Dossier

Doenças tropicais com muitas vítimas

Mazarino da Cunha | Em Sharm el-Sheikh

Apesar de nalguns casos constituírem um problema de saúde pública, as doenças tropicais negligenciadas ainda carecem de apoios por parte de instituições de saúde para o seu combate. Uma das características comuns é o impacto negativo e o facto de acentuarem mais os níveis de pobreza. Na maioria das vezes, o doente é discriminado, não trabalha e torna-se um fardo económico para a sua própria família e para a sociedade.

27/09/2011  Última atualização 08H50
Mota Ambrósio © Fotografia por: Jovens estudantes tiveram uma presença marcante no segundo simpósio sobre doenças tropicais negligenciadas

Apesar de nalguns casos constituírem um problema de saúde pública, as doenças tropicais negligenciadas ainda carecem de apoios por parte de instituições de saúde para o seu combate. Uma das características comuns é o impacto negativo e o facto de acentuarem mais os níveis de pobreza. Na maioria das vezes, o doente é discriminado, não trabalha e torna-se um fardo económico para a sua própria família e para a sociedade.
Passaram-se nove meses, mas Cachacha António ainda sente arrepios quando se recorda do dia em que, repentinamente, e sem qualquer sintoma que o fizesse prever, começou a urinar sangue. Assustado e envergonhado, submeteu-se a um tratamento caseiro até descobrir, por intermédio de um familiar, que padecia de schistosomíase, doença que é provocada por um parasita muito frequente nos rios.
Natural da cidade do Caxito, província do Bengo, desde criança que Cachacha António tinha por hábito tomar banho no rio, um comportamento herdado dos progenitores e que por pouco não lhe foi fatal.
"Só quem já passou por isso pode entender o sofrimento e desconforto que a condição provoca", lembra.
Também vítima de doença tropical negligenciada, apenas aos 14 anos, os pais de Maria Cambambe descobriram que a filha era portadora de depranocitose, vulgarmente conhecida como anemia de células falciformes, um mal que afecta muitas famílias angolanas e que por falta de diagnóstico clínico precoce, mata anualmente cerca de cinco mil crianças. "Sou natural do Quitexe, província do Uíge, onde não existem meios para diagnosticar a doença e os meus pais também desconheciam que eram portadores", explicou.
Aos 26 anos, a jovem revela, com alguma mágoa, que é a sexta de um total de sete irmãos, três dos quais falecidos à nascença. Na pele de portadora de anemia de células falciforme, Maria Cambambe admite que não tem tido uma vida fácil, e por isso lamenta que ainda existam regiões no país desprovidas de consultas de aconselhamento para casais de risco.
Conta ainda que, na aldeia onde nasceu, e apesar de em momento algum ter ouvido falar da doença, muitos habitantes ignoram o facto deles próprios serem portadores e, por via disso, os próprios vectores dos seus descendentes.
"Apesar dos esforços que são feitos a nível ministerial e de algumas associações, acredito que são necessárias muitas mais acções concretas", considerou.
As enfermidades que afligiram Cachacha António e Maria Cambambe incluem-se num conjunto de cerca de 14 Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN) e que foram recentemente analisadas no II Simpósio do Instituto Superior de Ciências da Saúde (ISCISA).
Para a decana do Instituto Maria da Conceição da Silva, a instituição que dirige tem vindo a desenvolver várias actividades científicas, cujas temáticas têm versado sobre os problemas de saúde que afligem os países africanos em geral, e em particular Angola.
Maria da Conceição da Silva explica que as DTN contribuem para um ciclo contínuo de pobreza e são um estigma que deixa milhões de pessoas sem trabalhar, frequentar a escola ou participar na vida familiar e da sua comunidade. No entanto, a maioria dessas doenças podem ser prevenidas, eliminadas ou erradicadas.
"Os profissionais de saúde desempenham um papel crucial e o trabalho em equipa multissectorial e multidisciplinar tornam-se fundamentais para a definição de estratégias concretas, que visem a promoção da saúde, a prevenção da doença, o seu controlo e a reabilitação do doente", alertou.
Maria da Conceição da Silva aposta na investigação como base para a fundamentação das acções dos especialistas de saúde e considera que com união é possível fazer mais e melhor no combate às DTN.

