Cultura

A literatura na luta de libertação nacional

Cornélio Caley

Jornalista

Inicio por citar a seguinte frase extraída do texto da Proclamação da UEA em 1976 com a qual terminarei o presente texto: “a história da nossa literatura é testemunho da geração de escritores que souberam, na sua época, dinamizar o processo da nossa libertação, exprimindo os anseios do nosso povo”.

14/02/2021  Última atualização 14H35
Nossa libertação, exprimindo os anseios do nosso povo” © Fotografia por: DR
Destas palavras, depreende-se que a literatura desempenhou um papel ímpar na luta de libertação nacional de Angola, como aliás, aconteceu e acontece em todas as partes do mundo. A literatura, tida como expressão maior da cultura dos povos, continuará a actuar como um canhão silencioso na luta pelas liberdades.

Durante a luta armada de libertação nacional de Angola, a literatura constituiu-se naquilo que poderíamos designar por 2º Ramo das Forças de Libertação Nacional, se considerarmos que a guerrilha e a clandestinidade, actuaram como o 1º ramo do processo.
À propósito, conta-se historicamente que o Panafricanismo assimilou, também, ideias de um poema escrito por uma escrava que roubou a caneta do seu senhor no Brasil em 1773. São as ideias escritas que revolucionam o mundo.
No caso angolano, vigorava até 2ª metade do século XIX, obviamente, uma literatura colonial que exaltava a nação lusitana, envolvida de preconceitos raciais. Pois, tinha objectivos políticos únicos, de exaltar a lusitanidade em Angola, num processo a-histórico de assimilação dos angolanos, tentando fazer tábua rasa à cultura dos nativos.

Sobre os precursores

Pertencem a Etapa dos Precursores, entre outros, os escritores, jornalistas, escrivães, autodidactas que, com a sua pena, tentaram apresentar na sociedade, páginas de uma literatura que, não sendo ainda de rotura, continha, contudo, traços de uma literatura local, mas de conveniência. Podemos citar José da Silva Maia Ferreira que, nas suas obras, entre elas, "Espontaneidades da minha alma - Às senhoras angolanas”, apresentava já citações de uma realidade local, constituindo-se num embrião notável para a história da literatura angolana. Oiçamos algumas das suas passagens: "Vi belezas da terra / Da tua terra sem igual / De tua terra a beleza / Também é portuguesa / Minha terra natal”.

Encontra-se, aqui, uma tentativa do autor de comparar a beleza de Portugal com a beleza da sua terra, Angola.
Esta corrente continuou e entra nos princípios do século XX com muitas dificuldades. Porém, onze intelectuais angolenses publicam sob anonimato um livro constituído por 11 artigos onde denunciam os abusos do sistema colonial com o título "Voz de Angola Clamando no Deserto”. É, também, publicado em 1935, o romance de António Assis Júnior "O Segredo da Morta”, obra literária sobre costumes e hábitos nitidamente angolenses.

Numa análise, que considero simplista, alguns estudiosos afirmam que a obra de Assis Júnior não chegou a ser suficientemente bastante para superar o cânone da literatura colonial da época. Temos que reconhecer que estamos perante a primeira obra literária angolana de ficção que analisa as relações culturais do período colonial em que se realça a dualidade dos espaços sociais que existiam na época. Se considerarmos a dualidade referida pelo autor, entendo que ele pertence à etapa que prenuncia conflito com a literatura lusitana e  o surgimento da literatura angolana. Em boa verdade, não podemos hoje, pedir mais, aos escritores dessa época, dada a conjuntura política que viveram.


Modernidade e Nacionalismo

Surge, então, a presente etapa de intelectuais angolanos ligados às academias donde destacamos, em particular, a Casa dos Estudantes do Império que viria ocupar o lugar de Berço das literaturas modernas das, então, colónias de Portugal. Constituiu-se num verdadeiro viveiro onde se sedimentou a literatura nacional angolana e a das outras colónias.
Mário Pinto de Andrade chegaria a apelidar a Casa dos Estudantes do Império de "berço das chefias africanas” pois, dela sairiam, os líderes dos movimentos de libertação nacional, nomeadamente, no caso angolano, Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade e nos outros casos, Marcelino dos Santos de Moçambique e Amílcar Cabral da Guiné Bissau e Cabo Verde, entre outros.

A "Revista Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola” foi um espaço importante para o forjamento da literatura angolana e de troca de experiências, que viria a revolucionar a literatura angolana, principalmente quando começou por divulgar as ideias e padrões estéticos angolanos. É ilustrativo disso a afirmação que se segue, nela publicada: "é necessário revelar valores ignorados, impondo-os; corrigir hábitos mentais defeituosos, definir posições e conceituar a verdadeira cultura angolana, livre de todos os agentes decadentes e dirigir a opinião pública para uma corrente sã e estruturalmente valorosa que quer, pode e há de impor-se.”

