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África: Os Desafios da Construção dos Estados/Nação.

No ano de 2006, aquando da 1ª participação de Angola na COPA do Mundo de Futebol, ocorrida na Alemanha, escrevemos para o “Jornal de Angola” um artigo publicado em duas partes sob a denominação “O Futebol e o Estado-Nação em África”, onde procuramos evidenciar como o futebol poderia desempenhar um papel importante na formação da Nação, nos países africanos da região sub-sahariana.

09/03/2021  Última atualização 10H24
© Fotografia por: DR
Nessa altura, fruto da importância que o futebol tem na mobilização e união dos povos em geral, referimos que as estrelas internacionais africanas de futebol, com destaque no futebol europeu, eram líderes de vastas comunidades de concidadãos nos seus países e poderiam aspirar a serem futuros líderes políticos, nos países de onde eram originários.
Cerca de uma década após a publicação desse artigo, em 2017, a Libéria elegeu, como Presidente da República, a estrela mundial de futebol George Weah, que foi eleito melhor jogador do mundo pela FIFA no ano de 1996, com 30 anos de idade.

Os países africanos, incluindo o nosso país Angola, vivem grandes desafios na luta pela sua afirmação como países independentes e soberanos, num contexto internacional complexo e com riscos de regresso aos conflitos étnicos, religiosos e fronteiriços.
Os recentes conflitos internos da Etiópia, da República Centro-Africana ou a situação mais preocupante da República Democrática do Congo (ex Zaire) onde se revivem momentos de instabilidade, que continuam por resolver e que ameaçam a estabilidade dos 8 países que com ele fazem fronteira, mas todos com menor dimensão que os 2.511km com Angola.
Os limites fronteiriços não parecem hoje pôr em causa a afirmação da soberania e integridade territorial da maior parte dos países africanos sub-saharianos, decorrente do respeito pelas fronteiras herdadas da ocupação colonial, em que a Eritreia constitui uma excepção a essa realidade

Mas se a soberania territorial parece inquestionável, à luz do direito internacional, o desafio da identidade e unidade nacional, inerente à constituição de um Estado-Nação é um processo, ainda, em formação e com grandes desafios a vencer.
A existência de um Presidente da República, de uma bandeira, de um hino nacional e de uma moeda são referências importantes, mas insuficientes para a formação de um Estado-Nação, em função da realidade sócio-histórica dos países da região sub-sahariana de África.

As fronteiras artificiais dos países africanos, decorrentes da Conferência de Berlim, realizada em 1884 e 1885, que marcou a divisão territorial da África pelas principais potências colonizadoras, dividiu antigos reinos, como o Reino do Congo, que agrupava, o que é hoje, parte dos territórios da República de Angola, da República do Congo (Brazzaville) e da República Democrática do Congo ( Kinshasa).

Apesar dos colonizadores terem encontrado reinos organizados, como o Reino do Congo, o Reino Ashanti, no Gana, ou o Reino de Monomotapa, no actual Zimbabwe, e tantos outros, a verdade é que essa unidade política, de aglomerados populacionais sob administração de um poder político foi destruída pela ocupação colonial.
Esta ruptura das comunidades políticas anterior à colonização, que não podia ser recuperada com a ascensão desses territórios à condição de países independentes e soberanos, e por isso não permitiu, como aconteceu em diversos países da Europa, que houvesse uma solução de continuidade geográfica, cultural, sociológica e política.

Os lideres nacionalistas africanos, como Jomo Kenyatta, Leopold Senghor, Kwame Nkrumah e Agostinho Neto, tiveram a responsabilidade de congregar sob a mesma bandeira, o mesmo hino nacional, a mesma moeda e as suas lideranças politicas, diversos grupos populacionais, com diversidades culturais, étnicos e linguísticas.
Nos países que ascenderam à independência com processos de luta armada, como foram os casos da Argélia, da Guiné Bissau, de Angola e Moçambique, a guerra agrupou nacionalistas e guerrilheiros dos diversos grupos étnicos e colocou temporariamente esses países numa condição mais favorável à unidade nacional e menos expostos aos conflitos étnicos.