Pouca divulgação

O coordenador do Programa de DTN da Direcção Nacional de Saúde Pública (DNSP) disse que a designação é um termo adoptado pela OMS, no sentido de alertar os países para um grupo de doenças que geralmente beneficiam pouco de apoios por parte dos parceiros daquela organização das Nações Unidas e de habituais doadores.
Em declarações ao Jornal de Angola, Pedro Van-Dúnem disse que a DNSP controla especificamente cinco doenças endémicas existentes em Angola e que o trabalho que é feito incide nas áreas preventiva, educação e informação no seio das comunidades, como o alerta para o perigo de banhos nos rios.
"O termo DTN é específico de cada país, porque existem doenças negligenciadas num país e noutro não. De uma maneira geral, abrange aquelas doenças que não beneficiam de suporte financeiro, pesquisa ou divulgação", explicou.
Pedro Van-Dúnem realçou que as doenças estão generalizadas em todo o território nacional, devido ao deficiente saneamento básico e ao défice na oferta de água canalizada, ao contrário do que acontece com a oncocercose que é endémica nas províncias do Moxico, Kuando-Kubango, Huíla, Benguela, Uíge, Kwanza-Norte, Bengo e nas Lundas. Acrescenta que os adultos estão entre as principais vítimas dessas doenças, porque elas têm a característica de possuir um tempo de incubação longo.
"As coberturas vacinais e de desparasitação nem sempre satisfazem as exigências de prevenção. Ainda assim, seguem o seu ciclo normal e as pessoas devem saber sobre o risco de exposição que correm de contrair uma dessas doenças".

Indicativo das doenças

As DTN constituem um grupo de aproximadamente 14 infecções crónicas identificadas pela Organização Mundial da Saúde OMS que afectam mais de mil milhões de pessoas a nível mundial, causando milhares de mortes anualmente, em particular no continente africano. Deste grupo fazem parte a paracytose, filaríase linfática, oncocercose, tracoma, tripanosomíase humana, geohelminitiases, cistecercose, a úlcera de buruli, leishmaniose e a schistosomíase.
Dados da OMS indicam que elas afectam à volta de um milhão de pessoas no mundo, principalmente entre as populações pobres da África, Ásia e América Latina, que vivem em climas tropicais e subtropicais, ou em áreas de conflito armado. Estas doenças alimentam o ciclo vicioso da pobreza e fazem prevalecer o estigma e a discriminação em relação aos doentes, levando a que pessoas afectadas não tenham acesso à escola ou ao trabalho, e sejam frequentemente marginalizadas nas actividades, quer da vida familiar quer nas comunidades onde residem. Apesar de constituírem um importante problema de saúde pública, ainda não são consideradas prioritárias e por vezes são negligenciadas tanto pelas comunidades como pelas estruturas nacionais e internacionais.

Participação da comunidade

A tuberculose é das doenças tropicais negligenciadas que mais afecta os angolanos. O administrador do Dispensário Anti-Tuberculose e Lepra frisa que, apesar dos esforços do Executivo, a enfermidade continua a ser um problema de saúde pública e muito precisa ser feito para a combater.
Paulo Luvualo alega que, ao contrário das outras doenças negligenciadas, a tuberculose atinge também países europeus e pessoas de todos os níveis sociais, o que provavelmente a torna conhecida e bem documentada aos olhos do mundo.
"Neste momento, podemos dizer que temos as condições criadas para o diagnóstico e o tratamento da tuberculose", assegura.
Os dados do dispensário Anti-Tuberculose e Lepra revelam que se trata de uma doença cosmopolita e endémica em todo o país. Paulo Luvualo acrescenta que, até há pouco tempo, apenas 28 unidades sanitárias realizavam o diagnóstico e dispunham de condições para o tratamento.
"Hoje, temos a estratégia de combate em expansão e a província de Luanda é um exemplo, com o alargamento do tratamento nas diversas unidades, o que tem sido possível graças ao contributo do programa de municipalização dos serviços de saúde", disse.
Os dados estatísticos do Dispensário Anti-Tuberculose e Lepra estimam um controlo de 15 mil pacientes com tuberculose, desde o início de 2011, e o seu responsável aponta a necessidade do envolvimento de todos os sectores da sociedade para vencer a batalha de redução, ou até mesmo erradicação, da tuberculose e das outras doenças.
O mesmo pensamento é partilhado pelo representante da OMS em Angola, que considera desnecessário manter a ideia de que os profissionais de saúde detêm toda a verdade naquilo que é o tratamento ou a prevenção das DTN.
Rui Gama Vaz realça que um papel fundamental deve ser dado ao envolvimento da comunidade nas políticas de combate institucional.
"É necessário envolver sempre os membros da comunidade como agentes activos nas acções de combate, sob pena de nunca se alcançarem bons resultados", afirmou.
Além de apontar a partilha de conhecimentos, descentralização e revitalização das infra-estruturas hospitalares municipais como exemplos a seguir, Rui Gama Vaz elogiou o novo modelo das campanhas de vacinação contra a poliomielite que agora são dirigidas pelas próprias administrações municipais.