Sociedade

Cresce o número de doentes mentais nas ruas de N’Dalatando

Manuel Fontoura | Ndalatando

Jornalista

Samuel Calueji, de 56 anos, tem uma filha (Margarida Calueji) de 22 anos, que sofre de demência. A mesma fugiu de casa. Está fora do controle da família. “Não sabemos absolutamente o que terá acontecido, porque a minha filha nem sequer adoeceu. Simplesmente, deixou de ser a mesma pessoa. Não respondia correctamente às chamadas e passou a ter atitudes estranhas”, lamenta o pai, visivelmente triste.

25/02/2021  Última atualização 15H42
N’Dalatando, é um problema que precisa de intervenção imediata © Fotografia por: Edições Novembro
Tudo começou aos 11 anos. Margarida cantava em voz alta, sobretudo quando estivesse isolada, e rasgava documentos importantes. Com o passar do tempo o pai, Samuel Calueji, notou um certo agravamento do estado psíquico-emocional da filha. Por falta de especialistas na província do Cuanza Norte, deslocou-se até à capital do país. Procurava por ajuda de médicos psiquiatras.
Em Luanda, durante três meses, Margarida frequentou o hospital psiquiátrico, onde, apesar de várias terapias, audições e ingestão de vários medicamentos, o problema aumentava significativamente.

A experiência de Jerónia Quissanga

Um dos filhos de Jerónia Quissanga sofre de perturbações mentais há três anos. A mãe de Márcio José contou ao Jornal de Angola que o seu primogénito fica "maluco” quando consome bebidas alcoólicas ou fuma liamba.
"O quadro clínico de Márcio agravou-se desde a morte do pai, há cinco anos. Deixou de frequentar a escola e de cuidar de si mesmo. Algumas pessoas da família tentaram ajudá-lo, mas infelizmente sem sucesso”, lamenta Jerónia Quissanga, acrescentando que fora dos casos de embriaguez e do consumo da liamba, o rapaz de 17 anos gosta de ficar em casa e ajuda nos trabalhos domésticos.
"É bastante difícil ter um filho nestas condições, muda de atitude de repente. Não é fácil controlá-lo”, disse.

Na perspectiva de procurar as melhores soluções para a crise, Jerónia recorreu a curandeiros que davam banhos de água misturada com folhas e raízes diversas. "Gastou-se avultada soma em dinheiro e não tivemos sucesso. Já não sei o que fazer”, lamenta.
Outro cidadão, com perturbações mentais, deambula pelas artérias da cidade. Amorim do Nascimento, de 32 anos, conta com a protecção dos seus progenitores. Os demais membros da família fogem-no com receio de sofrerem eventuais agressões.

O pai, Moisés do Nascimento, disse que o seu filho deixou de conversar com algumas pessoas, trancava-se no quarto e quebrava tudo o que via pela frente. Amorim ficou doente depois de padecer de malária grave, seguida de epilepsia, quando tinha 18 anos de idade.
"Fizemos várias consultas no Hospital de N’Dalatando, e ele dava sinais de melhorias. Mas algum tempo depois voltou ao estado anterior”, explica o pai de oito filhos, para acrescentar que na sua família, o Amorim é o único que tem este problema.
Na cidade de N’Dalatando, província do Cuanza-Norte, há cada vez mais jovens, completamente sujos e mal-amanhados, a deambular pelas ruas, que recolhem objectos e alimentos nas lixeiras e contentores de lixo.

Nos locais onde permanecem a maior parte do tempo, acumulam trapos e artefactos diversos. São doentes mentais.  Os mais agressivos atacam os transeuntes. Vandalizam os bens públicos e viaturas de particulares. Outros, aparentemente mais calmos, estão sempre a sorrir e falam sozinhos. São homens e mulheres dementes que colocam em perigo a segurança pública.


Aumento de casos na província

Ao revelar que, em 2019, foram registados 73 casos, e 193 no ano passado, a directora do Gabinete Provincial da Saúde do Cuanza-Norte, Maria Filomena Wilson, confirmou o aumento do número de pessoas com transtornos psiquiátricos.
Especialista em saúde pública, Filomena Wilson sublinha que os pacientes considerados leves são atendidos na rede de assistência primária e medicados com calmantes. O problema se coloca no seguimento dos mesmos, porque a região carece de infra-estruturas específicas e técnicos treinados para o efeito.

A directora explica que todos os pacientes com sinais graves de perturbações mentais são encaminhados para os bancos de urgência, onde lhes são administradas substâncias psicotrópicas, e os que requerem cuidados diferenciados transferidos para Luanda.
Enquanto se aguarda pela criação de uma área vocacionada, o Gabinete Provincial da Saúde decidiu enviar nos próximos tempos para Luanda, um médico, a fim de se especializar em matérias do foro psiquiátrico. Na ausência de psiquiatras, os psicólogos clínicos que exercem as suas actividades nas unidades sanitárias da província são cada vez mais solicitados.

Sobre o assunto, Filomena Wilson disse que as intervenções desses especialistas cumprem com todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério de tutela. "Está orientado que cada província tenha um núcleo de saúde mental, para responder a procura”, esclareceu.

A médica encoraja as famílias a controlarem os seus doentes e ficarem ao lado dos profissionais de saúde, para que o médico consiga obter sucesso no resultado da terapia, "porque sozinho o paciente é incapaz de seguir à risca todas as recomendações dadas.
A primeira causa de transtorno mental é a depressão, seguida de stress "somático”, ansiedade, esquizofrenia, alterações psicotrópicas e neuróticas, motivados por diversas razões, como conflitos militares, pobreza, doenças, deficiências nutricionais, uso de bebidas alcoólicas, drogas, e doenças cerebrais como a epilepsia.


Opinião de um psicólogo

Para o psicopedagogo Silvestre Galho, o aumento de dementes, na cidade de N’Dalatando, é um problema que precisa de intervenção imediata de toda a sociedade. Referiu que a família joga um papel preponderante na recuperação do paciente, porque é lá onde o mesmo reside e estão as pessoas que conhecem melhor a sua história de vida, atitudes, comportamentos, gestos e preferências.
Assim, durante o tratamento os familiares devem fornecer toda a informação necessária ao especialista, para que ambos trabalhem em sintonia. Silvestre Galho explicou que o aparecimento de qualquer doença mental numa família cria imensos transtornos, designadamente noites mal dormidas, ansiedade em poder ver o parente recuperado o mais rápido possível, enquanto a negligência pode provocar a depressão.

O também docente universitário explica que a depressão pode originar outros males como escoriações e automutilação. Esclarece que o problema começa ao nível leve, mas pode evoluir para moderado, grave ou severo, se faltarem as devidas precauções.
Na visão de Silvestre Galho, os especialistas devem garantir tratamento e acompanhamento de qualidade, instruir e orientar as pessoas mais próximas ao enfermo, guardar sigilo sobre as questões particulares do mesmo e informar com verdade sobre o evoluir da situação.
"À sociedade reserva-se o dever de ser  solidária com o doente, evitar estereótipos, preconceitos e outras atitudes que possam diminuir ou dificultar a recuperação”, concluiu.

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