Cultura

A vizinha mais antiga da cidade do Uíge

Silvino Fortunato

Do outro lado da estrada, semi-asfaltada, que deixa salientes os mecanismos de escoamento das águas pluviais, está o bairro Tomesa, cujos primeiros habitantes teriam emigrado do bairro Mbanza Mpolo e preferido fixar-se nas terras de Kimakungu, conforme o depoimento do mais antigo cidadão residente em Kimakungu, José Santos, agora com 76 anos de idade, que se socorre da reprodução de histórias contadas pelos seus mais velhos.

02/05/2021  Última atualização 14H19
O novo rebento discográfico de Paulo Flores já está disponível em todas as plataformas digitais e de streaming e nas lojas de música. © Fotografia por: Mavitid Mulaza | Edições Novembro | Kimakungu
Mais a baixo, num espaço que se confunde pertencer a Tomesa, encontra-se o cemitério, onde jazem os finados de Kimakungu, assim como a pracinha, a escola e o posto médico que atendem ambos os bairros. "Sempre vivemos em harmonia, desde que os do Tomesa vieram nos encontrar e lhes demos o lugar para viverem aqui”, disse o ancião. A totalidade do bairro Kimakungu encontra-se confinada longitudinalmente entre a via asfaltada e uma vala, consideravelmente íngreme, por onde passam as águas do rio Kamatandala.

Duas travessas de terra batida e com inúmeras valetas, ondulações e buracos, vão dar à principal rua do bairro, onde perfilam importantes "instituições” do poder político e económico. Aqui estão o comité de um partido, a regedoria e diminutas cantinas. A antiga loja do povo de Kimakungu, da era do monopartidarismo, deu lugar à sede de um partido político, que ao mesmo tempo atende ao funcionamento da regedoria.


Configuração geográfica
Antigamente, o território de Kimakungu tinha como limites o rio Kansangano, envolvendo as baixas de Kanjiu e Kankele, seguia para Kinginga Ngamba, atravessando a estrada principal (Uíge/Negaji), passava por detrás da escola do Mbanza Mpolo até ao rio Samba, daqui cruzava os rios Kandombe e Kakole, entrava no rio Kulo e descia com o mesmo rio antes de passar pelo deserto do Biba e seguir o mesmo rio até a região do Mpako. A partir deste lugar descia e atravessava a planície descampada do Mpete e entrava novamente no rio Lóe, até o rio Kasanganu.

De um vasto território de outrora, hoje Kimakungu se encontra reduzido a um bairro de pouquíssima extensão, por perder parte considerável do território, o que deu lugar a vários dos novos bairros suburbanos que circunscrevem a cidade do Uíge, como o Kandombe Velho, Kandombe Novo, Kapote, Benvindo e outros, que incluem os espaços onde foram erguidos o hospital municipal, o Paço Episcopal e os edifícios do centro urbano pertencentes à Igreja Católica.


Longevidade
Sem fundamentação científica, os residentes do actual bairro de Kimakungu indicam que a aglomeração das tribos que formaram o aldeamento terá acontecido por volta do ano de 1850, tendo sido fundada por Makungu a Nzumba, uma mulher que conduziu as populações desde o antigo assentamento que chamavam Mpinganu, que ficava lá para a cordilheira do Uiji.
Reza a história, contada de geração a geração, que Mkungu a Nzumba congregou as tribos, então chefiadas por Mpunzu a Kongo, Me Nguba, Me Kiionguia, Mbemba Kassume, Me Ndundi, Kamjongo, Me Tongo, Kinjangu e  Me Tonto.  Com elas emigrou da Serra de Mpinganu, então afectada por várias doenças, nomeadamente doença do sono e malária. Fugindo do surto de doenças, fixaram-se inicialmente na Serra de Kaxexi, precisamente na região de Nkondo.

