Opinião

A mulher: igual como ser humano!

Apusindo Nhari

Jornalista

Era o nascimento da que já tinham decidido chamar Esperança. Segunda filha, querida como a primeira. Amigos e amigas foram aparecendo para dar os parabéns habituais.

21/02/2021  Última atualização 10H17
O novo ser iria inevitavelmente mergulhar no mar de regras e valores que regem o mundo em que acabava de entrar. Regras frequentemente injustas para as mulheres. Como a Panchita. E que iriam marcar a sua vida, e a da sua irmã, como o tinham feito com as da sua mãe, avós e de tantos milhões de outros seres, como ela.
Um dos amigos, apesar de ter também dado os parabéns pela nova criatura, não conseguiu esconder, pela sua expressão, que sentia ser mais apropriado encorajar e mostrar solidariedade diante daquela "nova contrariedade": mais uma filha…

O momento confrontou-nos com a impotência das leis e ideias politicamente correctas, perante os preconceitos milenares enraizados em cada um de nós, na nossa cultura, de forma mais ou menos visível.
Lembramo-nos de uma certa remodelação ministerial que aconteceu porque um macho, hierarquicamente subordinado a uma mulher, não aceitava dela receber ordens. Mesmo sendo, ambos, da mesma organização defensora de valores progressistas,não se via nela antes de tudo a pessoa, a profissional.

Não é raro que certos valores - profundos e primitivos-prejudiquem as mulheres: tanto nas pequenas tarefas caseiras como nas de maior alcance(e até na configuração de estruturas governativas!). Apercebemo-nos como - apesar dos discursos, dos princípios de igualdade de género, cada vez mais consensuais, das quotas para mulheres em cargos de direcção... - há contravalores que formatam as nossas atitudes, de forma frequentemente inconsciente.

Sequelas do resultado acumulado de tretas que nos foram sendo impingidas e de atitudes ou comportamentos com que fomos sendo alimentados. E que transmitimos depois, enquanto educadores - com insuficiente sentido crítico - àqueles que ficam à nossa mercê.
São várias as fontes que cultivam e regam as bases da discriminação, desde a religião aos costumes das famílias: a mulher feita a partir de uma costela do homem... o menino valente e a menina piegas... a menina a servir o menino que comerá primeiro...! E o pior é que essa forma de se atribuir um valor diferente - hierarquizando-os - aos meninos e às meninas, marca-os desde cedo. Como terão ficado lamentavelmente marcados aqueles homens que se recusam a ter mulheres como suas superiores hierárquicas.

"Promover a igualdade entre o homem e a mulher", é obrigação do nosso Estado, estabelecida pela alínea k) do artigo 21º da Constituição. Que reafirma a alínea h) "Promover a igualdade de direitos e de oportunidades entre os angolanos, sem preconceitos de origem, raça, filiação partidária, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
A repetição na Constituição do compromisso do Estado para com a igualdade de género, estará talvez relacionada com a dimensão do desafio que a nossa sociedade, e o mundo, têm pela frente, para que se concretize o 5º Objectivo do Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas. Que, para além da garantia de direitos iguais, reconhece as mulheres como actores económicos fundamentais, alicerces de um desenvolvimento sustentável.

Por envolver questões culturais, a realidade apresentada na introdução não é facilmente traduzida em números. As estatísticas (veja-se, por exemplo, o site do FNUAP) confirmam que a diferente valorização das pessoas se traduz em desvantagens tangíveis nos domínios da educação, da saúde e do mercado de trabalho, no nosso país:
"A taxa de alfabetização é, entre os 15 e os 24 anos, de 66.1 por cento para as jovens mulheres, e de 80.1 por cento para os jovens do sexo masculino.”

"A prevalência do VIH entre as mulheres é de cerca de 2,4 por cento. A dos homens ronda os 1,6 por cento". "64,1 por cento das mulheres com idades entre 15 e 64 anos participam da força de trabalho. Este valor é de 78 por cento entre os homens na mesma faixa etária.”
As palavras - instrumento de que nos servimos neste espaço, e que é usado nas leis – são, sem dúvida, importantes e podem carregar nelas os esporos da visão discriminatória em relação ao género. Apesar de termos consciência disso, sempre nos parece algo pueril a tentativa de resolver o problema com frases como "Bom dia a todos e a todas”, ou outras fórmulas simbólicas semelhantes, comuns em muitos círculos.

As mudanças necessárias exigem muito mais do que alterações nas formas como nos saudamos. Neste domínio, como em tantos outros, a ruptura com valores tradicionais retrógrados tem de ser feita com firmeza. Com pedagogia, mas sem hesitações! Tal como não podemos tolerar que um monarca ou "autoridade tradicional” possa, nos dias de hoje, terminar a vida de alguém sem ser responsabilizado, também não se podem tolerar práticas, como a que referimos em crónica anterior - e tristemente comuns - de expropriação das viúvas pelos familiares dos seus falecidos maridos.

É bom que a linguagem e as leis evoluam e promovam a igualdade de género, mas isso é de pouca valia se não atacarmos as crenças que estão por detrás das práticas discriminatórias. Reconhecendo as diferenças naturais entre seres humanos - e, por isso, dando-lhes por vezes a devida atenção diferenciada - mas não perdendo o foco na necessidade de garantirmos direitos iguais.
As tradições e a cultura não são sagradas. Os direitos da miúda Esperança, e de todas as pessoas - homens ou mulheres - sim!

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