Opinião

A realização de reuniões virtuais nas empresas

O mês de Março é o mês em que as empresas andam atarefadas com o processo de convocação da assembleia geral anual dos seus sócios, na qual estes devem aprovar o desempenho da administração e as contas do exercício do ano anterior.

11/04/2021  Última atualização 05H40
Este processo importa que, previamente, o conselho de administração se reúna para elaborar o relatório de gestão e as contas de exercício e que o conselho fiscal também se reúna para conferir o seu parecer às referidas contas.

As reuniões dos órgãos sociais (da assembleia geral de sócios, do conselho de administração ou do conselho fiscal) são, em regra, um momento de encontro presencial dos respectivos membros. Mas, neste actual contexto de pandemia desencadeado pela COVID 19, as empresas deparam-se com um conjunto de medidas restritivas impostas pelo Executivo como resultado da declaração de Estado de Calamidade. Assim, a realização de reuniões presenciais encontra-se condicionada, tanto pelo número de pessoas que nelas podem participar como em virtude das restrições impostas à circulação de pessoas, consubstanciadas, designadamente, no cerco sanitário à província de Luanda e na ausência ou considerável diminuição de voos nacionais e internacionais. Por estas razões, são cada vez mais as empresas que ponderam a realização das reuniões dos seus órgãos sociais  por via telemática, utilizando as plataformas informáticas com as quais, ao longo do ano de 2020, todos acabamos por ficar familiarizados. Assim, a questão que se coloca é a seguinte: à luz da nossa lei, são válidas as reuniões virtuais dos órgãos sociais?

O Decreto Presidencial que regula as Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar Durante a Situação de Calamidade Pública Declarada por Força da COVID-19 consagra restrições à realização de reuniões em espaço fechado. Recomenda ainda que os eventos presenciais levem o mínimo de tempo necessário, com vista a reduzir o período de exposição das pessoas, e que, sempre que possível, se opte pela sua realização através de meios digitais de comunicação. Neste sentido, sou da opinião que o referido diploma consagra um dever de cuidado que se impõe aos organizadores das reuniões dos órgãos sociais (designadamente, ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, ao presidente do Conselho de Administração e ao presidente do Conselho Fiscal), para que os mesmos as promovam através de meios digitais de comunicação, sempre que tais meios sejam acessíveis para todos aqueles que delas devam participar.

Este dever de cuidado na convocação, organização e condução de reuniões que ocorram durante o Estado de Calamidade tem em vista a salvaguarda da saúde pública (um bem maior), evitando focos de contágio que sempre poderão ocorrer quando tais reuniões tenham carácter presencial. Cabe, pois, a quem tem o poder de convocar as reuniões, aferir da essencialidade (imprescindibilidade) da sua realização presencial, o que só se verificará quando for impossível assegurar que todos os participantes nelas estejam presentes virtualmente.

Como uma natural decorrência do princípio da boa-fé, impõe-se um dever de cuidado (de protecção) a quem é responsável pela convocação das reuniões dos diversos órgãos das sociedades comerciais, quando tem de determinar o modo de convocação e de realização das referidas reuniões. E, no contexto da pandemia da Covid-19, cabe também a quem tem estas tarefas aplicar com diligência os planos de contingência de acordo com as instruções das autoridades do Ministério da Saúde, assegurando o distanciamento social entre os participantes, o uso obrigatório de máscara e a desinfecção e limpeza prévia do local onde a reunião terá lugar. Os planos de contingência e as instruções resultantes do Decreto Presidencial que determina as Medidas Excepcionais e Temporárias devem ser vistos como instrumentos organizativos, que deverão ser adaptados e ajustados às especificidades de cada sociedade comercial e ao evoluir da situação epidemiológica. O facto de termos actualmente uma segunda variante da Covid-19 que está em propagação, exige cautelas adicionais no que respeita à realização de reuniões dos órgãos sociais nas quais devam participar um elevado número de pessoas. Todas estas razões apontam vantagens para a preferência por reuniões virtuais dos órgãos das sociedades comerciais angolanas.