De acordo com o ancião José Santos, pelas mesmas razões abandonaram Kaxexi, indo depois se fixar no deserto de Biba, onde muito tempo depois viriam a indicar o colono Júlio Tomás Berberan para colocar o seu acampamento, formando depois aquilo que viria a ser, até hoje, a sede da província do Uíge, isto em 1917. Com o falecimento, em Biba, da célebre Makungu a Nzumba, foi elevado a chefe Mbunzu a Kongo, da tribo Kinjango. Mbunzu era um exímio funileiro, cujas habilidades lhe permitiam fabricar armas de guerra e de caça. Mbunzu a Kongo estabeleceu depois relações com líderes de outros povos vizinhos, tal como Me Kaxexi, Me Kiongua de Ndombi a Kapemba, Mbemba Ngangu da tribo Kianga do povo de Kiloge, e outros.

Com o passar do tempo Kimakungu foi crescendo, tendo integrado populares pertencentes às tribos de Me Kicanga, Me Texi, Kimbangu, Kiledi, Me Kamba, Kitambi e Kimata, resultando num crescimento demográfico que os obrigou a procurarem novo assentamento na região de Kihinda, antes de voltarem definitivamente a se estabelecerem na região tradicional de Ngundu ya Kimakungu, onde ainda se podem divisar algumas palmeiras, consideravelmente vencidas pelo tempo.
"Algumas campas que faziam parte do acervo local foram derrubadas pelas autoridades coloniais portuguesas para darem lugar a moradias, já depois de 1961”, disse, já com alguma dificuldade na fala, o seculo José Santos, que revela esquecimento de alguns factos por causa da idade.

Por causa da amnésia José Santos, a quem os moradores indicam sempre para relatar a história da comunidade aos interessados, foi obrigado a fornecer aos jovens, recentemente, as informações e o conhecimento que detém sobre a evolução do bairro. Tais informações foram transcritas numa brochura.
Segundo José Santos os sucessivos governadores portugueses, gradualmente, foram retirando terras à soberania de Kimakungu, como foram os casos do Kiinda, do Ngundu e de outras terras que foram entregues a outros povos. Face à usurpação, que disse ser instigada pelos vizinhos na época colonial, muitos habitantes de Kimakungu viram-se obrigados a vender a preços módicos as suas pequenas possessões de terras, em que faziam as suas lavras, o que contribuiu ainda mais para o confinamento do território do bairro, como se vê actualmente.

 
Instrumentos para dança e comunicação
Os habitantes primários de Kimakungu usavam o ngoma (batuque), kisanji, ngoio, kuige e lunvudividi como instrumentos musicais que ritmavam as danças e também serviam de meios de comunicação com os seus vizinhos, em casos de falecimento ou de outros acontecimentos relevantes. A circuncisão, que era praticada em lugares apropriados, designados "longo”, assinalava a fase de emancipação do jovem. Caracterizava-se pelo corte do prepúcio por um mestre (Nganga), acto sempre antecedido e sucedido por rituais apropriados, que iam noite a dentro, acompanhados de danças e encenações.

Os casos de adultério eram encaminhados e resolvidos pelas autoridades de Mbanza Mpolo, onde existiam os mágicos, os chamados Ngombo ou Nganga a Nkixi.  As aldeias eram divididas em kibelo (zonas), que eram lideradas por Mfumu a Kibelo (chefe de zona), que tinha a missão de controlar, defender e resolver os conflitos que emergiam. Kimbuta Vwa,  Me Ngumba, Kutandu, Kanjongo, Kuyalamu e  Me Kionguia são exemplos de grupos familiares e líderes que marcaram determinadas épocas.
No centro daqueles aglomerado familiar se dispunha o Kidiyelo, ou seja um ndjangu, onde o Nfumu a Hata (o chefe do bairro) se sentava e resolvia os problemas. Para a comodidade do chefe, todos os aldeões contribuíam com lenhas e mantimentos.


Sinónimo de poder

O homem polígamo era considerado como detentor de riqueza, porque as mulheres serviam de força de trabalho adicional. Não era para qualquer homem ter mais de uma mulher, por causa dos custos do sustento das mesmas. "Nenhum familiar aceitava entregar a sua filha a um homem com dificuldades económicas ou incapacidade de produzir”, disse José Santos.
O alambamento (longo) era obrigatório. Aos pais da filha assistia o direito de escolherem o marido para ela. Assim acontecia também para o rapaz, que era conduzido a uma rapariga cuja família detinha determinados poderes ou qualidades. Para que o mancebo tivesse boa companheira ou bom companheiro a família destes era estudada. Geralmente os casamentos aconteciam dentro das gerações ou entre gerações muito próximas, tendo sempre em conta a continuidade da linhagem.

