Cultura

Congregar a desunião

Augusto Cuteta

Jornalista

Era uma das meninas que eu mais admirava na banda, pela forma educada como tratava as pessoas, pela dedicação às coisas de Deus e pelo respeito de si mesma.

07/03/2021  Última atualização 14H14
© Fotografia por: DR
Por essa entrega a Jeová e no cumprimento das orientações bíblicas que lhe eram dadas nas reuniões no Salão do Reino e nos encontros de estudos domiciliares, a adolescente tornou-se publicadora, uma espécie de evangelizadora ou pregadora de rua.

O tempo correu. A idade dela também. E, por ter sido tão devota aos estudos, terminou com êxito o ensino primário. Agora, tinha de frequentar o ciclo de formação técnica média, o que, por escassez de vagas no município em que vivia, teve de fazê-lo num instituto na cidade, deixando para trás muitos hábitos e costumes quer da sua infância, quer do bairro onde cresceu e foi educada.
No terceiro ano do segundo ciclo do ensino secundário, Kituxi, influenciada por uma colega, inscreveu-se numa escola de basquetebol. Ela era moça de boa altura e esse factor pesou na escolha da amiga para convidá-la a alinhar na referida equipa da bola ao cesto.

Não tardou muito tempo para Kituxi conquistar a confiança na equipa. Arrancava aplausos dos treinadores e ganhou lugar no cinco principal. Nos campeonatos juvenis e de júniores, sempre foi a grande estrela. Isso, também, serviu de incentivo para outras moças da escola, que se juntaram à prática do basquetebol e de outras modalidades desportivas.
Essa fase boa da sua vida não agradava aos pais. Eles não concordavam com essa e outras novas escolhas de Kituxi. A relação passou a estar beliscada, o que fez com que boa parte da família sentisse esse azedar no convívio com a pequena estrela do basquetebol luandense.

Mas, a coisa ficou ainda mais feia quando, influenciada pelo básquete, Kituxi decidiu enveredar para a música, pelo Rap. O género, tal como o Kuduro, era muito criticado pelos pais e outros seguidores do corpo religioso em que Kituxi descobriu Jesus.
Na verdade, a moça, aos 19 anos, finalista do ensino médio, estava transformada. Os trabalhos práticos escolares, principalmente, os ligados à Prova de Aptidão Profissional, os treinos e jogos e a música roubaram os bons tempos que dedicava à família, ao estudo bíblico e à evangelização pelas ruas do bairro.

Nessa fase, o bairro era, praticamente, só lugar para ir dormir, porque era na cidade onde a jovem ficava mais tempo. E lá, na city, conheceu um jovem com quem começou uma relação amorosa, sem conhecimento nem consentimento dos pais.
O namorado, o primeiro da vida de Kituxi, não professava o mesmo credo que ela. Aliás, esse facto já teria causado, por duas ocasiões, uma separação ao par de pombinhos, principalmente pela questão do início da relação sexual. A moça era pelo sexo depois do casamento, enquanto o rapaz, mais liberal, achava que uma relação tinha de ter mais fogo, ser melhor alimentada. E, para ele, o sexo era esse grande impulsionador do amor.

Volvidos 11 meses, a moça não resistiu às investidas do jovem. Caiu no buraco. Por azar, nessa primeira vez que aceitou, Kituxi acabou grávida. Foi persuadida a abortar  pelo parceiro, mas, embora tivesse se perdido nalgumas coisas do mundo, a rapariga decidiu enfrentar a gestação, os familiares, a congregação e os dizeres da vizinhança.
Há uns meses, o irmão que antecede Kituxi casou-se. Fui convidado à boda. A festa estava animada. Embora eu não seja lá um grande bailarino, mas, quando a música me tocasse a alma, eu dava uns toques mundiais. E, se não pudesse mais, dançava apenas no coração!

Na parte em que a música era mais animada, alguns kotas da congregação em que a jovem Kituxi pertencia já se tiravam voado. Apesar disso, deu para rever antigos vizinhos de Viana, para bater um papo com gente com  quem, há anos, desde que me mudei para os prédios das lavras do Kilamba, nunca mais tive contacto. Mas não vi a Kituxi!
Curioso, mas é mesmo o que chamam de bisbilhoteiro, um pouco da encarnação jornalística, para apurar bem as informações, tal como ensinam nas academias: - ver, ouvir, perguntar, para depois falar/escrever -, fui abordar um outro irmão de Kituxi sobre o paradeiro da jovem.

Em poucas palavras, o puto explicou:
- Ela não fala connosco. Andou em maus caminhos. Foi desassociada e, por isso, não pode ter contacto algum com os da família. Daí ela não ter sido convidada para o casamento.
- Desassociada da congregação, até aí, concordo mais ou menos. Mesmo entre outras denominações religiosas, quando cometemos tais erros, os fiéis são punidos. Afastados de certas actividades, mas não da pertença do grupo religioso. E, essa desintegração da família não a frustra mais? Não deveriam vocês, os da família, apoiá-la mais em momentos como esse? - ainda tentei argumentar para se atenuar a pena da jovem Kituxi.

- Nada. Connosco não funciona assim. Ela é desassociada da congregação e a família só a perdoaria se tivesse casado. Mas, o marido dela é de outra denominação religiosa e segue muito as coisas do mundo... - justificou o rapaz.
Ao dizer-me isso, lembrei-me de uma passagem bíblica, em Mateus 18, 12-14: Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Se um homem tiver 100 ovelhas e uma delas se perder, não deixará as 99 nos montes para ir à procura da que se perdeu? Eu garanto-vos que, se ele a encontrar, vai sentir mais alegria por causa dela do que por causa das 99 que se não tinham perdido. Da mesma maneira, o vosso Pai que está no céu não quer que nenhum destes pequeninos se perca.”

Pensei comigo e achei que Kituxi podia ter sido considerada como essa ovelha perdida da parábola de Cristo e precisava de ser resgatada. Mas, não incomodei mais o rapaz. Miúdo alheio era só filho e são os pais que decidiam se podiam receber ou não a jovem desviada dos caminhos e das obras de Cristo, mesmo depois de desassociada.
Calei-me e fui ‘mbora dar minhas passadas. Mesmo ali, no meio da dança, pensei num amigo que foi afastado das actividades religiosas por ter engravidado uma companheira de igreja e se negado a casar com ela. Também reflecti sobre o caso da outra, afastada de quase tudo na igreja, por estar a viver maritalmente com um senhor que professa outra religião.
Enfim, andei a pensar em muitas cenas. Queria respostas rápidas naquele som bom, "Água rara”, de Bonga, mas o dj estragou todo o meu esforço pensamental quando chutou o "Abro o livro”, da nossa Noite e Dia. Aí, dancei de tudo e não mais queria saber de congregados nem de desassociados. Dancei só e mais nada!

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