Cultura

Alexis Kagamé, o pioneiro

Luís Kandjimbo |*

Escritor

A porta de acesso para o meu conhecimento da história e da cultura do Ruanda foi a obra do filósofo Alexis Kagamé (1912-1981). Merece destaque “La Philosophie Bantu Comparée” (Filosofia Bantu Comparada) que adquiri em 1984, na livraria “Presénce Africaine”, em Paris

23/05/2021  Última atualização 18H18
© Fotografia por: DR
Nos últimos dias, andei a reler a entrevista biográfica de Paul Kagamé, o presidente do Ruanda, concedida ao jornalista francês François Soudan. Não é difícil perceber os contornos da história de vida de um ruandês cujo nome aparece em parangonas de revistas e jornais por boas e más razões. Filho de um país situado na região dos Grandes Lagos de que geralmente, entre nós, muito se fala devido à liderança da Conferência Internacional que, sucessivamente, foi cabendo a Angola. Mas do Ruanda não se fala por motivos que não suscitam coberturas mediáticas. Por exemplo, de filósofos e escritores, tais como Alphonse Rutaganda ou  Maniragaba Balibusta. No plano intelectual, pensa-se na mediação dos tradutores para que as obras destes autores sejam inteligíveis. Apesar disso, há muita gente que acredita na possibilidade de um diálogo directo com os pares ruandeses. Sou um deles. É que uma semana de iniciação em Kinyarwanda basta para uma proficiência linguística nas semanas seguintes. Tal facto tem uma explicação.


Alexis Kagamé  e as línguas comuns

Na lexicografia Kinyarwanda existem muitas palavras comuns às das línguas nacionais angolanas. É o caso de "umutima”, unidade lexemática comum a uma outra do Umbundu, "utima”. Desenha assim a possibilidade de determinar os traços identitários das civilizações e culturas da zona bantu. Este foi o desafio a que se propôs o filósofo ruandês Alexis Kagamé cuja obra merece a atenção que lhe dedico, à guisa de homenagem, por ocasião do trigésimo aniversário da sua morte.

Entre os Africanos que caem em ciladas epistémicas espalhadas por alguns lugares do mundo, continua a prosperar a falsa ideia segundo a qual as línguas africanas são intraduzíveis para efeitos de construção do discurso filosófico e, por isso, só o recurso às línguas europeias oficiais tornam possível, nos países africanos, a comunicação intracontinental. A verdade é que existem muitas evidências que provam o contrário. Duas delas provêm da linguística e da história. A ilustração imediata é a unidade lexemática "Bantu”, glossónimo que serve para designar  uma comunidade histórica constituída por mais de 150 milhões de pessoas que falam cerca de 171 línguas. Mas a filosofia reforça tal perspectiva e fornece vários exemplos. O mito do herói incriado, "gerado por si mesmo”, é um desses tópicos inspiradores sobre o qual abundam narrativas no vasto território que se estende entre a África Central e a África Austral. Já aqui falei deste tipo de heróis das narrativas épicas que, à medida que nos formos aproximando da região dos Grandes Lagos, manifestam-se com outros antropónimos, mas a sua interpretação não deixa escapar os traços que o caracterizam. "Mwindo” é um destes heróis que encontramos entre os Banyanga da região do Kivu no Congo Democrático. Este ciclo do mito do herói épico autocriado conta com outros antropónimos em diferentes línguas bantu: Ciakova (Mbukushu), Nadalakalitanga (Cokwe), Kalitangi (Umbundu), Nambaishita (Kuanyama), Mpambaicita (Ndonga), Sambilikita (Kwangali), Sambilia (Shambyu). Este é um tópico que pode ser matéria de uma outra conversa. Disso falaremos quando se revelar oportuno abordar a importante obra e o pensamento do nigeriano Isidore Okpewho.

O filósofo ruandês Alexis Kagamé tem o nome associado à escola filosófica que emerge na África Central e que vem restaurar os fundamentos antigos dessa identidade civilizacional. O burundês Liboire Kagabo é o autor do capítulo que lhe é dedicado no "Compêndio de Filosofia Africana” cujo editor é o gananse Kwasi Wiredu. A seu respeito, o democrata-congolês V.Y. Mudimbe presta um interessante testemunho, ao narrar as peripécias da sua conversão ao cristianismo como membro da congregação dos beneditinos, durante a sua estada no Ruanda. Regista outros momentos memoráveis no período em que foi decano da Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional do Zaire.

Alexis Kagamé nasceu em Maio de 1912  e faleceu em Dezembro de 1981, ao 69 anos de idade. Já lá vão quatro décadas. Após a frequência do seminário menor e maior, respectivamente, em 1928 e 1933, foi ordenado padre em 1941. Dedicou parte do seu tempo, enquanto estudante, à investigação das tradições orais do Ruanda. Quando iniciou os estudos superiores de filosofia em 1952, já tinha publicado artigos e livros sobre poesia tradicional ruandesa, literatura, história e tradições culturais. Obteve o seu doutoramento na Universidade Gregoriana de Roma, em 1955, com uma tese sobre "A Filosofia Bantu-Rwandesa do Ser”, publicada no ano seguinte, altura em que regressou ao país natal. Foi professor de filosofia, história e literatura no seminário de Nyakibanda, no Instituto Nacional Pedagógico e na Universidade Nacional do Ruanda, localizada em Butare. Ao nível internacional, gozava de notoriedade e prestígio, tendo sido membro do Instituto Internacional de Filosofia e do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redacção da História Geral de África.


Produção Filosófica

A sua produção filosófica mais importante é representada por um livro publicado em 1976, "La Philosophie Bantu Comparée” (Filosofia Bantu Comparada), com a chancela da editora "Presence Africaine”, pela qual saiu igualmente a público o livro do padre belga Placide Tempels, "La Philosophie Bantoue”, em 1948. Na verdade, a dialéctica que comanda a estrutura argumentativa do livro de Alexis Kagamé tem os seus impulsos emulatórios nas propostas do padre belga.

Os pressupostos da sua perspectiva são lançados no capítulo II. Aí define os seus conceitos de civilização e de cultura. Do ponto de vista descritivo considera que a civilização comporta onze elementos: a) sistema linguístico; b) território vasto; c) ocupação antiga do território; d) sistema económico; e) sistema de direito público; f) sistema de costumes sociais; g) conjunto de conhecimentos técnicos; h) norma fundamental e correspondentes realizações artísticas; i) conjunto de conhecimentos científicos; j) sistema de pensamento profundo ou filosofia; k) sistema religioso.

Para Alexis Kagamé esta é a definição objectiva de civilização. No sentido subjectivo, ele considera que o relevante consiste na participação do indivíduo no campo em que se inscrevem aqueles elementos. Por outras palavras, o carácter subjectivo da civilização constitui a base para definir a cultura. Trata-se de uma província da civilização, é a "especialização regional no seio de uma civilização”, sendo a língua o seu critério definidor. Por essa razão, propõe que os países da região da África Central, como Angola, Burundi, Congo Democrático, Uganda, Ruanda sejam considerados culturas da civilização bantu.

No capítulo III, Alexis Kagamé debruça-se sobre o que designa como problemas da "lógica formal bantu”, numa tríade analítica. O termo é a expressão da ideia. O juízo exprime-se através da proposição e o raciocínio através do silogismo. Para o efeito explora as potencialidades do sistema de classes das línguas bantu.Nos capítulos IV e V  são tratados os problemas da criteriologia e da ontologia bantu, respectivamente. Do capítulo VI ao IX tematizam-se os diferentes domínios da metafísica, tais como "o existente localizador-lugar e tempo”.

O impulso emulatório aprofunda-se no capítulo X, onde problematiza as categorias do "muntu, existente de inteligência”, recorrendo sempre ao vocabuário das diferentes línguas bantu. Os  últimos dois capítulos são dedicados às religiões bantu e à filosofia da religião bantu no contexto cristão e colonial.


Pioneiro da sua geração

Sobre o legado de Kagamé, o queniano Dismas Masolo sublinha a sua indispensável força inspiradora para as novas gerações, no que diz respeito à avaliação crítica dos valores que emanam das tradições africanas. Por outro, considera que é uma obra incontornável no contexto dos movimentos filosóficos contemporâneos. A narrativa histórica sobre a filosofia do mundo contemporâneo será lacunar se não incluir os contributos e a  inestimável herança deste pioneiro da sua geração.

O pioneirismo de Alexis Kagamé é observável em trabalhos posteriores publicados por historiadores e filósofos. As marcas de tal perspectiva inspiradora verificam-se num outro livro do historiador Théophile Obenga, "Les Bantu. Langues, Peuples, Civilisations” (Bantu. Línguas, Povos e Civilizações). O método comparado é inevitável, partindo das catacterísticas linguísticas gerais e essenciais das línguas bantu.

O tema que é desenvolvido no capítulo V do livro de Obenga, recupera um dos elementos do conceito descritivo de civilização de Alexis Kagamé. Trata-se do "sistema de direito público”. Obenga aprofunda-o numa formulação que diz respeito ao "desenvolvimento dos sistemas políticos bantu”.

Embora seja conhecida a querela entre Jan Vansina e Alexis Kagamé sobre a história do Ruanda, não pode ser ignorado o facto de o historiador belga ter tirado conclusões úteis  desse debate. Com o seu livro publicado em 2004, propõe uma interpretação útil à leitura do pensamento de Alexis Kagamé, especialmente quando reconhece a existência de um único grande conjunto genético de línguas Bantu no sul da África Centro-Ocidental, reconhecido com base em cálculos lexicoestatísticos realizados em um grande número de línguas a que ele vai denominar como "Grupo de Línguas Njila”, uma subdivisão das línguas Bantu.

Portanto, não suscita contestação a afirmação que sugere a colocação do nome de  Alexis Kagamé nas bases em que se funda a chamada escola filosófica  da África Central, cuja placa giratória tem as suas âncoras nos Camarões e na República Democrática do Congo. Nela figuram autores como Ngoma-Binda, Tshiamalenga Ntumba, Elungu Pene Elungu, Nkombe Oleko, Okonda W’oleko, V.Y.Mudimbe (democrata-congoleses); Basile-Juléat Fouda, Eboussi-Boulaga, Marcien Towa, Hubert Mono Ndjana e Jean-Godfroy Bidima (camaroneses).

* Ensaísta e professor universitário


Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Cultura