Reza a história, repassada ao Jornal de Angola pelo mais velho José Santos, que havia casos em que alguns pais vendiam os seus progenitores para outras tribos, mais valentes, muitas vezes para a protecção das suas famílias. Na  transacção eram pedidos panos (milele), sal envolvido em cascas de milho (Kitxiati kia Mungua), bebidas (malavu) e outros bens.
A entrega do referido forro do milho contendo o sal significava a ocupação de uma certa rapariga por parte dos pais de um rapaz, um acto que acontecia por altura do nascimento da rapariga ou um pouco depois. Algumas ocupações ocorriam ainda enquanto a mãe estivesse grávida.   Caso o bebé fosse rapaz ao ocupante assistia o direito de lhe dar o nome e de ser seu padrinho.
O comércio era dominado pelos grupos familiares detentores de grandes produções. Era baseado em trocas de produtos ou na venda de escravos (Abika).

 
Igrejas cristãs
Nos primórdios da existência de Kimakungu, os povos adoravam algumas espécies de animais, rios, árvores e outros elementos naturais indicados pelos chefes de cada tribo como símbolo representativo de deuses. Por isso, eram proibidos de vandalizar tais bens patrimoniais divinos ou usá-los de modo desrespeitoso. A título de exemplo, o seculo José Santos indicou existirem tribos que não comiam toupeiras (pate), calombongui (gato) macaco (nkeue), nkenge e nkai (veado). O abate ou o consumo de certas plantas também era quijila (alvo de proibição).

Mais tarde, com a vinda dos portugueses, começaram a aparecer as missões de evangelização. Segundo o velho José Santos, inicialmente apenas os assentamentos portugueses recebiam o evangelho cristão, sendo repassado aos nativos à medida que se foram estabelecendo relações. "Foram os portugueses que trouxeram a Missão Cristã do Norte de Angola, pelas mãos do ministro João Gonçalves Sapateiro. Este contava com o auxílio do pastor Lopes Matuandi, em companhia de Margarida Suamo, Bania, Alexandré Unuca, Arbaldo dos Santos, Ernesto Maquita, entre outros. Eles foram os primeiros promotores do evangelho cristão nestas terras. Vieram depois as igrejas Convenção Baptista, trazida pelos pastores Raul Caputo e José da Costa Nzage, e a Católica, muito depois, por Joaquim Benjamim e Ricardo Gasto, os principais mentores”.

Para o tratamento dos doentes recorriam aos Nganga a Ngomba ou Nganga Nkixi, (kimbandas ou curandeiros). Utilizavam medicamentos baseados em plantas: raízes, folhas ou frutos como ndungu za nkombo, kapidi, njibidy, zipehe, mululua, nlombo a nvula, kafuko, musudisudy, monua, kabuacata, nfumu a hata, ludumbu, nsuemba, ngadiadia e nzeke.
Para o curativo de feridas utilizavam dipi (casca de uma planta chamada kisekaseka), txaki (folha de mandioqueira), dicaila, etc. Ainda usavam como gesso, em casos de fractura óssea, as cascas das árvores nkumbi e mpulukua.
Muitos destes medicamentos continuam em uso nos dias de hoje, disse por sua vez o soba de Kimakungu, Venâncio Raul Conto, que ajudava a rememorização do seculo, quando este se desviasse ou estivesse a esquecer algum pormenor.


