Entrevista

André Pedro Neto: “As autoridades têm de pôr fim à produção clandestina de bebidas”

Helma Reis

Jornalista

A morte por intoxicação alcoólica de 13 pessoas, entre as quais uma menina de 12 anos, há dias, em Luanda, foi o mote para uma entrevista ao toxicologista André Pedro Neto, que alertou não ser desejável o consumo de bebida alcoólica de elaboração caseira, porque pode provocar danos sérios à saúde. Director-geral do Centro de Atendimento Toxicológico (CEATOX), um de dois únicos da área da toxicologia existentes em Angola, André Pedro Neto defendeu que é fundamental o acompanhamento dos sobreviventes da “caipirinha do azar” por um centro de toxicologia, sob pena de desenvolverem sequelas, incluindo a neuropatia periférica. Aliás, o especialista fundamentou, recorrendo à experiência de alguns países do mundo, onde é atribuído carácter obrigatório à notificação, dirigida aos centros de toxicologia, de ocorrências de intoxicações, sobretudo, de casos agudos individuais e massivos

12/05/2021  Última atualização 10H00
Hospital de Kapalanga recebeu 27 vítimas da “caipirinha” adulterada, cinco das quais perderam a vida © Fotografia por: Eduardo Pedro | Edições Novembro
Há dias, morreram 13 pessoas em Viana, por intoxicação al-coólica, depois de terem consumido uma bebida artesanal, feita com combustível para aviões. Essa tragédia, na sua opinião, não deve alimentar a discussão sobre a necessidade de os hospitais públicos terem uma área de serviço de atendimento toxicológico?
Antes de responder à sua pergunta, quero sublinhar que, apesar de a população chamar a intoxicação por combustível para aviões de "caipirinha do azar”, os toxicólogos consideram que o quadro clínico que os intoxicados apresentam pode corresponder a uma intoxicação massiva pelo uso de metanol ou etilenglicol. Pelo conhecimento da ocorrência da intoxicação, verifica-se que existe dispersão dos intoxicados na capital.  


Concorda, ou não, com a abertura de serviços de toxicologia nos hospitais públicos?
 
Seria muito dispendioso para o país criar serviços toxicológicos em todos os hospitais. A discussão deverá estar à volta da necessidade de dinamizar os centros de toxicologia já existentes no país, nomeadamente o Centro de Atendimento Toxicológico (CEATOX), localizado em Luanda, e o Centro de Informação de Medicamentos e Toxicologia (CIMETOX), situado na cidade de Malanje.
 

O que é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda aos Governos em matéria de atendimento toxicológico?

A Organização Mundial da Saúde orienta, desde 1985, a todos os Estados e Governos a criarem centros anti tóxicos, para enfrentarem o crescimento exponencial dos produtos químicos, uma vez que estes acarretam danos à saúde. Estes centros antitóxicos têm, no seu funcionamento, a responsabilidade de orientar as acções de prevenção, diagnóstico e tratamento das intoxicações, cabendo-lhes as seguintes tarefas: orientar a população sobre primeiros socorros em caso de intoxicação ou desastres químicos; incentivar a procurar por atendimento em serviço de saúde, reduzindo o número de vítimas de intoxicação; fornecer informações sobre a toxicidade das substâncias químicas e os riscos que elas ocasionam à saúde, acompanhar a evolução dos intoxicados atendidos e, consequentemente, a recuperação dos mesmos; identificar as substâncias en-volvidas no acidente ou desastres químicos e coordenar a recolha de amostras para estudos toxicológicos.  


Embora se tenha a certeza de que, por exemplo, o Hospital de Kapalanga tudo fez para salvar a vida de todas as pessoas que consumiram o que está a ser chamado de "caipirinha do azar", acredita que a referida unidade hospitalar poderia fazer muito mais ainda, do ponto de vista clínico, se, eventualmente, tivesse especialistas em Toxicologia?

As intoxicações são afectações à saúde produzidas pela exposição a substâncias químicas. Pelo que se sabe, o Hospital de Kapalanga não consultou nenhum dos centros de toxicologia anteriormente mencionados, os quais poderiam ter contribuído com importante orientação ao pessoal de saúde desta unidade hospitalar. O diagnóstico inicialmente é clínico e fundamenta-se pelo percurso do composto químico no organismo, atendendo as suas características químicas e o tempo decorrido entre a exposição ao composto químico e o atendimento médico. Na maioria das intoxicações, o diagnóstico de certeza é através de laboratório especializado nos estudos químico-toxicológicos. É indispensável o contacto com um centro de informação toxicológica, por via do qual se pode ampliar os conhecimentos sobre o quadro clínico da intoxicação e o tratamento antidótico. Os centros de informação toxicológica dão, também, orientações para a recolha, conservação e transportação adequada das amostras, com enfoque técnico operacional, para permitir a investigação da presença do(s) agente(s) tóxico(s). 


O Centro de Tratamento Toxicológico de Luanda tem sido, ou não, chamado a participar no atendimento a casos de intoxicação complexos, que dão entrada em unidades hospitalares públicas e privadas?
   
A Toxicologia é uma ciência crescente que, cada vez mais, ganha importância no cenário da saúde pública em todos os países do mundo, embora de forma tímida nos países subdesenvolvidos, onde o âmbito regulamentar é débil. Estamos cercados de produtos químicos. Existem, aproximadamente, mais de 120 milhões de produtos químicos que, apesar dos benefícios, acarretam também efeitos indesejáveis. Nesta perspectiva, é de vital importância a consulta aos centros de toxicologia para o atendimento a casos de intoxicação. Em alguns países do mundo, é de carácter obrigatório a notificação de ocorrências de intoxicações, sobretudo, de casos agudos individuais e massivos. Esta actividade no país deve ser encorajada sempre que haja atendimento a casos de pacientes que acorrem às unidades hospitalares públicas ou privadas, para serem assistidos nos episódios de intoxicação. Uma nota importante é a necessidade de maior divulgação deste serviço junto das populações em todo o país. Estes centros prestam atendimento em regime de plantão permanente (24 horas por dia, 7 dias da semana), podendo o contacto ser feito também por telefone. Consideramos que os bancos de urgência das unidades de saúde devem colocar os contactos telefónicos dos centros de toxicologia. 


A impressão que se tem é de que a existência do Centro de Atendimento Toxicológico de Luanda não é ainda do conhecimento de uma grande maioria da população e, quiçá, de algumas unidades hospitalares. Queria ouvir o seu comentário.  

O conhecimento da população e das unidades hospitalares ainda é irrisório, não sendo representativo até ao ponto de contribuir para amenizar os prejuízos provocados por esta bebida. Daí o apelo para que haja maior e melhor divulgação, para evitarmos a perda de mais vidas de compatriotas gratuitamente. Os centros de toxicologia dispõem de protocolos de atendimento a intoxicados que mitigam os efeitos por exposição ao metanol ou a qualquer outro produto químico.  A  "caipirinha do azar”, que causou sintomas graves, como alterações visuais, e mortes, vem, sim, levantar a discussão sobre a importância do envolvimento dos centros de toxicologia no atendimento médico a casos de intoxicação. Chamar os centros de toxicologia evita a perda de vidas. 


O que pode acontecer ao organismo humano depois da ingestão de uma bebida feita com produtos adulterados e inadequados, como combustível para aviões?  

A ingestão de qualquer bebida, sempre que adulterada ou inadequada, acarreta efeitos nefastos a nível molecular, celular e de órgãos e sistemas, incluindo a morte. Tudo porque na preparação destas bebidas é frequente a adição do etilenglicol ou metanol álcool de madeira, sendo o elemento decisivo para o diagnóstico presuntivo a afectação do nervo óptico, instalando-se a condição de cegueira, caso venha a escapar da morte. Nunca é desejável adquirir bebidas de elaboração caseira, porque podem provocar danos sérios à saúde.


"Sobreviventes podem vir  a ter neuropatia periférica”


Uma vez que, entre os consumidores da "caipirinha do azar", alguns sobreviveram, gostaria de saber se a sua recuperação se deve à probabilidade de terem consumido de forma moderada ou se deve, digamos assim, a factores imunitários?  
Sinais e sintomas de envenenamento variam de acordo com a substância e sensibilidade individual de cada pessoa. Independentemente da existência de pacientes envenenados com a mesma substância, cada um também pode apresentar diferentes sintomas. A maioria das intoxicações é dependente da dose. A dose é determinada pela concentração ao longo do tempo. Existem factores que influem na toxicidade dos produtos químicos, como propriedades físico-químicas (solubilidade, grau de ionização, coeficiente de partição óleo/água, tamanho molecular, estado físico, etc.); impurezas e contaminantes; factores envolvidos na formulação (veículo, adjuvantes); factores relacionados com o organismo: espécie, linhagem; factores genéticos e imunológicos, estado nutricional, dieta, sexo, estado hormonal, idade, peso corporal; factores relacionados com a exposição: via de introdução; dose ou concentração.  


Acha que, depois de receberem alta, os sobreviventes devem ter acompanhamento clínico permanente?   
O metanol é bastante tóxico que, ao ser ingerido, pode causar cegueira, mesmo em pequenas doses, incluindo a morte, o que faz deduzir que é um álcool altamente tóxico. Os sobreviventes, por desconhecimento da acção tóxica do(s) produtos  envolvidos na intoxicação, podem vir a ter evento tóxico retardados. É fundamental que os sobreviventes sejam acompanhados por um centro de toxicologia, sob pena de desenvolverem importantes sequelas, incluindo a neuropatia periférica. Assim, o acompanhamento exige maior aprofundamento quanto ao conhecimento das condições específicas envolvidas na intoxicação de cada paciente com a possibilidade de afectações hepática e renais. 


Que lição as autoridades sanitárias devem tirar da tragédia de Viana, para que, se voltar a registar-se uma outra com a mesma dimensão, se consiga salvar um maior número de vítimas?  

De cada evento tóxico devem ser retiradas lições que constituam razões de aprendizado. Defendemos uma orientação adequada na abordagem do paciente intoxicado. As autoridades devem controlar a subtração ilegal destes produtos e proibir o seu uso na produção clandestina de bebidas, por provocarem repercussões nefastas para a saúde da população expos-ta. Que as autoridades criem condições para que os contactos telefónicos e a localização dos centros toxicoló-
gicos sejam de domínio pú-blico, a fim de contribuírem para a mitigação das intoxicações no país.


Hospitais devem ter banco de antídotos para vítimas de intoxicação  

A chegada tardia de uma vítima a um hospital diminui a possibilidade de sair com vida da unidade para onde é transportada?
A chegada tardia a um hospital tem repercussões muito nefastas, podendo ser sinal de mau prognóstico na recuperação da vida do paciente intoxicado, agravado pela falta  de intervenção no tratamento de um centro de toxicologia. Os cidadãos podem consultar os centros a partir das suas residências. Quando falamos em intoxicação, falamos de afectações à saúde das pessoas, que vão desde a exposição ao agente tóxico até à sua excreção, devendo o tempo decorrido influenciar, sobremaneira, nos efeitos tóxicos na vida do paciente. Os agentes tóxicos podem agir, de uma forma geral, sobre o organismo todo ou sobre um determinado tecido ou órgão específico, isoladamente em célula ou moléculas. A sua compreensão é importante por fornecer uma base racional para a interpretação toxicológica (sinais e sintomas no organismo) e, obviamente, para estimar a possibilidade de um agente químico causar um efeito nocivo, consequentemente contribuindo para o desenvolvimento dos procedimentos terapêuticos que visem combater os danos em curso. 


É possível uma vítima de intoxicação receber os primeiros socorros dados por pessoas leigas, antes de ser atendida por um técnico de saúde?  

Sim. É por esta razão que a população está a ter o hábito de procurar os centros de toxicologia para receber informação que pode salvar a vida de um paciente como, por exemplo, saber induzir o vómito caso o composto tenha sido ingerido pela via gastrointestinal ou retirar o composto químico da pele. 


Que manobras devem ser executadas em casa ou durante o transporte de uma vítima de intoxicação para uma unidade sanitária, a fim de receber tratamento  médico?   

Em caso de suspeita de intoxicação individual ou colectiva, é sempre desejável evitar procedimentos curiosos. O procedimento correcto a fazer é um contacto, por telefone, incluindo o recurso ao WhatsApp, com um centro de toxicologia, a quem se deve solicitar as melhores informações e orientações relativamente à situação que esteja a ocorrer. Devem ser conservados os recipientes e rótulos de produtos químicos, decisão que contribui para a identificação rápida da substância, e encaminhar rapidamente o doente para uma unidade hospitalar mais próxima, sem perder de vista um contacto com o centro de toxicologia, para este contribuir no atendimento correcto do paciente intoxicado junto de uma equipa competente. 


