Cultura

A leitura da alma e o significado das palavras

Luís Kandjimbo |*

Escritor

O título do romance de Óscar Ribas, “Uanga” (Feitiço), publicado nos anos 50 do século XX e premiado no período colonial, suscitou resistências. No actual contexto angolano, o tema do livro reacende um novo debate, suscita um problema que se inscreve em cinco domínios do saber: arte, direito, linguagem, moral e política.

07/03/2021  Última atualização 10H15
© Fotografia por: DR
O problema diz respeito ao conhecimento e valorização de qualquer língua natural. Apesar da atenção dedicada aos casos judiciais que o tematizam, no que é essencial parece preocupar muito pouca gente.  
Entretanto, o jurista Chico Adão, aliás, António Francisco Adão Cortez, vem dar um contributo relevante com os seus dois livros "As Origens do Fenómeno Kamutukuleni e o Direito Costumeiro Ancestral Angolense Aplicável: Alguns Aspectos da Etnografia Angolense” (2006) e "Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola” (2010).

"Feitiço” e "manipanso”
A este propósito, existem no vocabulário da língua portuguesa duas palavras cujo sentido e significado permitem dimensionar a discussão crítica do problema, nomeadamente, "feitiço” e "manipanso”. Têm um campo semântico que os aproxima. Nos dicionários corresponde-lhes os mesmos referentes. Enquanto signos isolados não produzem sentido. Para o efeito, é necessário que façam parte de uma frase, ou seja, um texto. Em todo o caso, das duas palavras, "feitiço” é o substantivo mais frequentemente usado cuja  semântica continua a causar danos devido aos dilemas que afligem os intérpretes, sejam eles angolanos ou estrangeiros.
Há uma interessante definição de texto formulada pelo filósofo cubano Jorge J. E. Garcia, no âmbito da sua "teoria da textualidade”. Trata-se de um conceito operatório em que o texto é definido como "um conjunto de entidades usadas como signos que são seleccionados e  intencionalmente organizados por um autor em determinado contexto para transmitir um significado específico a um auditório”.

Assim, pode dizer-se que os referidos substantivos da língua portuguesa são signos. Por exemplo, os nomes atribuídos aos objectos de arte constituem um tipo de signos de textos orais e escritos, através dos quais se procede à apreciação desses objectos e à interpretação do seu sentido. Ao situarmos o plano da nossa conversa em qualquer um daqueles  domínios da filosofia, faremos recurso à experiência que emana das relações históricas entre a África e a Europa. O conhecimento dessa experiência permite compreender determinados fenómenos, tais como as formas de violência simbólica sobre as línguas africanas, que nos levam à interpretação de alguns susbstantivos da língua portuguesa. Derivam daí manifestações de ignorância perante o Sujeito Africano e sua antiga lógica dos nomes, consequentemente, a redução ao anonimato. Ao longo de séculos a ideologia colonial foi institucionalizando a anulação da atribuição de nomes aos indivíduos e aos objectos por si produzidos.

O aniquilamento conduz à construção de um sujeito inominado cuja identidade, nos espaços de predominância ideológica colonial, passa a obedecer aos modelos europeus. A arte é um dos domínios em que este fenómeno tem lugar. Entre os dispositivos ao serviço da causa colonial encontra-se a antropologia e o cristianismo missionário. O filósofo camaronês Jean-Godfroy Bidima (na imagem) aborda esta problemática em "L’Art Négro-Africain”, analisando-a em duas vertentes: "leitura da arte” e "leitura da alma”. Da "leitura da alma” com que opera o cristianismo missionário, decorre a conclusão da "leitura da arte”  segundo a qual a arte africana, a sua parafernália e os  rituais correspondentes estão ao "serviço do diabo”. A evangelização e a produção de catecismos representam o esforço desenvolvido pelos missionários desde a sua fase inicial. De acordo com os registos arquivísticos, no Reino do Kongo o primeiro catecismo data de  1553, a que se seguiu outro em 1556, "Cartilha de doutrina cristã em língua do Congo”.

Mas, um olhar atento sobre a história semântica destas palavras remete-nos à problemática da des-leitura colonial do conhecimento do Outro que se analisa nas ambiguidades da tradução. Nos primeiros materiais litúrgicos e catequéticos produzidos no chamado Reino do Kongo, durante a primeira fase do processo de evangelização cristã, há registos de ambiguidades semânticas. Por exemplo, "ankisi”, inicialmente traduzido como "sagrado”, "santo”, "feitiço”; "ukisi” como "natureza divina”, "natureza do feitiço”, "divindade”; "nkanka”, como "fé”, "devoção”, "fidelidade”. Curiosamente, quando se chega à tradução de "nzo a mukisi”, que poderia ser traduzido como "igreja”, ocorre o dilema da interpretação do tradutor porque se recusa este sentido, preferindo traduzir a expressão como "casa dos ídolos” ou "casa do feitiço”. Esta tradução não poderia nunca servir para designar "a Igreja”.

Na sua origem etimológica, "feitiço” é um vocábulo que deriva do latim. Do verbo "facere” chega-se, através da declinação, ao particípio passado "factus”, em seguida o masculino do adjectivo "facticius”, no caso nominativo. Quando no século XV se estabelecem os primeiros contactos com o Reino do Kongo, os portugueses já traziam a palavra no seu vocabulário. Em Portugal, era usada para designar artefactos toscos, objectos artificiais ou falsificados, actos e comportamentos falsos, sortilégios.

