Opinião

As aparentes dicotomias em África

Filipe Zau |*

Músico e Compositor

África foi o único continente que, durante mais de quatro séculos, não teve crescimento económico, apesar de exportar 90% dos diamantes, 70% do ouro e um quarto do urânio que circulam no mundo inteiro, para já não falar do petróleo e outras riquezas naturais. Por conta de África, a elite europeia ganhou fortunas nos disputadíssimos mercados de Paris, Londres, Lisboa e Madrid.

03/02/2021  Última atualização 06H00
Apesar da sua riqueza em matérias-primas, África, segundo o sociólogo guineense Carlos Lopes, em "Compasso de Espera. O fundamental e o acessório na crise africana", é o continente onde, em 1992, a acumulação dos atrasos no pagamento da sua dívida externa já representava 32% das exportações de toda a região sub-sahariana. Consequentemente, África tem sido, de um modo geral, impossibilitada de investir devidamente nos seus programas sociais, nomeadamente, nos sectores da educação e da saúde.

Em África, todos os países são hoje politicamente independentes. Porém, em quase todos os países africanos, o Banco Nacional é uma dependência do Banco Mundial, as Forças Armadas são assessoradas pela ONU, as eleições realizam-se sob vigilância de observadores internacionais, os cidadãos em situação de emergência procuram a ajuda de organizações internacionais, as melhores propriedades pertencem às multinacionais...

As abordagens sobre África, segundo o investigador congo-democrático Elikia M’Bokolo, continuam a pautar-se por opiniões manifestamente negativas que, de um modo geral, se circunscrevem: "ao desmoronamento do Estado; à fragmentação do território (que havia sido construído com muito trabalho pela colonização e que se encontra agora repartido em enclaves bélico-mineiros; à vida precária dos indivíduos (com poucas garantias de segurança imediata e futura, isenta dos direitos mais fundamentais); ao agravamento das clivagens sociais nos diferentes campos político-militares; ao angustiante estado de pobreza sem fim à vista, onde a capacidade de sobrevivência é levada ao extremo; à etnização das relações sociais e das alterações na vida política…”

A questão da corrupção em África, surge em grandes manchetes noticiosas, como se este timbre de baixo sentido ético e deontológico fosse apenas intrínseco aos governantes africanos e não a governantes de países de outros continentes…
Na realidade, África conquistou a sua independência política, mas não conseguiu alcançar a autonomia necessária para gerir a sua própria história e continua tutelada, como se fosse incapaz de andar com as suas próprias pernas. Não pretendo aqui usar despropositadamente um discurso passadista, mas não posso subestimar, numa lógica de causa/efeito, alguns dos factos que concorreram (ou concorrem ainda) para a existência de muitos dos problemas africanos de toda a espécie, revisitando os séculos de holocausto a que África esteve sujeita.

Qualquer análise séria sobre os problemas em África, não pode, de modo algum, escamotear a existência secular do tráfico negreiro, um dos maiores holocaustos da humanidade, do racismo, do assimilacionismo, do segregacionismo social, do etnocentrismo, da aculturação e do baixo sentido de autoestima inculcado aos africanos, antes subjugados aos poderes coloniais e hoje a situações de dependência neocolonial. Houve até a necessidade de tirar os africanos da história da humanidade e levá-los a desinteressarem-se da sua própria história e das suas identidades culturais, para que só os feitos da civilização ocidental pudessem ser enaltecidos.

Para quem ainda se lembra, foi o início da luta armada para a independência de Angola, a 4 de Fevereiro de 1961, que viabilizou a abolição da Lei do Indigenato, a 6 de Dezembro desse mesmo ano. O Código de Trabalho Rural do Ultramar (decreto 44.309, de 27 de Abril de 1962), diz o seguinte no seu preâmbulo:

"(…) é afastada qualquer distinção entre grupos étnicos ou culturais passando todos os trabalhadores, qualquer que seja a sua filiação cultural, a regular-se pela mesma lei; não é admitida nenhuma forma de trabalho compelido; não se prevêem sanções penas por falta de cumprimento do contrato de trabalho; não existe qualquer tutela paternalista dos trabalhadores; não é permitido o angariamento de trabalhadores com intervenção dos contratos de trabalho; (…) Espera-se que garantida assim a liberdade de trabalho e a sua justa remuneração, asseguradas assim as melhores condições possíveis de trabalho e segurança social, a mão-de-obra aflua espontaneamente, a economia prospere, o rendimento nacional aumente, e haja inteira confiança e harmonia entre patrões e trabalhadores.”

Se ao nível do discurso político, a omissão de factos (quer por razões ideológicas ou outras de conveniência), já não é, nos dias de hoje, aceitável, muito menos ao nível do discurso académico, onde só a análise desapaixonada dos factos nos permite chegar a uma análise próxima da realidade objectiva.

De forma despudorada, os nostálgicos do fascismo e do colonialismo procuram romper novamente a fraternidade entre povos que passaram a reger-se por princípios de horizontalidade, como se o presente não tivesse os olhos postos no passado, para se prevenir o futuro. Como afirmou Heráltico, "ninguém se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio”.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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