Opinião

Daqui não saio, daqui ninguém me tira

Osvaldo Gonçalves

Jornalista

A cada dia que passa, o meu cachorro ganha cada vez mais espaço na Internet. Sem saber ler nem escrever, Perry usa-me para expressar as suas ideias.

26/01/2021  Última atualização 07H18
Às vezes, dou-me conta de que, na verdade, as ideias são minhas. Mas, tudo bem. Como dono e senhor, é assim que tem de ser.
Como é lógico, recuso-me a falar dos seus podres. Afinal, o cão é meu. Fui eu quem o escolheu. Já o meu Velho dizia, a respeito dos animais domésticos, que eles são a cara do dono.
Há dias, entretanto, tivemos uma discussão. Quer dizer, eu falei, barafustei, mas ele não abanou a cauda nem os dentes mostrou. Os cães ladram, a caravana passa...

Mal habituado, o Perry gosta de ficar deitado na sala. Quando estou a escrever, ele fica ali sossegado. Quem assim o vir, dirá que é um doce de cão. Mas as aparências iludem. De facto, está a apreciar o fresco do ar-condicionado. Mandei-o para o quintal e fechei a porta, mas, na primeira oportunidade, voltou a entrar e escondeu-se.
Chamei por ele, sem obter qualquer resposta. Pensei até que tivesse ido para a rua. Só horas mais tarde, devido à fome, sede ou por ter de fazer necessidades, se fez notar. Na televisão, repetiam sem parar as notícias sobre o que se passava nos EUA, com o assalto ao Capitólio, por apoiantes do candidato derrotado, Donald Trump.

Nas redes sociais, internautas insistiam que, afinal, o apego ao poder não é uma "doença” exclusiva dos africanos, como se aos políticos do continente nada mais restasse que a comparação com o que há de pior no Mundo.
Em África, multiplicam-se os casos que, de tão caricatos, acabam por se tornar más referências, tanto de má governação, como de apetência pelo poder. Seja através de golpes de estado militares, seja de manobras parlamentares, uma vez no Governo, os políticos fazem de tudo para aí se manterem.

O que mais chama a atenção é que muitos dos supostos críticos dos poderes acabam enredados nas teias daqueles ou, quando convidados para ocupar cargos públicos, revelam-se tão ou mais tóxicos que os seus antecessores.
Pessoas antes apontadas como "reservas morais” da sociedade nos países africanos acabam envolvidos em polémica. O que primeiro se nota é a vaidade, própria da falta de educação e de amor-próprio.

Segue-se a ostentação e daí à corrupção é meio caminho. O mais justo seria as pessoas prestarem contas do seu modo de vida, que se avaliassem os rendimentos de cada um e se investigassem as formas como cada um obtém os bens que ostenta.
Alguns dizem que essas são características dos angolanos, sempre a quererem aparecer, a "causar”. Mas isso denota total desconhecimento da verdadeira índole dos filhos desta terra.

Há um desrespeito pelos valores da chamada "Angola profunda”, de que se apela ao resgate. Muitos dos jovens de hoje são desprovidos desses apegos, sobretudo, porque os ignoram.
Já o disse muitas vezes e repito-o aqui que a muitos falta um "banho” de angolanidade. De saírem das selvas de betão que são as grandes cidades e embrenharem-se no "mato”, de ouvirem os mais velhos e sentirem o cheiro da terra.

Para mim, Perry é um bom camarada. Grosso modo, atende às ordens que lhe dou e até as brincadeiras e malandragens que fazia, quando era mais novo e resultavam em prejuízos cá em casa, deixou de fazer.
O problema está nas mordomias que ele se recusa a deixar. Daqui não saio, daqui ninguém me tira e, se tiver de usar artifícios para permanecer, assim farei.

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