Economia

Criação das Autarquias Locais: os desafios para as Finanças Públicas *

A descentralização Administrativa e Financeira em curso, para a criação das Autarquias Locais, implicará a realização de ajustamentos estruturais a nível das Finanças Públicas. Este artigo destina-se a fazer uma análise do que se prevê que venha a acontecer, nesse domínio, de modo a assegurar que o poder local tenha uma capacidade efectiva de prestação de melhores serviços aos cidadãos.

03/05/2021  Última atualização 09H05
Ministra das Finanças Vera Daves de Sousa © Fotografia por: DR
As Finanças Públicas são geralmente definidas como a actividade do Estado destinada à obtenção e aplicação de meios para a realização das necessidades colectivas. Acontece que, ao serem instituídas, as Autarquias Locais, no nosso País, serão entes distintos e autónomos do Estado, que prosseguem, a fortiori, os mesmos fins, que têm a ver com a satisfação das necessidades das populações.

Por isso, é importante, a priori, sublinharmos os passos que têm sido dados ao nível das Finanças Públicas nos domínios da desconcentração e descentralização administrativas. Em relação à desconcentração, reforçou-se a desconcentração dos poderes da administração central, em particular no que diz respeito ao Ministério das Finanças, passando as Delegações Provinciais de Finanças a assumir um protagonismo mais relevante em certas matérias, até aqui confinadas à Mutamba.
Quanto à descentralização administrativa, que concretiza o poder local, este o caminho começa a vislumbrar-se com a aprovação pela Assembleia Nacional da ossatura jurídica que lhe dará corpo.

De resto, um tronco desse corpo é a Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento das Autarquias Locais, onde estas são definidas como pessoas colectivas territoriais correspondentes a um conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança, me-diante órgãos representativos das respectivas populações. A característica de pessoas colectivas e o elemento prossecução de interesses específicos de vizinhança circunscrevem, ou delimitam, a sua actuação e conferem-lhes a necessária autonomia, que se manifesta de maneira administrativa, normativa, organizativa técnica e, fundamentalmente, financeira e política em relação ao Estado.

Esta análise remete-nos para o conceito de Autonomia Local consagrado na mesma lei, que compreende o direito e a capacidade efectiva de as Autarquias Locais gerirem e regulamentarem, nos termos da Constituição e da Lei, sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, os assuntos públicos locais. A Gestão destes assuntos públicos locais não será efectiva sem a capacidade de gerar e dispor de receitas e de realizar despesas de forma autónoma. Isto leva-nos ao estruturante princípio da Autonomia Financeira, que, de certo modo, é o centro desta reflexão em torno das Finanças Públicas autárquicas.

O escopo da Autonomia Financeira
A Autonomia Financeira consiste na capacidade e faculdade de a Autarquia autogovernar as suas finanças e património, corporizada nos poderes de elaborar e aprovar os seus planos e orçamentos, gerir os seus bens patrimoniais, exercer o poder tributário de criar taxas (não confundir com os impostos, que são reserva exclusiva da Assembleia Nacional), gerar receitas e realizar despesas nos termos da Lei, bem como exercer medidas de controlo interno.

Desse modo, depreende-se que as Autarquias Locais virão criar uma disrupção desafiante no domínio da actividade financeira do Estado, na medida em que, à luz do princípio da autonomia local, realizarão um conjunto de acções que são hoje exercidas pelo Estado central de maneira exclusiva. O financiamento das Autarquias Locais assenta em três grandes categorias de fontes de recursos: as receitas próprias, o recurso ao endividamento e as transferências do Estado. Vamos analisar cada um destes vectores de financiamento previstos na Lei.

Receitas Próprias das Autarquias Locais
As receitas próprias são constituídas por taxas aprovadas e cobradas localmente, imposto predial, imposto sobre veículos motorizados e outros, bem como as resultantes de preços e tarifas da prestação de serviços públicos pela Autarquia. Prevêem-se também receitas patrimoniais, resultantes da exploração ou alienação do seu património.
No domínio do poder tributário, as Autarquias Locais poderão criar taxas dentro dos marcos do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, uma competência hoje detida pelo Governo central. As taxas e alguns impostos definidos na Lei que aprova o Regime Financeiro das Autarquias Locais constituirão recursos próprios, o que de per si vai criar um estímulo no processo de captação das receitas.

Uma das principais caraterísticas da taxa é a contraprestação a ela associada. No entanto, apesar dos limites definidos no Regime das Taxas das Autarquias Locais, existe sempre o risco de serem criadas taxas que, na verdade, se configuram como verdadeiros impostos, ou seja, sem que exista de facto um serviço prestado pela Autarquia aos munícipes. Este risco é, no entanto, mitigado pelas regras legais para a criação de taxas e pela tutela exercida pelo Executivo sobre esta matéria, à luz da Lei da Tutela Administrativa Sobre as Autarquias Locais.

