Cultura

Compreender a cultura árabo-islâmica

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Em 2016, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun publicou o romance “Le Marriage de Plaisir” (Casamento de Prazer) em que se problematiza a história das relações entre as regiões do Magrebe e o Sul do Sahara, através de uma narrativa que tematiza as relações poligâmicas de Amir, um muçulmano marroquino, residente na cidade de Fez e Nabou, uma muçulmana senegalesa originária de Casamança.

28/03/2021  Última atualização 15H27
© Fotografia por: DR
O romance tem como tema central a sexualidade Lalla Fatma e Nabou, as duas esposas de Amir, e o racismo que se abate sobre Nabou e seus filhos, num país maioritariamente árabe e muçulmano. O espaço comum partilhado pelos muçulmanos africanos, independentemente da coloração epidérmica, é a fenda pela qual o leitor pode iniciar as suas interrogações. Mas constitui igualmente a âncora que continua a ser necessária para o reconhecimento da unidade e uma advocacia da diversidade no nosso continente.


Por essa razão, a leitura do romance de Tahar Ben Jelloun lançou-me aos arcanos da memória. Já andava a interrogar-me acerca das representações colectivas sobre a presença dos muçulmanos em Angola, a propósito das actuais manifestações ostensivas da  religião islâmica e seus crentes. As fontes históricas consultadas há muito tempo sustentam a possibilidade de uma presença bastante antiga. Tal facto está associado, por exemplo, às relações comercias de longa distância entre Kakonda e o Reino de Ngalanganja. Mas o topónimo Ngalanganja é-me familiar porque ouvi-o várias vezes enunciado em conversas dos meus pais, tias e tios, em nossa casa. As narrativas da história familiar materna inscreviam protagonismos de antepassados meus no comércio de longa distância. Por isso, quando li o livro do historiador democrata-congolês, Elikia Mbokolo, "Msiri. Batisseur de l’Ancien Royaume du Katanga (Shaba)” (Msiri. O Fundador do antigo reino do Katanga),e tomei conhecimento da existência de Maria da Fonseca, uma mulher originária de Kakonda, concubina do "Rei” Msiri, no século XIX, senti-me solicitado a valorizar mais uma vez a história oral e fazer uso da informação resultante da consulta que tinha feito à minha mãe.


Há mais de três décadas, tinha conversado com a minha mãe. O meu propósito visava sondar a sua memória individual a respeito da presença dos árabes em Kakonda e Ngalangi. Referi-me a eles através da caracterização das suas roupas. A minha mãe designou-os imediatamente: "ovinjungu”. Apesar das suas especificações morfemáticas, este é um termo comum nas diferentes línguas bantu da África Central. No século XVIII, servia para designar comerciantes e exploradores árabes, indianos e europeus. Em Kiswahili, "Mzungu” deriva de "nzungu” ou "nzunguka” que significa andar de um lado para outro, girar no mesmo lugar.


Na historiografia da África Central, o comércio de longa distância no século XIX tinha Kakonda no seu itinerário. No Katanga, segundo Jan Vansina, destacava-se um comerciante nyamwezi, chamado Mushidi ou Msirique, no território do Katanga, ocupado inicialmente pela comunidade Bayeke, viria a fundar um reino por volta de 1856 e mantinha contactos com os comerciantes de língua Umbundu, oriundos do Bié e Kakonda, os chamados ”Ovimbundu”. Além disso, impulsionava o envio de caravanas para as costas do Índico e do Atlântico. Na corte de Msiri, os comerciantes árabes tinham assento e, consequentemente, falava-se  o Kiswahili. Em 1881, o território da África Central Oriental tinha sido percorrido pelo explorador inglês Verney-Lovett Cameroon, numa travessia entre Zanzibar e Catumbela (Benguela), tal como se testemunha no seu livro "Across Africa”.


Após o declínio político e a morte do Rei Mushidi ou Msiri, em 1891, o território do reino do Katanga (Shaba), caíu nas mãos do poder colonial belga. A presença islâmica na região suscitava inquietações que no plano político levantava o "problema muçulmano”, ainda na década de 40 do século XX. Nessa altura os seguidores do Islão no chamado Congo Belga, classificados como "arabizados, asiáticos, indianos e senegaleses”.encontravam-se igualmente no Ruanda e Burundi. Os efeitos do comércio de longa distância permitiam a circulação de pessoas e mercadorias num espaço em que as populações do leste, centro e litoral de Angola participavam. A intensidade dessas relações comerciais seculares entre o Índico e o Atlântico, isto é, na geografia da África Central Oriental, deixou marcas  existentes nos arquivos e na memória colectiva. É uma região onde se regista  uma unidade histórica do ponto de vista cultural. De unidade histórica também se fala na região da África Ocidental. O historiador senegalês Ousmane Oumar Kane realizou um trabalho de formiga sobre esta matéria no seu livro "An Intellectual History of Muslim West Africa” (Uma história intelectual da África Ocidental Muçulmana).