Por sua vez, "manipanso” é uma unidade lexemática originária da língua Kikongo. Resulta  da aglutinação de duas palavras: "Mani”, corruptela de Mwene, e Mpanzu. A combinação destas duas palavras configura a designação de um título e do nome próprio do soberano, respectivamente, Mwene e Mpanzu. Numa tradução literal, com ela designa-se o "Rei Mpanzu”. Compreende-se que, ao perpetuar a referência à figura máxima do Reino do Kongo, os portugueses reduziam-no a um artefacto a que não atribuíam qualquer valor, através de um destruidor sentido de representação. Deste modo, o seu significado passou a estar associado a objectos artísticos simbólicos e funcionais ou adereços de rituais sagrados e políticos. Nos dicionários, tais objectos são referidos como "ídolos africanos”, reais ou abstractos, sobrenaturais, utilizados para realização de cultos.
É possível admitir que "manipanso” é uma corruptela tardia na língua portuguesa. Pode ter sido incorporada no século XVII, período em que o clã Mpanzu assumiu a condução dos destinos do Reino do Kongo.

Descrição e significado

Em Angola, o direito positivo, as práticas religiosas cristãs, a actividade política e administrativa têm vindo a ser o veículo privilegiado de reactualização semântica da  palavra "feitiço”. Mantém-se o sentido pejorativo colonial. Pode dizer-se que os maiores dilemas do intérprete nesta matéria encontram-se em vários dispositivos institucionais do direito.
Os dilemas hermenêuticos e argumentativos assumem formas depreciativas assentes na semântica colonial. Exemplo disso é o modo como se define o conceito de "feitiço” no Acórdão do Tribunal Supremo proferido há dezasseis anos, exactamente, no Processo n.º 84/2002. Segue-se toda a dogmática criminal, substantiva e processual. Do ponto de vista argumentativo, o fundamento de tais decisões reside naquilo que se considera ser uma jurisprudência fundada "na crença enraizada no feitiço”, revelando-se no seu âmbito incoerentes conexões com esquemas conceptuais de "tradição” e "costume”. Donde se deduz que é prática nos tribunais angolanos dar relevância ao costume em processos criminais. Parte-se do pressuposto segundo o qual a "forte crença no feitiço justifica o uso da faculdade extraordinária de atenuação de penas”.

A reflexão teórica sobre o direito consuetudinário subjacente a esta problemática permite identificar um vazio que legitima a convocação da antropologia e da filosofia. Em alguns casos tais lacunas são preenchidas por abordagens epistemológicas sobre as experiências africanas como aquelas que resultam de propostas de autores portugueses. Mas os referidos autores não revelam a robustez da melhor antropologia francesa, inglesa ou norte-americana.

No debate a desendadear nesta matéria, levantar-se-á uma questão preliminar que interpela a antropologia, a filosofia e a linguística. Para tal deverá ser convocada a teoria da referência e a teoria da descrição do significado das palavras. Esse problema do significado das palavras é tratado no campo da filosofia analítica onde se formula a ideia segundo a qual para se conhecer o significado de uma palavra torna-se necessário  perguntar acerca do modo como ela é usada. Mas isso pode implicar  um conhecimento técnico que falantes comuns não possuem. Explicar  o significado de uma expressão é uma coisa. Descrever o seu modo de uso é outra.

Portanto, o que está em causa aqui é a tarefa de explicar e descrever o uso de palavras  comuns das línguas nacionais, por exemplo, "wanga”, "kindoki”, "umbanda” paralelamente a "feitiço”, da língua portuguesa, para determinar o seu significado e fixar a sua referência. Em qualquer língua natural, a referência é baseada no conhecimento que se tem dos objectos de acordo com a experiência imediata. Consiste na relação entre a palavra e o objecto que se estabelece  por força da experiência de um determinado sujeito conhecedor perante o mundo à sua volta.

Por essa razão, o legislador constituinte da Constituição da República de 2010, avaliando os critérios hermenêuticos  subjacentes à jurisprudência do Tribunal Supremo, procedeu à constitucionalização do costume. Propõe-se assim o abandono do positivismo jurídico na sua forma mais conservadora. É convocada uma perspectiva jusvalorativa do direito que legitima a incorporação da moral  nos referidos critérios hermenêuticos.    

Portanto, o fundamento de semelhante opção constitucional pode ter uma justificação mais consistente, se o debate permitir uma articulação convencional que dê lugar a novos cânones hermenêuticos e conduza a uma teoria da referência das palavras originárias das línguas bantu e sua correspondente lexicalização. Assim, seriam removidos os obstáculos respeitantes à irrelevância lexicográfica da palavra "feitiço”, perante as exigentes discussões acerca das suas propriedades e referentes, e das unidades lexemáticas das línguas bantu, suas equivalentes. À luz de uma lógica elementar, compreende-se facilmente que o significado do termo "feitiço”, a título de ilustração, não tem o mesmo universo de referência das palavras "kindoki”, "wanga”, "umbanda”, respectivamente, em Kikongo, Kimbundu e Umbundu, de que aquela parece ser a tradução. No dizer de Chico Adão, "Wanga é um processo de cultos mágico-religiosos, extremamente complicado e cheio de emaranhados, que comporta um conjunto de manifestações míticas, realizadas por indivíduos ou pessoas, de ambos os sexos e com idade superior a ‘cinco anos’, sob a direcção de um chefe, mas "em estado psicofísico de bilocação”.

* Ensaísta e professor
universitário

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