Cultura

A questão da variação linguística e a norma

A língua é o resultado de práticas sociais de grupos e espelha contextos, o que a remete à sociolinguística, que se ocupa do estudo da língua falada.

17/01/2021  Última atualização 13H48
Redefinir as políticas e o planeamento linguístico © Fotografia por: DR
O espaço geográfico, a posição social, a faixa etária, o género são alguns dos elementos que levam a reconhecer a heterogeneidade linguística e quebrar a ideologia monolingue que impera nas escolas e que tende a unificar a língua portuguesa que se fala em Angola tendo como pressuposto a "norma”. Que norma? Norma para quem? Que implicações a defesa da norma "certo” e "errado” acarreta na vida do aluno e da sociedade?

A gramática normativa em uso em Angola tem como base um contexto. A norma que impõe o "certo” e o "errado” adopta o modelo monolingue, monocultural, que promove a desigualdade social e linguística. Norma que segrega em vez de agregar a variação linguística da realidade angolana. Mas certa para quem? Precisamos perceber que a variação linguística admite vários usos dos recursos expressivos que se encontram à disposição dos falantes.

De acordo com Bernardo (2017) em seu artigo "Norma e variação linguística: implicações no ensino do português em Angola”, a confluência linguística característica do país acarreta, por exemplo, implicações no ensino, se se ter em atenção que as interferências vindas do contacto linguístico do português com as línguas nacionais dão azo à variedade do português, com suas particularidades nos campos lexical, fonético-fonológico, construções sintácticas, morfológicas e semânticas, logo, sem como ater-se à norma do português europeu.

É necessário que a escola e a sociedade colaborem na desconstrução ideológica do monolinguismo que ganha corpus por influência de uma suposta doutrina da gramática, dos dicionários que ditam regras de uso da língua e seus vocabulários fixos  a um ensino baseado nesses instrumentos que reforçam a hegemonização linguística e o discurso "um só povo, uma só nação”. A variação linguística não pode ser ancorada no certo/errado imposto pela gramática tradicional em seu discurso autoritário, mas sim numa perspectiva da análise linguística voltada à gramática funcional que envolve o adequado ou inadequado tendo em atenção a situação comunicativa em que a língua é utilizada.

A escola deve exercer o seu papel de anular o preconceito que se innstala em torno da língua portuguesa no contexto angolano, bem como procurar reflectir sobre a necessidade de se inserir nos livros didácticos aspectos de variação linguística que nos são característicos. Essas variações do português trazem implicações no ensino que jamais nos levarão ao purismo linguístico que as instituições exigem.

Em nosso entender, a hegemonização do português está ao serviço dos projectos Lusofonia e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), instituições que visam nada mais do que expandir e perpetuar essa língua, essa identidade, essa cultura, essa ideologia em seus Estados membros. Por isso, verifica-se em Angola a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em todas as esferas da vida social, o que demonstra uma tendência muito forte de silenciamento, apagamento e inferiorização das línguas nacionais. Essa política linguística remonta ao período colonial - Decreto de Norton de Matos - e ao período pós-colonial à Constituição da República de Angola (2010) e à Lei de Bases do Sistema de Ensino e Educação, que definem o português como a única língua de ensino, o que remete para uma negação tácita da variação linguística angolana.

O país deve primar por práticas linguísticas libertadoras para se alcançar um ensino agregador dos saberes dos alunos como ponto de partida e repensar o ensino da língua portuguesa. Não se pode conceber o país de forma homogénea, como se o português fosse a única língua falada e da mesma maneira. A língua apresenta sempre certas particularidades que distinguem uma comunidade/grupo. A nossa vénia vai aos professores e aos jornalistas que promovem o repensar do uso da língua e ajudam a anular o desconhecimento sobre a variedade linguística invisibilizada pela doutrina escolar e social.

A escola, a imprensa, precisam promover a democratização dos seus espaços de maneira a incluir os diversos estratos da sociedade e ter um maior alcance e compreensão da linguagem que usam. A variedade linguística é um facto. Embora ela não faça parte das matérias didácticas, isso não anula a sua abordagem em sala de aula, de modo que o aluno compreenda o funcionamento da língua e obtenha mais luzes sobre. Winch (2013), no seu artigo "Diversidade linguística em livro didáctico de português: alguns apontamentos”, sustenta que "o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas partilhar-lhes a escolha da forma de falar a utilizar, considerando as características e condições de contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção enunciativa, dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige.

