Cultura

Aposta no memorialismo em Moçambique

Ultimamente e no campo da literatura, Moçambique tem sido prolífico no memorialismo. Confirmam essa percepção várias obras publicadas nos últimos três anos

23/05/2021  Última atualização 18H33
© Fotografia por: DR
1.UM RAPAZ TRANQUILO – Memórias imaginadas, de Álvaro Carmo Vaz. Memórias imaginadas, sim, mas que são um repositório de ambientes e experiências vividas, algumas das quais dolorosas, por que passámos nos anos vespertinos e a seguir à Independência Nacional de Moçambique, em 25 de Junho de 1975. Álvaro Carmo Vaz é engenheiro civil de formação, tendo feito a sua carreira na Universidade Eduardo Mondlane, onde atingiu a cátedra. Escreve o prefácio o conhecido escritor moçambicano e autor da não menos conhecida novela NÓS MATÁMOS O CÃO TINHOSO, Luís Bernardo Hon’wana, que nos diz, a certa altura: "Um rapaz tranquilo”, as primícias literárias de Álvaro Carmo Vaz, reconstitui, pela primeira vez entre nós, um roteiro que sempre permaneceu subentendido e, corajosamente, trá-lo a debate como uma das muitas dimensões da nossa pluralidade.”;


2.QUANDO O SILÊNCIO É SUJEITO – Um Tributo a Glória de Sant’Anna.

É uma colectânea de mais de seis dezenas de testemunhos lavrados por antigos alunos no secundário da poetisa e locutora de rádio, por pessoas do seu convívio familiar e por admiradores da sua vasta obra poética pelos quatro cantos do mundo. E porque escrevo para o espaço irmão de Angola destaco, entre os autores desses testemunhos, Xosé Lois García, galego e investigador da obra de Agostinho Neto e de outros autores angolanos, gozando, muito provavelmente por isso, do estatuto de membro honorário da União de Escritores Angolanos. E aqui tendes, a seguir, um de entre vários poemas da Professora Glória de Sant’Anna chamados ao livro:

"Aula
(Turvos meninos
se me apresentam
dentro do tempo
que vou deixar)

curvados tranquilos sobre as palavras,
e um sorriso na face
e atentos à música da frase,
ainda tão imponderáveis e intactos

(já sem contorno
dentro da pálpebra
sustendo a lágrima
que guardo)

todos tão exactos e fiéis para o presente,
tão da minha eufónica ligação o outro extremo
tocando-me e procurando-me
porque tem que ser assim o pensamento


(E elo dos dois ritmos
a minha fronte
dum lado sombra
do outro amor)”

3.BUGANVÍLIAS, CARAPAU E REPOLHO – HISTÓRIAS DO TEMPO VIVIDO

É um livro reunindo "histórias giras, memórias de um tempo do Moçambique novo, livre e revolucionário, que apenas circulavam entre amigos”, como no-lo diz Paula Perdigão, seu coordenador.

4.JOSSEFA NHATITIMA – O DOM DA LUCIDEZ

Trata-se de uma biografia escrita por Luís Nhatitima, neto do biografado. Jossefa Nhatitima foi Pastor da Igreja Metodista Unida em Moçambique, durante quarenta anos. No evento que marcou o lançamento da obra, no passado dia 7 de Maio, no estúdio auditório da Rádio Moçambique, o autor citou Mia Couto para justificar o seu empenho na escrita da obra: "Em 2016, na atribuição do doutoramento Honoris Causa pela Universidade Politécnica de Moçambique ao biólogo e escritor Mia Couto, este afirmou e cito: ‘Preocupa-nos que os nossos estudantes entrem para a universidade com fraco desempenho académico. Pois eu acho mais preocupante ainda que os nossos jovens cresçam sem referências morais’.
Em "Jossefa Nhatitima – O Dom da Lucidez”, podem encontrar a minha proposta de referência para as novas gerações.”
A par das provas que vinculam o biografado ao rol das referências morais de Moçambique, o autor preocupa-se, ao longo do livro, em trazer ao leitor as memórias que conservou sobre o Pastor Nhatitima. E uma delas é a que se segue, transcrita do livro:

"As formigas
É, porventura, das primeiras coisas de que me lembro desde que comecei a viver em casa de Jossefa Nhatitime e de fazer uso da razão.
Fazia muito frio por aqueles dias. Naquele, como habitualmente e no retorno da lavoura, fomos reavivar a lareira dormente no interior da xitanga, a rústica cozinha do campo. Para o efeito, e depois de afastar a cinza, acrescentámos ao brasido dois ou três troncos que trouxéramos de Nhamagóngwè, a machamba mais próxima de casa. Colectados do chão ou de troncos já sem vida, os troncos são hospedeiros privilegiados das mais variadas espécies     de formigas. Com o calor, elas chocavam-se na fuga precipitada do fogaréu. Incrédulo, reparo que o velho, ao mesmo tempo que buscava a melhor exposição do corpo à quentura, também se preocupava em ajudar as formigas a fugir do crematório. Passam muitos anos, mas ainda não encontro razão para Jossefa Nhatitime estender a bonomia às formigas: por lhes admirar o grau de organização biológica? Por candura? Por bom senso? Qualquer que tenha sido a razão, ela pode perfilar naquelas que estão por detrás deste livro.”

Luís Loforte |*

*Escritor moçambicano

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