Opinião

As febres do catolotolo

Osvaldo Gonçalves

Jornalista

A certa altura da vida, quando já ensaiávamos uns escritos para este Jornal, demo-nos conta de nunca ter aprendido a falar com a devida fluência uma língua nacional. Sempre sentimos alguma inveja de outros miúdos da minha idade que conseguiam conversar com os mais velhos sem muitas dificuldades.

01/05/2021  Última atualização 09H54
Vários factores poderão ser referidos como desculpas para termos ficado reduzidos a alguns termos, como o facto de termos crescido numa família que sempre se comunicou em Português e as palavras mais usadas nas línguas nacionais serem, sobretudo, impróprias para serem usadas à mesa.

Também se poderá evocar o facto de, durante a infância, termos lidado com pessoas oriundas de várias regiões do país, cada uma com um passado e a falar em diversas línguas, com dificuldades para escolhermos uma com a qual melhor nos identificássemos.
Ao lermos estórias narradas por escritores angolanos, encontramos amiúde termos cujo significado desconhecemos, não apenas expressões idiomáticas ou alcunhas de alguns personagens importantes da História de Angola, mas também os nomes de pequenas coisas que compõem o dia-a-dia das pessoas, essa inveja continua a incomodar-nos.

As habilidades de que dispomos, os contactos e as novas tecnologias são uma importante mais-valia para encararmos essas situações, mas elas também nos levam a concluir que as armas que poderíamos usar são cada vez mais escassas.
Os mais novos comunicam-se hoje numa verdadeira algaraviada difícil de entender logo à primeira e os mais velhos evitam usar a própria língua para falarem na rua ou com as outras pessoas. Interessante é ver como os jovens parecem às vezes ignorar qualquer tipo de norma.

Ao falarem, ignoram a gramática e, quando escrevem, a pontuação e os acentos gráficos perdem-se na oralidade do discurso, como se estivessem sempre a ser ouvidos por alguém com tempo e disposição para preencher os espaços deixados pela entoação.
Em várias ocasiões, pareceu-nos que as normas eram dispensadas por puro desconhecimento, até porque já vimos alguém escrever "rimas” num texto em prosa, com as palavras grafadas na forma como se entendia serem ditas.

A forma como se trata a Língua Portuguesa gera sempre muita polémica, até por parte de universitários e académicos. Ainda bem que assim acontece. O que mais nos preocupa é ver alguém imputar tais falhas ao facto desta, supostamente, ser um idioma "estrangeiro”.

Algumas dessas situações acontecem quando se questionam as normas mais elementares da gramática, como a pontuação. Em nenhuma língua escrita se coloca vírgula entre o sujeito e o predicado numa oração simples, mas, como é a "língua do colono”, fazê-lo é tido como sinónimo de resistência.

Em Angola, considerar a Língua Portuguesa estrangeira é o mesmo que dar um pontapé na História e esta atesta que, ao fim de cerca de cinco séculos, os angolanos saíram vencedores, porque alcançaram a Independência. Esses escritores angolanos que condimentam os seus textos com termos cujo significado desconhecemos revelam-se, entretanto, grávidos de expressões pesadas no vernáculo português e, ainda que o façam como forma de caricaturar alguns filhos ilustres da terra que ficaram conhecidos pelo rico verbalizar, acabam por nos obrigar a novas consultas ao mestre-mudo.

Foi na escola que aprendemos a consultar o Dicionário, mais ou menos na mesma altura em que nos falaram na formação das palavras. Desde então, os novos termos foram-se aglutinando e justapondo, muitas vezes sem pedir licença. Os livros são assim mesmo.

Um professor da primária contou-nos uma vez como percorrera vários quilómetros a pé para fazer o exame da 4ª Classe, tomado pelas febres do catolotolo. O seu mestre, um antigo seminarista, austero como se lhes conhece a espécie, tinha ameaçado com a régua: "Ou vocês aprendem ou abro-vos a cabeça e meto lá os livros!”

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