A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem” (p. 213).
Um professor não pode apegar-se às regras gramaticais sem ter em atenção a diversidade linguística que dá lugar à variação linguística, pois o contexto deve constituir a preocupação do professor. Olhar a variação linguística na mesma dimensão à norma torna-se estanque por tratar-se de norma que não representa o país e nem mesmo em seu contexto de fabricação é praticada por todos os falantes da língua de Camões.

Em outros termos, o professor de língua portuguesa precisa ter a capacidade de problematizar a norma tendo em conta o contexto de uso da língua, abrindo possibilidades de desenvolver as capacidades de pensamento e construção de raciocínio. Precisamos perceber que ninguém é superior a ninguém – não se pode priorizar uma norma em detrimento do contexto de fala que traduz a variação na língua. Angola sendo um país cuja norma da língua não o descreve, o professor deve ter algum cuidado ao abordar a língua em sala de aula de modos a acautelar embates de perspectivas – o doutrinário da escola, a norma linguística "gramática” e a vivência dos alunos.

Na nossa sociedade impera a desonestidade linguística, característica comportamental doutrinária construída pela escola, que tende a definir na sua óptica o "errado” e o  "certo”. Essa postura hegemónica do português estupra a variedade linguística do português angolano. O confinamento à norma prescritiva do português considera inútil o funcionamento da língua nas suas abordagens e, no entanto, mais uma vez, no sistema de ensino, falamos de professores que não entendem que a língua é a prática de seus falantes. Fica evidente que o ensino voltado à norma prescritiva é fruto de políticas linguísticas de legitimação do português.

O problema que se verifica diante de todas as peripécias sobre a variação linguística tem a ver com a falta de reconhecimento da realidade sociolinguística, bem como a adopção do modelo de ensino da língua portuguesa incapaz de pôr fim à desigualdade. O irónico é que os que defendem o purismo linguístico não conseguem satisfazer esse português que tanto defendem por terem marcas próprias que os distingue da norma estabelecida pela gramática. Essa realidade pode ser equiparada ao código de estrada, no tocante à regra da prioridade. Vejamos.

Se estabelecermos uma corelação entre a variação linguística e a prioridade no código de estrada, compreendemos que ela não é absoluta, na medida em que a legislação sobre o direito de passar primeiro em relação ao outro depende muito das circunstâncias que influenciam na sua cedência. Nessa perspectiva, dependendo da situação, a prioridade pode estar sujeita a alterações. O condutor, por mais que suponha ter prioridade, precisa garantir a sua segurança, impedindo um possível conflito na via que pode redundar em acidente e até mortes.

Tal como os meios rodoviários envolvem acções complexas que dizem respeito não só ao condutor mas também aos peões, o mesmo ocorre quando se trata da imposição da norma prescritiva que tende a invalidar a variação linguística. As regras, embora regulem a forma como se deve transitar, não têm um alcance absoluto, isto é, não alcança todos, todos não falam da mesma maneira e todos não têm o mesmo grau de prioridade, o que exige do condutor e do professor prudência e capacidade de esclarecer os meandros das normas.

Entretanto, o radicalismo nas regras de condução, bem como na norma linguística, anula o direito à atenção ao peão que pretende atravessar a estrada, do aluno que traz em sala de aula a variedade linguística, do interlocutor que estabelece uma interacção comunicativa tendo em atenção o contexto, a região geográfica, o estrato social. É necessário que se adopte uma postura que valide a intersecção entre o ensino da "norma” e sua variação linguística, bem como a prioridade de passagem de um veículo ou do peão. Não podemos abdicar da variação linguística nem da norma, ambos precisam andar de braços dados de modo a evitar um mal maior em questões do funcionamento da língua. Para Bagno (2007) no seu livro "Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística”, o ensino da língua portuguesa carece de textos autênticos que reverberem a diversidade linguística do português tendo a realidade linguística como ponto de partida.

É urgente que se tenha um plano curricular de língua portuguesa plural, que contemple o funcionamento da língua e isso passa por redefinir as políticas e o planeamento linguístico, de modo a se ter em atenção a língua falada. Esse posicionamento viria recordar o contexto multilingue e não monolingue como se procura impingir à sociedade, desde o ambiente escolar até aos fóruns particulares.

* Linguista, Professor universitário

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