Opinião

“Angolano cabeça água muito”

Adriano Mixinge

Escritor e Jornalista

Apercebi-me só há alguns dias, mas, parece ser que muitos já conheciam a expressão, sabiam-na há muito tempo: cidadãos de um país que vocês facilmente saberão quem são (podem deduzir), chegados a este país em massa, nos últimos vinte anos, por tudo e por nada, sempre com alguma razão acham e não temem em dizer, alto e bom som, que “angolano cabeça água muito”.

18/05/2021  Última atualização 06H10
Para evitar que algum xenófobo se aproveite e, também, para evitar equívocos, adianto já que eu sou muito pela amizade entre os povos. Acontece entre estes nossos amigos e nós, o que só pode acontecer entre os bons amigos: falam verdades ainda que doam. Eles sabem que as amizades sinceras duram muitos anos, porque a franqueza ajuda a sedimentar melhor as relações interpessoais (porventura, também, as relações entre as comunidades, entre ospaíses e entre os Estados), dão-lhe músculo suficiente para que seja útil e longeva.
Nacionalidade à parte, no início, pensando em que a água é um líquido precioso e de valor até nem quis analisar bem o que eles poderiam querer dizer com esta coisa de "angolano cabeça água muito”. Pensei, também, nas vezes em que para além de angolanos somos qualquer outra coisa. Pensei em que quando há muito de alguma coisa não tem necessariamente que ser mau.

Porém, quando fiquei a pensar um pouco na expressão, reparei que ela não é a manifestação de uma "estiga” básica, dessas que surgem numa galhofa breve e inconsequente troça entre amigos, numa tasca qualquer: "ter a cabeça água”é para os cidadãos deste país amigo, que vivem entre nós, o mesmo que para os nossos pais era e ainda, muitas vezes, é "ter a cabeça no ar”. Eles conviveram connosco e nos observaram para, depois, tirarem as suas ilações, com uma assertividade que nós se formos sinceros podemos julgar.
"Ter cabeça água” significa que não tens juízo, que não és resolutivo, que estás longe de ser pragmático, que só sabes malgastar o tempo e os recursos de que dispões, que pensas mais no que está a acontecer no mundo e no que o mundo dirá do que naquilo que te convém, independentemente do que o mundo pensar, ou seja, que és imaturo; significa que és superficial e não estás atento às coisas essenciais que te permitiriam eventualmente prosperar, para além de a culpa ser tua.

"Ter a cabeça água” significa que até mesmo em questões de sentido comum, também, que não consegues "dar pé com bola”, fazes exactamente o contrário do que deverias fazer: por exemplo, - isso já o vi fazer repetidas vezes -, varres a areia e as folhas de uma árvore caídas no chão quando há remoinhos; juntas montes de areia na berma das estradas, deixas sem recolher e deitar fora para ela voltar a espalhar-se pela estrada e, no dia seguinte, voltares a fazer o mesmo; utilizas a mangueira para regar os jardins quando está a chover, entre muitos outros contrassensos.

É claro que existe algum exagero da parte deles, disso ninguém dúvida, mas que algo de razão também podem ter é o que me faz pensar: é, por isso, que vos incito a pensar em conjunto.Desde as coisas do dia-á-dia do cidadão comum à vida em comunidade, nas ruas e bairros das cidades e os subúrbios, passando pelas superstições, a ignorância e a falta de solidariedade até a forma como, em não poucas ocasiões, o Estado desconsegue solucionar muitos dos problemas essenciais do país, tudo parece mesmo indicar e provar que, - emparte, "angolano cabeça água muito”: se repetirmos a expressão muitas vezes, por causa da construção da frase e a ausência da sintaxe apropriada até dá graça, pode fazer-nos rir, mas, no fundo, temos que admitir também, na verdade a expressão é pouco simpática e há nela um desprezo enorme.

De um modo mais geral, não sei lá muito bem se a expressão "angolano cabeça água muito” também é uma alusão ao facto de que estejamos entretidos mais a consolidar a democracia sem pensar, também, naquelas questões transversais e de Estado que deveriam ser fruto do consenso entre os partidos políticos, todos os poderes do Estado e os cidadãos. "Angolano cabeça água muito” é o que os nossos amigos (que sabemos quem são) dizem. Como ainda acreditamos na amizade sincera, não precisamos ficar zangados, nem ficar com (todo) o orgulho ferido: vamos só pensar bem se o que eles dizem é verdade (ou não) e como mudarmos o estado de coisas para que, no futuro, eles e os outros nossos amigos - em vez de nos "estigarem” de modo cruel - utilizem melhores expressões para se referirem a nós, com mais admiração, orgulho e carinho.

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