Curiosamente, encontrámos aqui formulações que nos remetem para actualidade. Pois, esses questionamentos levariam Agostinho Neto, a pronunciar-se nos seguintes termos: "os nativos são educados como se tivessem nascido e residissem na Europa. Não têm orgulho da sua terra, não têm sua arte e nem sua literatura. Não adoptam uma cultura: adaptam-se a uma cultura”. E Neto continua, numa outra incursão à situação que prevalecia: "quando as nossa línguas, aquelas que serviram e servem de veículos à cultura angolana, não são faladas nas escolas, não são usadas nos jornais, na rádio”, etc.

São estas e outras questões levantadas naquele tempo que continuam, ainda, a constituir tabu nos nossos dias, numa Angola independente há 45 anos. Apesar de utilizarem apenas o português, aqueles escritores conseguiram deixar-nos obras insuperáveis nos dias de hoje, pois, apresentam traços linguísticos locais. Oiçamos, por exemplo, "O Comboio Malandro” de António Jacinto, nos seguintes versos: "tem bois que morre na viagem / Mas o preto não morre / Canta como criança / Mulondo iá Quéssua uaã dibalé / Uadibalé uadibalé uadibalé”.


Vamos Descobrir Angola

Embora de uma forma quase paralela à etapa da Literatura Moderna Nacionalista, situando-se em sobreposição com a mesma, podemos destacar o slogan "Vamos Descobrir Angola”, que alguns estudiosos afirmam não poder ser atribuído a nenhuma entidade como seu autor.

Vivia-se uma efervescência de ideias e a conjuntura política tolerava os intelectuais angolanos. Podemos destacar a ínclita geração composta por Mário Pinto de Andrade, António Jacinto, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário António e outros. Formam grupos de novos intelectuais que defendiam a valorização das tradições e culturas angolanas, construindo uma memória colectiva que os levaria, naturalmente, a esboçar ideias políticas para a libertação.
À busca da ancestralidade ou mesmo das suas infâncias, em conjunto, sonharam construir um futuro luminoso para Angola. O poema "O grande desafio” de António Jacinto é um dos exemplos.

Em 1955, depois da Conferência de Bandung, surge, entre os mesmos intelectuais angolanos, a formação do PCA (Partido Comunista de Angola), que dá lugar, no ano seguinte, ao manifesto do MPLA pela mão de Viriato da Cruz. Estamos, então, num período histórico áureo em que se realiza a rotura e se dá um salto, da literatura à política, embora este salto tenha sido já desenhado durante as etapas anteriores. António Jacinto brinda-nos, então, com a sua célebre frase: "tudo começou com a poesia.”
Com a publicação da SAGRADA ESPERANÇA de Agostinho Neto, em plena Luta Armada de Libertação Nacional, a literatura assentou nos centros políticos e culturais onde se desenvolveu a guerrilha.

Uma lista considerável de escritores e poetas angolanos surgiu no exterior, alguns do interior, dos países vizinhos, do Centro de Estudos de  Angola na Argélia e de todos os cantos do mundo onde residiam os nacionalistas e estrangeiros progressistas. Curiosamente, até cá dentro, mesmo nas cidades como Lubango, ex-Sá da Bandeira, em pleno ano de 1973, uma estudante universitária angolana, atreveu-se a recitar em plena Conferência, "O combóio Malandro” de António Jacinto. Aplaudida por uns, apupada por outros, a mensagem passou.

A corrente literária angolana continuou dentro do país em força, tendo surgido uma lista enorme de escritores e poetas, muitos deles membros da UEA, diversas associações de literatura. Embora frenada pelo próprio conflito armado, a literatura foi cumprindo o seu lugar, gerações após gerações. Aqui está a Geração da Brigada da Literatura Angolana, a fazer face ao presente e a exaltar o passado doloroso, mas glorioso. Podemos, assim, entender o sentido das frases do texto da proclamação da UEA com as quais, iniciei a minha intervenção.

Notas conclusivas

As sociedades estão em dinâmica permanente, estão sujeitas a pressões e intervenções dos seus agentes e actores. A literatura angolana, que desempenhou papel crucial na Luta de Libertação Nacional, não encerrou, contudo, a sua missão. Pois, continuou após a independência apesar do conflito a que assistimos. Não foi feito, ainda, o balanço do contributo da literatura durante esse conflito armado nem tão pouco do contributo da geração dos pós-conflito. Não se tem prestado atenção devida ao conflito latente entre autores afro-centristas e euro-centristas no contexto angolano, matéria em debate no continente africano. Portanto, são estas e outras questões que requerem outros debates na fórmula de "A luta continua.”

*Texto lido no segundo encontro intergeracional sobre "O contributo da literatura angolana na luta pela independência nacional”, promovido pela Brigada Jovem de Literatura, na sede da UEA, em 21 de Fevereiro de 2021

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Cultura