Opinião

Adeus, Raúl

João Melo*

Jornalista e Escritor

É considerado uma lenda da cinematografia militar cubana e não o sabíamos. No que me diz respeito, não me lembro mais como o conheci. Só sei que nos tornámos amigos hasta siempre.

21/04/2021  Última atualização 06H00
Fizemos vários trabalhos juntos, quando ele era realizador e câmara da produtora televisiva DreadLocks, do Nguxi e do Dias, com a qual a agência que tive até há poucos anos, a Movimento, colaborava. Como fotógrafo, registou alguns actos da minha família, inclusive as duas cerimónias (civil e religiosa) do meu casamento com a Stela. Convivemos de perto em numerosas ocasiões, em particular em casa do Nguxi, do Dias e do João Belisário.
A simplicidade era o seu traço definidor. Nunca me falou, portanto, do seu passado revolucionário. Fê-lo, por certo, com pouca gente. Talvez devido ao espírito de solidariedade sul-americana, o tenha feito apenas com o Belisário, esse velho militante brasileiro que lutou contra a ditadura brasileira instaurada em 1964 e aqui veio parar em 1976, atraído pelas promessas revolucionárias da época. A história de Raúl Booz – el niegro Booz - dá um romance. Esteve na Guiné-Conacry e na Guiné-Bissau em 1973, quando Fidel Castrou se encontrou com o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, tendo filmado essa histórica reunião. Dois anos depois, quando Fidel anunciou, de comum acordo com Agostinho Neto, mas sem consultar os soviéticos, o desencadeamento da Operação Carlota (a ponte aérea que permitiu a intervenção das forças cubanas em auxílio dos combatentes do MPLA, a fim de travar a dupla invasão zairense e sul-africana em Angola), ele estava lá, registando tudo com a sua câmara.
Em 1975 e 1976, esteve nos combates cruciais contra as forças sul-africanas que haviam invadido o território angolano. As suas imagens dos primeiros quatro militares sul-africanos capturados nesses combates, na região da Quibala, estão nos arquivos de muitas cadeias televisivas internacionais, tendo, na altura, influenciado o reconhecimento, por uma margem estreitíssima, da República Popular de Angola pela OUA (Organização da Unidade Africana). 
Raúl esteve também em vários outros países africanos, que foram palco de tentativas revolucionárias, como a Etiópia. Mas o seu sonho de há muitos anos – contaria ele mais tarde ao João Belisário – era morar em Angola. Assim, voltou para o nosso país em meados dos anos 90, iniciando uma permanência que acabaria por revelar-se imprevisível e atribulada, digna, como iniciei esta crónica, de um romance.O que sei é que começou por trabalhar na TPA, onde chegou a integrar o projecto de produção daquela que seria a primeira grande novela angolana: "O segredo da morta”, do romance homónimo de António de Assis Júnior. Seria uma novela de época, como sonhava o então director da televisão estatal angolana, Carlos Cunha. Devido à situação geral do país, o projecto não avançou. Angola tinha iniciado um período de drásticas mudanças políticas e económicas, com o advento do multipartidarismo e da economia de mercado, e Raúl Booz teve de virar-se para sobreviver, começando a realizar outras actividades, ao mesmo tempo que mantinha a sua colaboração com a TPA.
Foi nessa altura e nessas circunstâncias que nos conhecemos. Raúl acabou por permanecer em Angola durante cerca de 25 anos, partilhando connosco as dificuldades diárias da maioria da população. Nos últimos tempos, as suas dificuldades agravaram-se, em especial depois de um acidente doméstico, no qual queimou uma das pernas. A piorar as coisas, roubaram-lhe as câmaras de cinema e de fotografar, assim como o seu laptop de trabalho.
Um grupo de ex-colegas na TPA e de amigos vários, inspirado pelo Francisco Pedro, da APROCIMA (Associação de Profissionais de Cinema de Angola), e liderado pelo João Belisário, montou então uma autêntica "operação” solidária, para recuperar a debilitada saúde de Raúl Booz e permitir o seu regresso ao país natal. Graças a uma série de apoios individuais e institucionais, ele regressou no passado sábado, 17 de Abril, a Cuba, no voo da TAAG. Dentro de dias, após cumprir a quarentena de sete dias por causa da Covid-19, estará com a sua família – a mulher, os filhos e os netos -, assim como os antigos colegas, que, admiravelmente, sempre o aguardaram, após tantos anos de ausência.Adeus, Raúl. Como combinado, a partir de agora saberemos uns dos outros pelo WhatsApp.
*Jornalista e escritor

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião