Opinião

À sombra da democracia

Luciano Rocha

Jornalista

A democracia representativa, pela qual as populações delegam, pelo voto, quem decide por elas, a mais propalada como solução dos povos, é, também, a que revela maiores contra-sensos, desde logo pelas diversas formas como pode ser exercida.

04/03/2021  Última atualização 08H50
Aquela forma de governar, também designada por democracia indirecta, depende não somente da vontade dos votantes, mas de acordos, feitos de cedências, antes e pós escrutínios, não raro contra os interesses do eleitorado, designadamente dos mais desprotegidos, invariavelmente as maiores vítimas de todas as crises, independentemente das origens. É ela, outrossim, que alarga o fosso e ergue barreiras entre os muito ricos e os muito pobres, estes últimos em crescendo no muito inteiro, inclusive nos países tidos como "arautos” das liberdades. As duas mais recentes crises - a económica e a provocada pela Covi-19 - desnudaram não apenas as fragilidades das chamadas nações desenvolvidas, como ampliaram desigualdades sociais, violências inter-raciais e xenófobas, até da parte daqueles que deviam ser o garante da ordem.

No turbilhão da pandemia que alastra o mundo, a descoberta de vacinas para a suster, que parecia ser, além de sopro de esperança, oportunidade da palavra "solidariedade” ganhar corpo gigante e transformar-se em onda universal, voltou a revelar o oposto: forma de multiplicar fortunas e egoísmo de pessoas e países.
As primeiras vacinas destinadas aos justamente considerados "combatentes da linha da frente” - médicos, enfermeiros, socorristas, todos os profissionais do sector da saúde, mesmo os aparentemente pouco decisivos -, principais figuras de Estado - Presidentes da República e Chefes de Governo - idosos, portadores de certas doenças, incluídos nos "grupos de risco” foram preteridos, em alguns países, por quadros médios, em alguns casos nem isso, familiares e amigalhaços. Vários, para já, foram descobertos, demitiram-se ou demitidos. O nepotismo, não é exclusividade de países africanos e novos, como o nosso.

Os primeiros casos isolados das primeiras trafulhices com a vacinação para travar a propagação da Covid-19, as primeiras manifestações de egoísmos da parte de Governos ocorreram em Estados ditos faróis da democracia.
Além daqueles exemplos, que o coronavírus desnudou, somam-se, ao longo de décadas, os casos antidemocráticos de países considerados timoneiros das liberdades, onde a democracia - a "igualdade entre todos” é um dos princípios basilares - é frequentemente aviltada por ventos de interesseiros. Atente-se no caso de Nyanmar, vítima recente de um golpe de Estado militar, que levou a demissão e à prisão domiciliária da Chefe de Governo, Aung San Suu Kyi. Essa mesma, que foi lutadora contra a ditadura fardada, exilada, regressada ao país, perseguida, vencedora do Prémio Nobel da Paz. O Ocidente democrático rejubilou com a distinção. Por pouco tempo.

Ainda as hossanas pela distinção ecoavam, quando ela aceitou integrar o Executivo birmanês, colaborando, no mínimo, pelo silêncio, contra o extermínio da minoria muçulmana Rohingyas. O prémio foi-lhe, naturalmente, retirado. Os mesmos democratas do Ocidente, e bem, aplaudiram o castigo.
A ex-Nobel da Paz foi agora deposta pelos militares. As vozes dos arautos das liberdades voltaram a ouvir-se, a pedir a "reposição da legalidade” em Myanmar. Legalizar o quê? O extermínio da minoria muçulmana Rohingyas, a mais perseguida do mundo? Há incongruência maior do que esta?

A democracia que os auto-intitulados praticantes da liberdade pretendem ver espalhada pelo mundo continua a ser pouco democrata, mesmo a indirecta, vulgarmente designada representativa. Os exemplos das vacinas para suster a Covid-19 e o de Nyanmar são apenas dois e chegam. Mas, há muitos mais, que dispensamos.
À sombra da democracia quantos segredos se escodem.

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