Nesse contexto histórico, o desafio da fundação de um substrato espiritual, cultural e sociológico inerente à criação de factores duma identidade nacional, necessários à formação de uma Nação e, ao mesmo tempo conseguir o desenvolvimento económico e social inclusivos, foram e continuam a ser grandes dilemas das elites políticas dos países africanos, na região sub-sahariana.
 Mas o que é a Nação??? O que caracteriza a base de constituição ou formação de uma Nação???
A Nação é algo não material, e por isso um sentimento espiritual que une e identifica as pessoas e lhes dá o sentimento de pertença a uma comunidade politicamente organizada, num espaço territorial reconhecido, pela comunidade internacional, como um Estado livre e soberano. São os valores sócio-culturais, linguísticos e sobretudo históricos que constituem o substrato ou a base de uma Nação.
A partilha de um passado comum na história dos membros dessas comunidades, a língua ou ainda a religião, foram factores estruturantes na formação da Nação moderna que, em todo o mundo, passaram a integrar um determinado espaço territorial, sob a mesma administração política, representada pela Monarquia ou pela República.
As barreiras físicas que representaram as florestas densas e hostis, e a reduzida navegabilidade dos rios, com excepção dos rios Nilo e do Congo, não permitiram à região da África sub-sahariana criar os grandes espaços de circulação  de pessoas e bens e criou uma reduzida pressão demográfica sobre os vastos territórios que ocupavam.

Em face dos obstáculos que representa o meio geográfico, os povos da África sub-sahariana ocupavam grandes espaços territoriais, mas sem comunicação com muitos dos seus vizinhos, onde a identidade étnica e cultural era o factor principal de pertença a uma determinada comunidade politicamente organizada em reinos, sobados ou outras formas.
Para além das barreiras físicas naturais, as barreiras linguísticas e o fraco desenvolvimento do comércio não permitiram que essas comunidades evoluíssem para reinos mais fortes e organizados, como aconteceu no Egipto.

A ocupação colonial na região sub-sahariana do continente africano, iniciada no sec. XV e XVI, deu lugar a uma ruptura dos sistemas  de organização política existentes e ao aproveitamento das diferenças étnicas para potenciar conflitos entre as diferentes comunidades, que culminou com a criação de diferentes colónias, com fronteiras artificiais.
Neste percurso histórico e porque a colonização da região da África sub-sahariana, com rara excepção de países como a Etiópia que nunca foi colonizada ou a Libéria (criada artificialmente para receber afro-americanos), durou cerca de 5 séculos, a resistência política e cultural à colonização constitui o património político e histórico mais importante desses povos.

A história da luta política e em alguns casos a luta armada pela independência desses povos é o elemento que forja e congrega a nova identidade desses diferentes grupos étnicos, que passam a ter simultaneamente uma língua de comunicação trazida pelo colonizador, com excepção dos povos da África oriental que têm no swaíli um raro património linguístico anterior à colonização.
É incompreensível que as elites políticas, e não só, dos países africanos da região sub-sahariana não tenham impulsionado o estudo e difusão desse património histórico, como parte nuclear da identidade nacional, para ser transmitido às novas gerações.
Neste ambiente, as divisões e conflitos étnicos não só se mantiveram, como, não raras vezes, deram lugar a conflitos militares, de que, as tentativas de separação do Biafra na Nigéria e do Catanga no ex-Zaire, hoje Congo Democrático, e posteriormente a separação da Eritreia da Etiópia, foram os casos mais expressivos dessa conflitualidade.

O fim da "guerra fria” com a queda do "muro de Berlim” em Outubro de 1990, marcou o início de uma nova fase de hegemonia económica da economia de mercado e da democracia ocidental multipartidária.
À manutenção das fracturas étnicas, sem a consolidação dos respectivos Estados, juntou-se a luta político-partidária que, na maior parte dos países da África Sub-sahariana, assenta numa base étnica, incontornável pelas insuficiências verificadas no desenvolvimento económico e social desses países.
Rui Cruz |*

O modelo de democracia importado do ocidente, longe de ser uma fonte de unidade e de contribuir para a construção de Nação, tem servido para que a maioria dos partidos busquem nos diferentes grupos étnicos, as suas bases de apoio, agravando o potencial de regresso a velhos conflitos.
Numa perspectiva histórica, trata-se de um novo modelo de organização política importado e de que as elites africanas ainda não conseguiram adaptar à realidade sócio-cultural e étnica dos seus países.

Em pleno século XXI, a maior parte dos países africanos da  região sub-saharianos, debatem-se com fracturas étnico-culturais, agravadas com as divisões de natureza politico-partidária que, ainda, condicionam a formação dos Estados-Nação, onde cada pleito eleitoral é um factor de tensões políticas e sobretudo étnicas.
O que poderão as elites políticas, religiosas, académicas, empresariais, culturais e desportivas fazer para se vencer essas barreiras e criar as bases seguras de um Estado-Nação nesses países?
Iremos dar o nosso modesto contributo, na 2ª parte deste artigo, que será mais uma reflexão do que qualquer tentativa de encontrar uma solução, que, pela sua complexidade, exigirá a reflexão dos diversos membros dessas elites.  

*Professor universitário reformado (Continua)

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