Importa realçar o papel do Portal do Munícipe, uma plataforma informática já em funcionamento e em permanente evolução, que permite a prestação de serviços com a emissão de licenças e atestados diversos aos munícipes, a arrecadação da receita e o retorno automático da mesma aos Órgãos da Administração Local do Estado. Esta ferramenta concorre para o processo do reforço da desconcentração financeira em curso, com vista à descentralização administrativa e financeira, bem como a modernização dos serviços públicos nos municípios, acções inscritas no Programa de Desenvolvimento Nacional 2018-2022.

As taxas arrecadadas no Portal do Munícipe constituem uma importante fonte de receitas, sendo que alguns municípios, para a despesa de funcionamento e de pequenos investimentos, já não precisam de contar com os Recursos Ordinários do Tesouro da Conta Única do Tesouro Central. É importante sublinhar aqui o alcance da arrecadação de receitas em sede do Portal do Munícipe e o facto de essa receita ser hoje, de forma célere, retornada às administrações municipais e distritos urbanos, com o objectivo de acudir às suas necessidades de funcionamento e não só.

Recurso ao endividamento pelas Autarquias Locais
Outra alteração significativa vai suceder no domínio do financiamento das despesas públicas, com a prerrogativa que a Lei confere às Autarquias Locais para contraírem empréstimos de curto, médio e longo prazos. A Lei estabelece requisitos muito apertados para contratar empréstimos, de modo a evitar que as Autarquias caiam na armadilha ou círculo vicioso da dívida. Por exemplo, os empréstimos contraídos em cada ano não podem exceder 30% da receita própria e o stock da dívida não deve ultrapassar 40% do total da receita própria e das transferências do Estado.

Além disso, os contratos da dívida são objectos da fiscalização preventiva do Tribunal de Contas, que deve solicitar a informação de confirmação dos níveis de endividamento à Tutela das Autarquias Locais. Com vista a salvaguardar o princípio da responsabilidade fiscal, os níveis de endividamento devem estar enquadrados ou estar dentro dos rácios de endividamento do País, como um todo, porque, no limite, o Estado Central acabará ficando responsável por esta dívida, em caso de incumprimento por parte da Autarquia.

No caso de desequilíbrio estrutural de uma Autarquia, o que consiste numa situação em que se mostre incapaz de fazer face às despesas com o pessoal, segurança social, rendas e alugueres, a Lei prevê medidas para o seu saneamento e resgate. Estas medidas podem levar a uma perda de autonomia da Autarquia, uma vez que a actuação dos seus órgãos executivos fica, se ocorrer um processo de saneamento, limitada ou mesmo substituída por órgãos de gestão constituídos pela Tutela.


Transferências do Estado para as Autarquias
No domínio fiscal, contrariamente ao que sucede com as actuais administrações municipais, que têm os seus orçamentos incorporados no Orçamento Geral do Estado (OGE), o orçamento da Autarquia é autónomo. O ponto de ligação entre ambos é a previsão no OGE das receitas que constituem transferências para as Autarquias Locais, que as registam como fonte de financiamento do Estado.

O Estado exerce uma tutela de ratificação do orçamento autárquico no seu processo de elaboração. No entanto, não interfere na sua execução, com excepção das receitas que transfere de modo condicionado para despesas específicas de carácter social. Temos aqui uma das manifestações do princípio da Autonomia Local, na vertente da autonomia financeira.

Sem embargo dessa autonomia, as transferências do Estado serão certamente uma das principais fontes de recursos das Autarquias Locais, sobretudo nos primeiros anos desse processo novo. Em alguns casos, será mesmo a principal fonte, pois a realidade não se altera por artes mágicas e grande parte dos actuais 164 municípios não estão ainda em condições de dispor de receitas próprias suficientes para fazer face às suas necessidades, mas terão a seu favor a proximidade e o contacto com os cidadãos no quadro institucional (na Assembleia Municipal, por exemplo) para uma mais adequada definição das prioridades das respectivas comunidades.

Financiamento e autonomia das Autarquias
As transferências do Estado encerram, portanto, um conjunto de desafios para o funcionamento das Autarquias Locais. Desde logo porque podem variar ou estar condicionadas à própria capacidade do Estado de gerar as receitas necessárias, em função de possíveis constrangimentos de natureza económica.
Outro desafio das transferências é o de ser criada uma relação de dependência da Autarquia em relação ao Estado, caso não estejam claramente estabelecidas as regras, porque existe o risco de serem usadas como forma de limitação ou condicionamento da autonomia das Autarquias Locais, mesmo estando previsto que essa ocorrência seja judicialmente impugnável.

Uma das formas de mitigar essa situação, e que está, naturalmente, a ser trabalhada, é automatizar com ferramentas informáticas os mecanismos de afectação dos recursos financeiros das transferências do Estado, ou ainda dos impostos consignados a título de receita própria. As transferências do Estado podem ainda gerar uma situação de comodismo e relaxamento por parte das Autarquias Locais. Face à certeza de determinado nível de receitas a partir do Estado central, pode ocorrer que estas deixem de ser proactivas no fomento da economia local e da captação de mais receitas próprias.

