Opinião

Cinema de ficção como pedagogia do crime

Manuel Rui

Escritor

Tenho por hábito andar de canal em canal internacional para me atualizar em notícias. Claro que por razões óbvias, incluindo a língua, vejo as internacionais portuguesas que, verdadeiramente, são domésticas e os sujeitos receptores fora de Portugal são apenas os emigrantes e os Palop.

04/03/2021  Última atualização 08H48
 Na verdade, as televisões portuguesas pecam pela repetição noticiosa e, agora, com a pandemia transformaram os ecrãs em verdadeira amostragem de um pandemónio com toneladas de seringas, agulhas, pessoas a serem picadas, seringas compridas, o algodão com álcool no ombro e imagens de agentes de saúde nos hospitais com as vestes anti pandemia. Se há uma entrevista e o entrevistado ocupa um terço da tela o resto enche-se outra vez de seringas compridas e agulhas. Mas este fenómeno do exagero é pior numa televisão que trata do crime, fazendo julgamentos antecipados e repetindo o que já passou e repassou. Ou outra, virada para África, que dá o número de mortos com Covid nesse dia em Cabo Verde, Guiné ou Moçambique mas sobre Angola, só para não dizer zero óbitos naquela data, dá a totalidade dos mortos… Parece que as televisões não estudam a fenomenologia do medo. Alguém afirmou que "temos mais medo da vida do que da morte.” As pessoas de tanto ouvirem e verem começam a desacreditar, quebram a obrigatoriedade, passam para o outro lado, o da transgressão contra o medo patológico e organizam festas clandestinas ou outros tipos de violações como furar a fila das vacinas, mesmo gente com responsabilidades de autarca ou provedor social.

E confinado tem alternativas de ver filmes na televisão quase todos marcados pela violência, o sexo ou as drogas. Eu percorro, depois da meia noite os canais de cinema e aparece alguém com uma pistola ou numa discussão policial ou de negócio de drogas, vou mudando de canal até, pelo menos, encontrar comédia. De resto reina a violência e mesmo em programas sobre futebol aparecem alguns comentadores que se exaltam quase a convidar os tifosi que sofrem por não terem acesso aos estádios, recebem e acumulam a energia negativa para quando abrirem os estádios a despejarem como catarse sobre o fim da pandemia. É interessante que a pandemia trouxe emprego aos técnicos de comunicação em linguagem gestual. O que é de bom nunca foi dado em linguagem gestual, nem as prédicas das igrejas que eu saiba. Sobre cultura não há linguagem gestual mas sobre pandemia sim. Nós somos obrigados a usar atestados de vacinas para viajar de avião, essas vacinas como a da febre amarela. Como a vacina contra o covid não é obrigatória discute-se se é legítimo os vacinados puderem usar um documento comprovativo que alguns entendem como uma descriminação.

A televisão que em Portugal trata de crimes com comentadores especializados repetiu sucessiva e exaustivamente um crime ignóbil. Duas namoradas decidiram matar um amigo por saberem que ele herdara cerca de setenta mil euros da mãe. E fizeram tudo com requintes de malvadez. Depois de sedarem assassinaram. Uma delas, esquartejou o cadáver da vitima e meteu-o na mala do carro para depois lançar os pedaços do cadáver no mato. Ficou com dedos da mão direita para poder abrir o telefone, passando os dedos pelo mesmo, isto é, aproveitando as impressões digitais para obter a senha e levantar dinheiro. O advogado de uma delas invocou que o marido não pode depor contra a mulher e vice-versa…ora elas eram namoradas.

Mas o que sobra e que para aqui mais importa de vilania é que a delituosa mais ativa e sorridente confessou que planificou o crime com detalhes que aprendeu em filmes que viu na televisão. E não é a primeira vez que o cinema é a pedagogia para o crime. Tudo por casa da liberdade que se confunde com promiscuidade agora muito mais para compensar o teletrabalho ou a telescola, qualquer criança numa escapatória ao controlo pode aceder a filmes de violência contra a religião e moral que lhe ensinam. E fora disso, nos noticiários, fica a saber que uma jovem andou com os dedos da pessoa que matou, dentro da carteira, só com o intuito de levantar o dinheiro da vítima. É esta a pedagogia dos filmes que passam na televisão.

E por falarmos nesse sadomasoquismo de seringonas, agulhas e ombros disponíveis para as agulhas, felizmente que nos programas sobre estes crimes não há técnicos de comunicação gestual. Curioso é que noutra televisões internacionais como a BBC, CNN ou mesmo a francesa ou espanhola não há esta constante carga de imagens com seringas, agulhas e teatro de operações de saúde contra a pandemia. Nem tão pouco aquele exercício do apresentador ou apresentadora dizer que hoje na audiência as testemunhas disseram isto e aquilo, depois ligar para a repórter que está à porta do tribunal para repetir que hoje as testemunhas disseram isto e aquilo.
De resto, é pena que um país que podia ser um paraíso, que fez a revolução dos cravos que bem merecia o prémio nobel da paz, pelas televisões, tenha acrescido à pandemia o pandemónio do medo de viver.

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