Ousmane Oumar Kane deplora o facto de as universidades ocidentais introduzirem uma divisão infundada no estudo académico de África, separando o Norte de África (Marrocos, Líbia, Tunísia, Argélia e Egipto) do sul do Sahara. Inclui-se a primeira no campo dos estudos do Médio Oriente. O resto de África é integrado no campo dos estudos africanos.
Para Ousmane Oumar Kane, semelhante divisão assenta em pressupostos que negligenciam o facto de a língua árabe ser a língua de aprendizagem e liturgia islâmica, e ter sido o elemento de coesão das populações do Magrebe e da África subsaariana.


Romance de Tahar Ben Jelloun

Mas o romance de Tahar Ben Jelloun vem desvendar os dramas ainda hoje vividos em Marrocos, expressão de uma das partes mais trágicas das relações entre árabes e africanos. Na região oriental do continente, o símbolo representativo desse drama é o kiswahili, que se tornou língua franca da África Central Oriental. As conexões do kiswahili com o islão são actualmente um fenómeno dessa história que remonta o século X. Mas nem todos os  falantes do kiswahili professam a fé islâmica.

A sua geografia linguística obedece às marcas territoriais do comércio de longa distância levado a cabo pelas caravanas de comerciantes Nyamwezi, Kamba, Yao, Swahili e Ovimbundu, desde o século Xe até ao século XIX.
Sena África Oriental a língua e cultura kiswahili são filhos do processo de diálogo entre os povos da região oriental, os árabes e pelo meio a islamização, já na África Austral, as estatísticas indicam que o Islão está a ganhar terreno. A maior população muçulmana encontra-se em Moçambique com um número superior a quatro milhões. Segue-se o Malawi, com uma comunidade muçulmana estimada em um milhão e a África do Sul, com quinhentos mil fiéis. As comunidades muçulmanas dos restantes países, entre os quais Angola, são menos expressivas.


Dialogar com Abed Al- Jabri
Em todo o caso, revela-se necessário acompanhar as reflexões de alguns pensadores para compreendermos a cultura árabo-islâmica. É o caso do marroquino Mohammed Abed Al- Jabri. O filósofo marroquino propõe-se a tratar da "razão árabe”, partindo da distinção entre o conteúdo cognitivo e o conteúdo ideológico. Esta é razão pela qual entende que na história da cultura árabe existe uma relação orgânica entre a luta ideológica e a dimensão do conhecimento filosófico. Por isso, o significado disso não poder ser ignorado. Por outro lado, reconhece que a "formação da razão árabe” permite admitir que a cultura é um processo político. Neste sentido, a cultura árabe nunca esteve afastada da política e dos conflitos sociais. Pode dizer-se que a hegemonia cultural é o seu primeiro traço caracterizador. O que lhe confere um estatuto único de movimento político ou religioso.


No dizer deAl- Jabri, o pensamento árabe, não é árabe apenas devido às concepções, pontos de vista e teorias que o constituem e reflectem a realidade árabe. Mas tal deve-se igualmente ao facto de ser o resultado de um método ou maneira de pensar específica que contribuiu para sua formação, incluindo a própria realidade árabe e outros fenómenos associados. Por isso, a este propósito, elabora uma interessante síntese, quando considera que pensando dentro duma determinada cultura não significa pensar sobre seus problemas. Ao invés, significa pensar através deles. Qualquer pensador mantém os vínculos com a sua cultura, mesmo que seja possível pensar sobre as questões que lhe são inerentes por meio de outra cultura.


Para ilustrar a ideia, Al-Jabri recorre ao exemplo de Al-Farabi que, sendo um dos mais importantes pensadores árabes, debruçou-se sobre as questões da cultura grega, pensando através da cultura árabe. Do mesmo modo, os orientalistas europeus continuarão a ser "orientialistas”, estudando o Oriente, porque eles pensam sobre alguns dos problemas do mundo árabe a partir de uma posição situada fora daquelas culturas. O mesmo acontece com os intelectuais árabes que tratam de questões europeias, usando o inglês ou francês. Continuam a  ser árabes quando reflectem sobre essas questões no âmbito da cultura árabe e através dela.


Portanto, seguindo o pensamento de Al-Jabri, podemos traduzir literalmente o seguinte. Pensar através de uma cultura específica, significa pensar a partir do sistema referencial formado pelas coordenadas essenciais dos seus componentes e elementos definidores, entre os quais se destacam o património cultural, o ambiente social e a percepção do futuro, a percepção do mundo, do universo e do ser humano, de acordo com as determinações e componentes dessa cultura. Estas propostas reflexivas são estimulantes para quem como Mohammed Abed Al- Jabri aceitou certamente o desafio de responder à pergunta formulada por Ali Benmakhlouf: "Por que ler filósofos árabes?”
 * Ensaísta e professor universitário

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