minha”. Referia-se ao nome da sua esposa, pronunciando-o com alegria, lia-se mensagem de amor no inesquecível sorriso, naquele tempo em que já era fácil a gente rir, porque a independência estava mesmo a chegar. Ainda acerca da vitória e dos comícios contou-se por muito tempo, aquela história, verdadeira ou não, da camponesa que, em resposta aos gritos do camarada agitador, ergueu a voz no meio do comício e respondeu alto e inocentemente, "a Vitória foi na lavra”. Inesquecíveis, esses tempos passados!

Mas, num dia destes, sem a agitação dos comícios, com as lavras a verem-se por canudos e da vitória a falar-se já sem convicção, veio-me à mente o tal adágio popular indicativo de que cada coisa deve estar no seu lugar. Foi na semana passada, quando assistia na televisão à cerimónia que celebrou a eleição da nova Secretária Geral da OMA. Não obstante a importância e a solenidade de que se revestia o acto e respeitando aquelas senhoras angolanas ali reunidas,devo confessar que não me agradou o que me foi dado observar. Na minha maneira de ver as coisas, não estavamno seu devido lugar. Não era aquele o sítio nem o momento apropriado para as encenações que ali se fizeram e se mostraram. Posso estar a incorrer num grave erro de avaliação, mas também tenho o meu direito à opinião. Não gostei e vejamos porquê.

Contesta-se entre nós, e nalguns casos com toda a razão, a fraca resposta de certas senhoras no desempenho de cargos de responsabilidade, no aparelho da governação e noutros círculos que conformam a nossa sociedade. Sabe-se de algumas que têm sido afastadas por incapacidade, por fraca figura mesmo. Aconteceu também com homens, mas é da mulher que me interessa falar neste momento. É evidente que se destacam muitas, por serem óptimas profissionais e mulheres exemplares, no exercício das funções que executam. Ora, num momento especial que a humanidade vive, e não nos podemos esquecer que fazemos parte dela, numa altura em que se corre em passo acelerado para a modernidade e para o desenvolvimento da ciência a vários níveis, em que há cada vez mais doutores entre as mulheres, em que, entre nós, a mulher necessita de se afirmar; em que se fazem estudos aturados na tentativa de se salvar o pouco que o mundo ainda tem de bom; numa altura em que se passam no nosso país os mais controversos acontecimentos, mais os desagradáveis, do que os de bom augúrio; onde à boca cheia se proclama que ainda agora não se conseguem distinguir as fronteiras entre a corrupção e o MPLA, partido que governa o país desde que somos independentes; num momento assim delicado que se descobrem a cada instante os males da traição, da fraude na sua expressão mais odiosa e se colocam em causa e ficam sem explicação, ainda agora, actos que provavelmente lesam o país em negócios associados à vacina contra a Covid-19; e mais ainda, quando a nível internacional se fazem estudos sérios e se afirma num relatório sobre o "risco do mundo”, documento elaborado pela seguradora de crédito francesa Coface, uma entidade tida como bastante credível, e se coloca Angola entre os 10 países do mundo sem futuro, dos que vão continuar a ter problemas sociais e políticos nesse tempo futuro. Quando, por fim, não se vislumbra a nível interno, nos actos da governação, saídas céleres para a crise, quer por estratégias que animem, quer pela atitude dos actores executantes dos mais que muitos projectos elaborados. Quando tudo isto acontece à nossa frente e se espera da mulher atitude firme e de compromisso, fica-se necessariamente desolado, decepcionado, mal disposto, sem vontade de ver o espectáculo de péssima escolha (é o meu pensamento, repito) que, a meus olhos, retrata e faz apelo à vassalagem e ao servilismo, aos tempos da Rainha Ginga. O agradecimento da Secretária eleita (salvo seja) ao chefe por a colocar naquele posto (!!!!), é o momento mais grave da peça que encerrou o Congresso da Organização da Mulher Angolana, e a coloca desde já numa situação pouco cómoda.

Sei que não me dizem respeito os actos duma organização à qual não estou vinculado por militância mas estou pelo coração, porém enquanto cidadão, estas cenas mexem comigo, dizem-me alguma coisa. Desconheço como funciona a OMA e por que linhas se regem as estruturas do MPLA. Isso não me impede que, por exemplo, me mostre contrário à fórmula da eleição para qualquer cargo ou função, sem que se mostre a parte concorrente, que ambas as partes se defrontem, que apresentem o seu programa e façam a sua propaganda. O que assistimos foi a uma cena em que a candidata designada já estava eleita antes de o ser. Admito que funcionem procedimentos preliminares, antes do pleito final, uma espécie de primárias que tenham legitimado a senhora Joana Tomás no papel de candidata única. Mas o que me preocupa é que num partido que defende a construção do Estado Democrático e de Direito, a democracia ande completamente arredada dos seus passos mais visíveis. Mas ainda assim, dá para questionar se a falta de unanimidade na eleição quererá dizer alguma coisa. Sinceramente, não me vou incomodar com isso, vou dizendo. Mas a verdade é que me incomodo.

Como me causaram grande incómodo as imagens da chegada do Primeiro Secretário da JMPLA (espero não me ter enganado na designação) ao Zaire, onde o jovem responsável foi saudado à chegada com honrarias próprias para recepções a grandes chefes. Os cânticos e danças os gestos de obediência fazem pensar numa hierarquia do tempo colonial, dos nossos ancestraissobetas.Em momento que andamos a propagar aos quatro cantos do mundo a nossa intenção de modernizarmos o país e de aprofundar a democracia, não me parecem adequadas estas pobres cenas que, em meu entender, misturam desnecessariamente política com actos de ficção, retirando a qualquer um deles um quinhão enorme de credibilidade.

Assim sendo, e não me incomodando com as desculpas que certamente virão embrulhadas nos panos da nossa tradição, aconselho que se veja melhor, jovens e mulheres, a época que vivemos. É a era da modernidade que nos coloca perante grandes desafios e a cada passo mal dado à beira do abismo.

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