Apesar de ser importante o papel do toxicologista, a assistência a vítimas de qualquer tipo de intoxicação deve ser feita de forma multidisciplinar?  

A Toxicologia é uma ciência multidisciplinar. Uma equipa multidisciplinar dá suporte técnico, científico e químico-toxicológico na prestação da informação toxicológica, em carácter emergencial, ou nos casos crónicos, cujo atendimento é feito a nível hospitalar e ambulatoriamente, conforme a necessidade dos serviços de toxicologia, com a disponibilidade de um banco de antídotos. 


Mortes por intoxicação alcoólica assustam os moradores da Caop Roque Silva


Um sentimento de tristeza continua a reinar no bairro Caop B, município de Viana, em Luanda, duas semanas depois da morte, por intoxicação alcoólica, de 13 pessoas, por consumo de uma bebida de produção artesanal, à qual se deu o nome jocoso de "caipirinha do azar”.
Em Angola, não há memória de uma tragédia, em decorrência do consumo de uma bebida alcoólica, com um resultado semelhante ao registado no bairro Caop B, sendo, por esta razão, um assunto que continua, até hoje, mediatizado.   

Na Caop B, os moradores pouco ou nada falam sobre o assunto. O semblante de tristeza de alguns identifica o estado de comoção geral.  
As pessoas mantêm-se, por largas horas, nas ruas. O espanto de moradores é visível quando se aproximam pessoas estranhas ao bairro, que a "caipirinha do azar” colocou na "boca do mundo”.
Foi o que aconteceu à chegada do carro de reportagem do Jornal de Angola a uma das ruas, onde tem três óbitos.  Fineza Correia, mãe de uma das vítimas mortais, disse não acreditar, até agora, que o filho, cujo nome preferiu omitir, perdeu a vida aos 28 anos, por ingestão de uma bebida adulterada. 

Fineza Correia, sexagenária, referiu que sempre soube que o filho consumia bebidas alcoólicas, como muitos outros jovens do bairro Caop B. Desconsolada, Fineza Correia disse que quer justiça, por achar que houve má-fé por parte das pessoas implicadas na produção e comercialização da "caipirinha do azar”, uma bebida altamente tóxica, composta por "água do chefe”, também conhecida por "kaporroto”, feita de açúcar e fermento, capassarinho, fruto com efeito alucinogénio, e combustível JET A1, para aviões. 

"A caipirinha é vendida em muitos bairros de Luanda, mas nunca ouvimos dizer que trouxe problemas graves às pessoas que a consomem”, lamentou a sexagenária, que disse ter o filho sentido, de-pois da ingestão da "maldita bebida”, dores de cabeça e no corpo, enjoos, mal-estar geral, dificuldades em andar e perda de visão.
Com a voz embargada, Victorino João, pai de outra vítima mortal, também de 28 anos, recebeu o Jornal de Angola, dizendo, logo no início da conversa, que prefere entregar tudo a Deus.
"Entrego a Deus porque o que foi feito não se faz”, lamentou Victorino João, que disse esperar que haja, também, "justiça do homem”.

Victorino João deplorou, de forma veemente, a acção do fabricante” da bebida que matou 13 pessoas, número que vai ser actualizado ou corrigido pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC), por via de um comunicado, a ser tornado público nos próximos dias.
No comunicado, o SIC vai revelar, também, os resultados, preliminares ou definitivos, da perícia médico-
legal e dos exames laboratoriais feitos para determinar as substâncias colocadas na bebida.  
Um outro morador da zona, identificado por Adão de Almeida, referiu que, desde o registo das primeiras mortes, os moradores estão assustados.

Adão de Almeida confirmou que, no bairro, a "caipirinha foi sempre uma "bebida atractiva” e consumida por muitos moradores, entre os quais adolescentes e crianças, por o seu preço ser apelativo.   
"A bebida é feita e comercializada há anos aqui no bairro e consumida por muitos moradores”, salientou Adão de Almeida, que disse ter sido a primeira vez que a "caipirinha” fez mal a consumidores no bairro Caop B.

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