Reportagem

“Há pessoas que acham engraçado ter um menino africano em casa”

Da enfermagem às missões, Maria José Ferreira sente que nasceu para cuidar dos outros. Uma vocação que nem sempre é percebida por quem está à sua volta. Ao jornal português “Diário de Notícias”, conta como foi perdendo alguns amigos, mas também como se surpreendeu com a generosidade de muitos desconhecidos .

06/01/2019  Última atualização 10H12
DR © Fotografia por: A enfermeira considera que a viagem à Guiné foi uma reviravolta na sua vida o que lhe tem dado muita alegria


Li que a sua vida mudou após uma viagem à Guiné-Bissau. O que aconteceu?
A viagem à Guiné foi uma reviravolta na minha vida. Tinha feito 40 anos e fiz um balanço. Achei que podia fazer muitíssimo mais. Chega a uma altura da vida em que temos emprego, filhos, tudo o que está formatado, mas fica um vazio. Não queria, e não quero, chegar à idade dos meus pais e pensar: “O que é que eu fiz da minha vida?”  Tive colegas de curso que fizeram missões humanitárias, mas segui sempre o caminho normal. Aos 40, quis mais do que isso. Tenho uma amiga cujos pais viveram na Guiné-Bissau. Ela queria muito conhecer aquela terra. Falámos com um outro amigo que também quis ir. O meu marido disse que ficava com a miúda e então fomos.

Foi em lazer?
Fomos ver. Considero-a uma viagem exploratória. Nunca tinha ido a África e quis ver como era África pura e dura. Na altura, deram-nos o contacto de uma ONG de lá, que faz um trabalho social fantástico. Ainda hoje é nossa parceira. Eles foram-nos buscar e providenciaram tudo: alimentação, estada, deslocações no país. Foram extremamente inteligentes. Pensaram: “Vamos lá ver se os conseguimos cativar, se vamos semear alguma coisa.” Ficámos lá duas semanas.

O que fizeram durante esse período?
Não ficámos na capital. Levaram-nos para a ilha das Galinhas. Fomos numa piroga, um barco estreito. Andámos durante uma noite inteira, sem bússola. Diziam-nos que se orientavam pelas estrelas. Foi muito bom, muito gratificante. Vimos as condições mais miseráveis, que só conhecemos dos filmes. Crianças nuas, desnutridas, algumas com fome. Situações de saúde gravíssimas, pessoas que vivem no limiar entre a vida e a morte.

Do que viu nessa viagem, o que mais a marcou?
O estar-se completamente isolado, sem ter absolutamente nada. Não existem bombeiros, polícia, hospital, enfermeiros. Não existe nada. As pessoas aceitam a realidade, porque não têm alternativa. Não têm um barco para sair dali. Se uma criança está doente, não tem onde ir. Se uma mulher precisa de parir, não tem onde ir. É tudo muito selvagem, entre a vida e a morte.

Foi quando regressou que decidiu criar uma ONG?
Há um choque cultural grande quando se vai à Guiné pela primeira vez. Se ficar só por Bissau, não, porque é quase Europa. Mas ir para o mato é muito marcante. Quando regressei, tinha um nó na cabeça. Das duas, uma: ou ignorava e seguia a minha vida normal ou fazia alguma coisa para ajudar. Mas fazer o quê? Começar por onde? Fiquei numa ansiedade, numa aflição, a pensar no assunto. Entretanto, falei com uma colega de serviço, que tinha uma sobrinha médica que queria muito ir a África. Conheci-a e houve uma empatia. Falei-lhe da minha viagem, do que tinha visto e sentido. E convidei-a para formar uma associação. Na altura, o namorado dela e o meu marido juntaram-se e começámos a delinear um projecto. Mas não sabíamos nada. O nosso motor era a vontade. Convidámos várias pessoas para fazer parte e reunimo-nos durante um fim de semana numa casa, com os miúdos. E foi numa dessas madrugadas que surgiu o nosso slogan. Foi quando alguém disse: “O que nos move são paixões.” E é isso. Não andamos aqui para receber dinheiro, para enriquecer. São paixões, coisas muito gratificantes, trabalhosas.

O seu marido esteve consigo desde o início...
Sim, desde logo, mas só neste ano é que foi à Guiné-Bissau. Curiosamente, o dia em que ele embarcou, 13 de Janeiro, foi exactamente dez anos depois de eu ter ido a primeira vez. É daquelas coisas que não se explicam. Sem planear nada. Só nos apercebemos no aeroporto. Ele não tinha ido, mas ouve-me todos os dias. Tivemos muitas crianças na nossa casa. Ele cuidava delas, estava perfeitamente inteirado. Eu não consigo fazer tudo. Quando entram na nossa casa, é como se fossem nossos filhos.

Já fizeram oito missões desde que a MSH foi criada. Em que consiste cada missão?
Na primeira missão, o nosso objectivo era juntar profissionais de saúde e prestar cuidados de saúde lá. E assim foi. Essa ONG que nos tinha recebido delineou um programa para irmos dar consultas onde eles consideravam que era mais urgente. Visitámos várias estruturas hospitalares e fomos ao hospital de referência. Aí, vimos um miúdo, de 4 anos, com o rosto completamente queimado... Aquilo impressionou-nos muito.

