Opinião

África sob o olhar e o saber de Cheik Anta Diop

Filipe Zau

Jornalista

Coube ao historiador senegalês Cheik Anta Diop (1923-1986), director, durante largos anos, do Institut Fundamental d’Afrique Noire, em Dakar, demonstrar que o Egipto foi negro até uma fase muito avançada da sua história e que é nítido o parentesco cultural entre o Egipto faraónico e a África negra.

17/03/2021  Última atualização 06H00
Para tal, apoiou-se em fontes de escritores da antiguidade, tais como Heródoto, Xenofonte, Políbio e Tácito, bem com ainda em investigações pessoais sobre pré-história, tradição oral, linguística, arqueologia, etnologia, toponímia, egiptologia e antropologia.

Esta tese de Diop, defendida na segunda metade do século XX, teve a sua origem em "Da Igualdade das Raças Humanas (Antropologia positiva)", do antropólogo, jornalista e político haitiano Joseph-Anténor Firmin (1850-1911), que, em finais do século XIX, afirmou que "o Egipto era um país de negros africanos, a raça negra foi a primogénita de todas as raças no percurso da civilização; é a ela que se deve o primeiro brilho do pensamento, o primeiro despertar da inteligência na espécie humana.” Antenor Firmin, por sua vez, reagiu ao «Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas», antes publicado, no início na segunda metade do século XIX, pelo francês Arthur de Gobineau (1816-1882).

Este pretendia dividir a espécie humana em diferentes "raças” (negra, amarela e branca), cada uma delas com caracteres permanentes que, em sua opinião, seriam transmitidos de forma hereditária. Uma teoria desprovida de qualquer cientificidade, mas que servia para justificar o hediondo tráfico negreiro.
Cheik Anta Diop, no século XX, acabou por provar a real uniformidade existente nos traços culturais essenciais dos grupos humanos negros, apesar das particularidades étnicas, linguísticas, religiosas e sócio-políticas e usos e costumes diferenciados. Todos os povos negros sub-saharianos apresentam características similares em relação à concepção da vida e do mundo. Reuniu todo o passado negro-africano e eliminou a dispersão descritiva das culturas locais, pois considerou-as aspectos de uma única e idêntica cultura. O filósofo e historiador congolês Théophile Obenga, no seu livro «Méthode et concepcion historiques de Cheik Anta Diop» refere que "a consciência histórica dos negros da África nascerá com o conhecimento (consciente) de todos estes aspectos culturais regionais.”

Antes desta tese de Cheik Anta Diop as populações africanas apareciam como se fossem ilhas isoladas, estranhas umas às outras e sem qualquer traço histórico comum. Ora, Diop, em «L’Afrique Noir, pré-coloniale», procurou "localizar no Vale do Nilo (partindo dos Grandes Lagos) o berço primitivo de todos os povos negros que hoje vivem dispersos pelos diferentes pontos do continente.” Mais do que um objectivo estritamente científico, o principal desejo de Diop era o de fundamentar a personalidade cultural negra em bases históricas firmes, despertando, por outro lado, uma consciência nacional livre de tribalismos e particularismos micro-nacionalistas.

Em "Anteriorité des civilizations negres: mythe ou verité historique?", referiu que "a criação de uma consciência colectiva nacional… e a renovação da cultura nacional, eis o principal objectivo de toda a acção progressista em África. É a melhor maneira de evitar as diversas formas de agressão cultural. Agora só uma revolução cultural conseguirá notáveis mudanças qualitativas. Ela terá que despertar o colosso adormecido na consciência de todo o africano”.
Toda a obra de Cheik Anta Diop assenta num facto para ele incontestável: a realidade negro-egípcia. Para ele os faraós do Antigo Egipto não eram brancos, mas negros, tal como os seus súbditos. A Etiópia e o Sudão Meroítico (do séc. II a.C) teriam sido os portadores da cultura faraónica até ao interior africano.

Os conquistadores e povoadores do delta nilónico (IV milénio a.C.) que fundaram as primeiras dinastias egípcias eram provavelmente os negros do sul.  Os povos berberes não existiam antes do III milénio. Tal como todos os povos do Norte de África, os berberes, desde a sua origem foram traço de união bio-antropológica entre o mundo mediterrânico e o mundo negro. Logo, não é em vão que se fala de unidade étnica e cultural até ao terceiro milénio, já que a mesma emana da própria natureza dos povos e das civilizações do continente africano. Não é provável que as origens da civilização egípcio-núbia possam estar fora de África.

Esta origem está presente em todos os documentos exumados da arqueologia pré-histórica e proto-histórica, segundo a expressão de Cheik Anta Diop "em toda a extensão da primeira nação negra organizada”.
Complementarmente, o antropólogo F. Falkenburger, na sua diagnose da composição racial do Alto e Baixo Egipto no período proto-histórico constatou que "os negros puros eram 36% da população, enquanto os mediterrânicos (Povos do Mar) não passavam dos 22%. Convêm advertir que a penetração das etnias não negras africanas, nesta altura, já havia começado há muito e que, no plano humano, as consequências já se faziam sentir. O autor aponta a presença de 20% de população mestiça.”

Ainda de acordo com Diop, "a história da humanidade continuará confusa, enquanto não admitirmos dois berços primitivos que modelaram os instintos, o temperamento, os costumes e as concepções morais das duas fracções da humanidade que se encontraram depois de uma longa separação realizada na pré-história.” A antiga sociedade egípcia apresentava um carácter agrário e "matriarcal”, não no sentido do matriarcado ginecocrático, mas no que se refere ao predomínio da mulher como mãe que gera e define a linhagem. O berço meridional é caracterizado por uma descendência matrilinear que atingiu a Etiópia, a Líbia, o Egipto e a África negra.

Os impérios do Ghana e do Mali adoptaram esta tradição, tal como confirmam os escritos do tunisino Ibn Khaldum (1332-1406), considerado um dos maiores historiadores de todos os tempos, criador da história científica. Diop considerava que este sistema "não é um triunfo absoluto e cínico da mulher sobre o homem. É antes, um dualismo harmonioso, uma convenção aceite pelos dois sexos, para edificar uma sociedade sedentária onde cada um se realiza plenamente.” Este regime matrilinear é muito frequente na África negra e foi adoptado logo de início.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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