Hoje, a realização de assembleias virtuais pode já considerar-se uma prática corrente um pouco por todo o mundo. Neste sentido, a Directiva da União Europeia sobre Direitos dos Accionistas estabelece que os países da União Europeia devem abolir quaisquer restrições à participação dos accionistas nas assembleias através de meios eletrónicos e aceitar as nomeações por procuração através de meios eletrónicos, porque a utilização de meios telemáticos promove uma participação mais activa dos accionistas nas reuniões da assembleia geral. Em Portugal, na sequência da pandemia, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o Instituto Português de Corporate Governance (IPCG) e a Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado (AEM) emitiram uma recomendação conjunta, na qual promovem a utilização de formas alternativas de realização de assembleias gerais, mediante o recurso a meios telemáticos. Nesta declaração refere-se que as assembleias virtuais devem assegurar a compatibilização do exercício dos direitos dos accionistas com os elevados padrões de segurança, saúde e bem-estar de todos os envolvidos.

Entre nós, a Lei das Sociedades Comerciais não prevê expressamente a possibilidade de os sócios, os administradores ou os membros do Conselho Fiscal de uma sociedade estarem fisicamente em espaços diferentes e se reunirem, em tempo real, através de meios telemáticos, sendo toda a regulação sobre convocação, realização e votação atinente a assembleias presenciais. Sem prejuízo, tenho vindo a defender nos últimos anos uma interpretação actualista das disposições da Lei das Sociedades Comerciais, no sentido de ser permitida a realização de reuniões dos órgãos sociais através de meios telemáticos. Na verdade, a Lei das Sociedades Comerciais data de 2004 e, à data, a utilização de Skype Calls, de conferências via WhatsApp, Zoom ou Teams (para citar algumas das plataformas mais emblemáticas) era desconhecida, pelo que não era exigível que o nosso legislador tivesse já consagrado a possibilidade de audiências virtuais. Mas a verdade é que a evolução tecnológica é uma realidade que se impõe continuamente e que foi sendo apreendida pelas empresas: têm sido várias as reuniões de órgãos sociais que, mesmo antes da pandemia, se realizavam virtualmente, especialmente nas empresas angolanas que têm sócios estrangeiros, que deixam de sentir a necessidade de viajar para Angola para a realização das referidas reuniões.

No âmbito da reactivação dos trabalhos da Comissão da Reforma da Justiça e do Direito, o que ocorreu em 2020, um dos pontos cuja actualização foi proposta foi exactamente o respeitante às assembleias virtuais. Sugeriu-se que estas passassem a ser amplamente permitidas, salvo se os estatutos da sociedade em questão as proibirem expressamente. Deste modo, as reuniões poderão realizar-se através de videoconferência, que deve ficar devidamente registada/gravada, devendo os organizadores da reunião assegurar-se que só entram na reunião virtual pessoas que estejam munidas dos respectivos códigos de acesso.

Esta abordagem pró-reuniões virtuais dos órgãos das sociedades comerciais que aqui apresento, à luz do direito angolano actualmente em vigor, assenta, essencialmente, em cinco argumentos: (i) no facto de as mesmas não serem proibidas pela Lei das Sociedades Comerciais; (ii) na necessidade de se efectuar uma interpretação actualista de todas as disposições da Lei das Sociedades Comerciais atinentes às reuniões dos órgãos sociais, que têm em vista apenas as assembleias presenciais (de modo a nelas se incluírem também assembleias não presenciais); (iii) na premência de se observar o dever de cuidado imposto pelas medidas do Estado de Calamidade a quem tem o dever legal de convocar a reunião do órgão social em questão; (iv) no facto de a utilização de meios telemáticos ser já uma tendência a acolher na reforma do Direito Comercial em curso; e (v) na importância de se assegurar a participação efectiva de todos os membros dos órgãos sociais nas respectivas reuniões (atentas as restrições à circulação de pessoas actualmente em vigor e ao facto de muitas dessas pessoas, por pertencerem a grupos de risco, deverem salvaguardar-se de participarem em reuniões presenciais que tenham lugar em espaços fechados).

No momento em que as deslocações, tanto dentro do território nacional como entre países, se encontram largamente condicionadas, a previsão legal expressa da possibilidade e dos requisitos para que as reuniões dos órgãos sociais possam realizar-se através de meios telemáticos contribuiria de modo significativo para responder a uma necessidade premente das empresas angolanas.


Sofia Vale |*

* Professora da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto

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