Composição das Transferências do Estado
No processo em curso de institucionalização das Autarquias Locais, a Lei estabelece um Fundo de Equilíbrio das Autarquias Locais, constituído por 20% das receitas geradas por determinados impostos, designadamente do Imposto sobre Rendimento do Trabalho, Imposto sobre Aplicação de Capitais e Imposto Industrial, com excepção dos diamantes e petróleo. Por sua vez, o fluxo dos recursos deste Fundo de Equilíbrio das Autarquias Locais será alocado em três dimensões:

(I) 50% para uma Subconta de Equilíbrio Vertical, sendo 90% deste valor distribuído de forma igualitária para todas as Autarquias e 10% para reserva de contingência;

(II) 30% para a Subconta de Equilíbrio Horizontal, com o objectivo de se proceder à perequação financeira, ou seja, a correcção de desequilíbrios ou assimetrias entre as Autarquias, com base em critérios de classificação dos municípios, assentes na ponderação conjugada da população residente, nível de desenvolvimento das infra-estruturas e índice de pobreza de cada uma das Autarquias;

(III)  20% para transferências condicionadas para o sector social.
Um dos objectivos da actividade financeira do Estado é garantir a gestão eficiente e parcimoniosa dos recursos do Tesouro, segundo os princípios de probidade, rigor e disciplina. Nesse sentido, operaram-se nos últimos anos ajustamentos legais a nível da Lei dos Contratos Públicos, Regras de Elaboração e Execução do Orçamento Geral do Estado, Lei da Dívida Pública, Lei da Sustentabilidade das Finanças Públicas e novo Regime Financeiro Local, aprovado em 2018.

Essa modernização do dispositivo legal, a par de uma permanente capacitação técnica dos quadros, no sentido da transparência e da gestão participativa, permite encarar com optimismo preocupações geralmente apontadas no processo de institucionalização das Autarquias. Uma dessas preocupações é a existência do risco de se transferirem, do poder central para o poder local, más práticas de gestão dos recursos públicos. Outra é a de serem transferidas funções para as quais não haja, localmente, capacidade técnica para a sua execução.

Prestação de contas e Responsabilização dos Autarcas
De resto, no âmbito do processo de preparação das Autarquias Locais, o Regime Financeiro das Autarquias Locais, já aprovado, estabelece um conjunto de medidas de fiscalização e responsabilização da gestão financeira das Autarquias. A Lei da Tutela sobre as Autarquias Locais identifica, inclusive, situações de incumprimento das normas de gestão financeira que podem levar à destituição do Presidente da Camara e à Dissolução da Assembleia Municipal.

As Autarquias Locais, no âmbito da responsabilidade orçamental, devem apresentar anualmente a Conta de Gerência, com todas as demonstrações contabilísticas, para efeitos da consolidação da Conta Geral do Estado. Deve-se realçar que o Executivo exerce a tutela inspectiva sobre os planos, orçamento, contabilidade, níveis de endividamento e património
A autonomia financeira das Autarquias Locais será, portanto, alvo de escrutínio legal, exercido pela Tutela e pelos órgãos jurisdicionais, designadamente pelo Titular do Poder Executivo e pelo Tribunal de Contas.

Essa tutela será orientada, entre outros aspectos, para a necessidade de garantir que a autonomia das Autarquias para se endividarem não ponha em causa os objectivos de consolidação fiscal do país, como um todo, e que ao criarem taxas não ponham em causa as políticas centrais de criação de um bom ambiente de negócios no País. Por outro lado, também é claro que será do interesse das próprias Autarquias criarem, entre si, um ambiente de sã competitividade, de modo a desenvolverem a economia local, criarem emprego e oferecerem serviços que permitam fixar a população residente.

Podemos concluir que, do ponto de vista da sua arquitectura legal e institucional, o regime financeiro aprovado para as Autarquias Locais está dentro das práticas internacionais mais actuais neste domínio, pelo menos à luz da realidade que foi estudada em países africanos e europeus, como Moçambique, Cabo Verde, Senegal, Rwanda, Namíbia e Portugal, para além dos contributos de académicos angolanos que têm vindo a debruçar-se sobre essas matérias.

Em todas essas realidades, verificou-se que as leis e processos das finanças locais foram sendo actualizados ao longo do tempo, até à sua sedimentação. Também nós não afastamos a possibilidade de virem a existir situações que, na prática, não corram, na sua plenitude, como previsto. O mais importante é termos a flexibilidade de se fazerem os ajustamentos necessários no caminho da construção e consolidação do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Finanças Públicas.

* Artigo inspirado no quadro de um workshop dirigido aos responsáveis do Ministério
das Finanças sobre a mesma temática
**Ministra das Finanças  Vera Daves de Sousa**

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