Opinião

Cuba e a caixa de velocidades

Manuel Rui

Escritor

Desde que consegui começar a ver, observo com atenção a CUBAVISION, um esforço desmedido para o povo cubano mostrar ao mundo a sua postura perante o embargo americano que é parte do fundamento mas também sustentáculo do castrismo que não se pode confundir com os regimes que começaram a cair logo a seguir ao empurrão do muro de Berlim.

07/01/2021  Última atualização 08H00
Eu estava em Cuba quando Fidel fez um discurso a sugerir que Gorbachov acautelasse a filosofia da Perestroika para um socialismo humanizante, sem restrições às liberdades fundamentais e não ser absorvido por uma glasnost (transparência) demonstrativa de que a União Soviética e seu império adjacente, afinal, não passavam de um castelo de areia sem alicerces mas só com um teto que era a nomenclatura.  É quase fora da história, entender-se que foi o presidente americano Reagan, talvez dos menos dotados, quem persuadiu Gorbachov para a mudança que se transformou numa derrocada.

Vivi Djablona, na Polónia, numa das conferências sobre "criatividade”, os maiores ataques ao regime soviético em prejuízo dos restantes partidos comunistas do mundo. Um dos representantes do partido comunista norte-americano sublinhava com emoção que enquanto, orquestras, músicos, compositores e cientistas, aproveitassem tournées para pedirem asilo e ficarem na América, significava que o sovietismo prático nada tinha de semelhante com o socialismo teórico, uma espécie de capote para vestir uma prostituta tatuada de morte e campos de concentração.

Todas as minhas idas oficiais à União Soviética, muito depois da independência foram pautadas por incómodos e insólitos… até os direitos de autor de uma edição me quiseram pagar com compras naquelas lojas da nomenclatura. Pedi um piano mas nem quê! Abro um parêntesis, porque o Alto Comissário que odiava a comunicação social, escreveu, em Portugal a dizer que eu tinha sido mandado preparar na União Soviética que o adiantado mental confundia com Coimbra entrando para o rol das mentiras post coloniais muito piores que as das invasões a que chamaram descobertas… estou a amenizar descobrimentos… nós os descobertos e eles os descobridores…

Mas voltando à Cubavision, a princípio sente-se que há falta de qualquer coisa, uma droga. É a ausência de publicidade. O estado suporta a televisão e o espectador não tem reflexos de Pavlov, não mastiga anúncios que já conhece de memória e salteado. A televisão cubana é orientada para defesa da revolução e, óbvio, não há uma referência a Fidel que não seja apologética. E, com toda a isenção, foi o líder de uma revolução singular, o orador do século, apesar dos pesares das prisões e fuzilamentos. Não enjeitava confrontos de opinião. Eu estava no Júri do prémio "Casa das Américas,” para livros em português que eram só os de autores brasileiros. Vivi a tentativa de corrupção (não de cubanos) para eu propor um determinado livro. Fidel convidou os jurados para um lanche e lá fomos discutir taco-a-taco até de manhã com a presença de escritores exilados que tiveram o direito de vir a Cuba. Vivi o esforço organizativo para suportar um evento que só dava prestígio. Mas a revolução cubana foi e é exemplar no apoio à música, ao livro, ao bailado e dança bem como ao desporto de alta competição. E ganhou prestígio mundial com a sua medicina.

Quando vejo hoje a televisão cubana falar na legislação sobre a moeda, o fim da entrega pelos turistas dos dólares para receberem papeis, títulos para comprarem como se fossem dólares, os pesos convertíveis (uma invenção surreal), lembrei-me de quantas discussões sobre moeda e mercado eu tive com amigos. Com as nacionalizações até de pequenas fincas (xitacas) a produção agrícola regrediu, com trabalho voluntário e sem mercado. Trocava-se na licitude do ilícito. A economia não andava. Era só a União Soviética que sobrevalorizava o preço do açúcar e Cuba, para além do tabaco era uma monocultura da cana protegida. Caiu a sóvias e Cuba ficou de pé com a organização do poder popular, os cidadãos estavam organizados por ruas e bairros em volta do partido, invocando Che e idolatrando Fidel. É com esses valores que Cuba aguenta as mudanças sem gripar o motor…

E estou a ver a Cubavision e a lembrar-me que depois do Alto comissário e o colégio presidencial, quase silenciarem a rádio nacional, reduzindo tudo à música e aos minutos para os programas dos partidos, também, a televisão pronta a ir para o ar, foi antecipadamente adiada por ser perigosa naquela altura de tiroteio oficial, eu saí, fui ter com o camarada Neto e sugeri abrirmos a televisão à revelia. Neto bateu palmas duas vezes.

Mostrem as imagens que a verdade anda a ser enxovalhada. Eu, fui abrir a televisão. O professor Fernando de Oliveira, no seu artigo sobre a Dipanda fala nisso. Televisões nos bairros para assistirem à Dipanda que a praça era pequena para tanto coração.Nela estiveram a "inventar” Orlando Rodrigues, António Ole, Luandino Vieira, Rui Duarte e tantos outros.

Na Televisão Popular passaram grupos de dança que ensaiavam em todos os terraços, caçulinhas da bola, cantores do "muito obrigado camarada Neto”, os quadros humanos a fazerem desenhos no estádio e, para meu orgulho, mais tarde, Angola a aproximar-se da vitória do africano de basquetebol, eu rabisquei um poema mandei para a TV que passou logo em cima das imagens. O meu neto gritou: "Se o avô não para de chorar eu desligo a televisão!”

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