Académica de Kimakungu
Venância Conto diz que foi em 1960 que Narciso Kavuandy, Rodrigues Kaniange e Victorino Kaputo fundaram o Clube Académica Associação de Kimakungu, enquadrado num movimento desportivo encetado pelo então presidente da câmara municipal do Uíge, lembrado como o Pinto. A entrada em competição do clube foi antecedido pela confecção do respectivo equipamento, de cor preta com um emblema branco, assim como pela compra da primeira bola de cabedal, na loja de um branco da cidade.
As bolas anteriores eram artesanais, feitas na base da resina de uma árvore que chamavam Wmawma ou "kwezak”, abandonadas com a aquisição da bola moderna. O primeiro campo de futebol existia no espaço que está defronte ao hospital municipal do Uíge.   
A criação da Académica de Kimakungu aconteceu no mesmo ano em que foi criado o Sporting Club de Mbanza Mpolo, da regedoria com o mesmo nome, um clube "muito forte na época, o que é testemunhado pelos inúmeros títulos e medalhas arrebatadas”. Era uma espécie de selecção, porque agregava muitos jovens de outras sanzalas, segundo o seculo Santos.
Os lendários jogadores de Kimakungu Alfredo Correia, Ramiro Rodrigues Kaniangu, João Lusambu, Geremiais Correia, Fernando Correia, Joaquim Benjamim, Alfredo Mbundu e Domingos Mário só se desvincularam do Clube de Mbanza Mpolo quando os mais velhos de então fundaram a Académica de Kimakungu.

Para o soba Conto, a estruturação das equipas da época aconteceu por força das iniciativas do presidente da câmara municipal do Uíge, o Pinto, que organizava torneios envolvendo equipas das regedorias, bairros e até da própria cidade, que eram constituídas somente por brancos, inicialmente. Esses torneios, integrando equipas de negros, tiveram lugar muito depois dos anos 40, quando foi construído o actual estádio 4 de Janeiro por Ferreira Lima, para o Clube Recreativo do Uíge, que era mais conhecido por CRU. "No período da construção do antigo campo do CRU os brancos jogavam entre eles”, ainda se lembrou o seculo.
Mais tarde, muitos jogadores do Académica, como os irmãos Correia (o Fernando, o Jeremias e o Alfredo) assim como o Fernando Fiety, foram contratados para jogar pelas equipas dos brancos da cidade, a dado momento dos torneios oficiais.
A confecção do equipamento do Académica de Kimakungu era feita, sem quaisquer custos, pelos alfaiates e costureiros da época: José da Costa Nzaji, Raul Kaputo, Jaime Nkamba, Pereira Nzaji, Morais Correia, Isaú Ernesto, Emília Rodrigues Kaputo e Lúcio Júlio.

A equipa base do Académica dos anos 60 era sustentada por Fernando Correia, Jeremias Correia, Alfredo Correia, João Lusambu, Virgílio Mário, Ramiro Rodrigues, Joaquim Benjamim, Alfredo Mbundu e Domingos Mário, alguns dos quais antes de serem contratados pelas equipas dos brancos da cidade. Distinto Wazaba e Domingos Nzarra eram os guarda-redes.
A equipa contava com uma ruidosa falange de apoio, constituída pelas raparigas do bairro, que se deslocavam a pé para todos os lugares onde a equipa fosse jogar. A claque feminina era constituída por Susana Jorge, Maria Luísa, Helena Miguel, Luísa Pedro, Zeferina Jorge, Esperança Nzaji, Emília Rodrigues Kaputo, Margarida Pedro e Lúcia Júlio, que entoavam canções como "Nga mona Cademi lengako…” (se vires o Académica foge, porque eles são técnicos da bola).

"À medida que as integrantes da claque fossem, gradualmente, tomando responsabilidades domésticas, outras gerações as sucediam, daí a integração das jovens Falsa Ndemba, Carolina Jaime, Helena Félix, Suzana Nzaji, Catarina Alexandre, Margarida Narciso, Engrácia Rodrigues, Teresa Venâncio, Margarida Arnaldo, Julieta Jeremiais e outras, muitas delas ainda vivas mas em idades já avançadas, a residirem na Kimakungu dos nossos dias”, disse o soba Manuel Raul Conto.
Já sem o fulgor dos tempos coloniais, o Académica ainda existe, participando apenas nos torneiros não federados, como o Girabairro ou os torneios alusivos a determinadas efemérides, sob direcção de Pedro de Almeida, Fernando Nfieti João, Joaquim Benjamim, José Raimundo e Henrique da Silva, sendo apoiada pelo sobado e por muitos moradores.    

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