O que tinha acontecido a essa criança?
Tinha caído com a cara numa fogueira. Para cozinhar, as mulheres juntam pedras e fazem uma fogueira. Aquele menino caiu no fogo, foi um acidente. Tinha o rosto num estado lastimável. Estava em ferida, apenas pintado com mercúrio. Não havia mais nada. Sem analgésico, sem antibiótico, com as pálpebras todas rasgadas. Se não saísse dali, morria. Aquilo mexeu muito connosco. Era o hospital de referência. Não havia recursos. Tínhamos de o trazer, mas não sabíamos como. Andámos três meses a tratar de tudo, com as embaixadas, a Direcção-Geral da Saúde, o Hospital de São João, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Mas, com muita persistência, conseguimos.

Como correu?
Fomos buscar a criança ao aeroporto de Lisboa para a trazer para o Porto, como fazemos sempre. Há sempre alguém que as vai buscar, porque ficamos com a tutela a partir do momento em que chegam a Portugal. Como tinha viajado a noite toda, adormeceu na viagem. O que nós não sabíamos era que dormia de olhos abertos. Revirou os olhos e nós entrámos em pânico, a pensar que tinha acontecido uma tragédia. Mas estava apenas a dormir. Esse menino ainda está cá, está bem, já é um adolescente. Essa médica afeiçoou-se, tratou dos documentos e ficou com ele. Inicialmente, trabalhámos com famílias de acolhimento. Eu ficava com uns, a médica com outros. Mas, ao fim de um tempo, percebemos que não podíamos continuar assim.

Na sua casa, como era a convivência com as crianças?
Difícil. A minha filha reagiu muito mal. Tinha 13 anos e, quando percebeu que as crianças iam ficar algum tempo, não reagiu bem. Havia muitos ciúmes e ainda hoje há. Mas a maturidade é bastante diferente.

Quantas crianças já acolheu?
A integrar o meu núcleo familiar em permanência, cerca de dez. Temporariamente, com pelo menos o fim de semana em minha casa, aproximadamente 50. Em simultâneo, não mais do que duas. Quando eram pequenos, a minha filha achava muita graça, mas quando a idade se aproximava da dela era difícil.

Por que razão deixaram de trabalhar com famílias de acolhimento?
Há cerca de três anos, as crianças começaram a ser recebidas no Colégio Barão Nova Sintra, no Porto. Havia sempre muitos pedidos para trazer crianças para Portugal. Tínhamos o hospital receptor disponível, mas faltava o acolhimento social. As crianças ficam internadas, mas, quando têm alta, precisamos de um sítio para as acolher. Começámos por procurar famílias para as receber, inicialmente, entre os órgãos sociais da MSH, mas tivemos de alargar para os nossos amigos. Só que surgiram muitos problemas.

Que tipo de problemas?
A maior parte das patologias são cardíacas. Não havia sossego. As pessoas ligavam-nos para o telemóvel a toda a hora, porque o menino tinha febre, uma borbulha, uma constipação, coisas normais de crianças. Mas nem foi tanto por aí. Houve algumas famílias que nos devolveram as crianças, que as vieram trazer à porta da minha casa. Se, por um lado, houve situações em que se criou uma ligação afectiva muito grande, também houve quem devolvesse as crianças. “Maria José, vou aí levá-la.” Estamos a falar de um acolhimento que era temporário. São crianças africanas, algumas vêm do mato. Há pessoas que acham muito engraçado ter um menino africano em casa, ir ao restaurante com dois filhos brancos e um preto. Pensam que isso lhes dá um certo estatuto. Mas as coisas não são fáceis. Há crianças que comem com as mãos, que não sabem usar talheres. Já tive situações em que não sabiam usar a sanita, que faziam cocó no tapete da casa de banho. Ainda hoje me acontece. Trocam as toalhas. Para eles, é tudo igual. A sanita e o bidé são dois buracos. Não gostam das coisas que as nossas crianças gostam, não têm os mesmos horários. Isso cria graves conflitos em casa e as famílias cansam-se.

Surpreendeu-se com muitas pessoas durante estes dez anos?
Pela positiva, sim. Mas pela negativa, também. Há muitos oportunistas neste trabalho.

Como assim?
Pessoas que necessitam de uma grande projecção social, que nos ajudam mas que querem muito que façamos agradecimentos públicos no Facebook. Também havia muitas pessoas que queriam escolher a criança, o género, o tamanho do cabelo. Chegavam a vê-la e a dizer: “Não quero”. Outros pensavam que iam ganhar muito dinheiro com isto. Tal como há pessoas que pensam que só posso ter um ordenado milionário para estar há tantos anos nisto. O meu marido costuma dizer que tenho um segundo emprego para gastar dinheiro, porque trabalhamos todos em regime de voluntariado. Agora, a MSH começa a suportar as suas próprias despesas, mas, numa fase inicial, não era assim.

Continua a receber crianças em sua casa?
Sim, continuo. Dá-me muito trabalho, mas gosto muito, delicio-me com os miúdos. E vou buscar os meninos que estão no colégio, tanto para passar fins-de-semana como nas férias. Além disso, temos uma rede de voluntários que visitam as crianças no hospital e na instituição. Todos os dias.

Por que razão é que as crianças vêm sozinhas?
No passado, houve situações em que os pais faziam tentativas de imigração ilegal. Muitas vezes, não regressavam à Guiné. Abandonavam os filhos no hospital, fugiam. Como é extremamente difícil conseguir visto para Portugal, os guineenses aproveitavam a situação de saúde dos filhos e nunca mais regressavam ao país. Já tivemos algumas tentativas, porque no início não tínhamos limite de idade e isso aconteceu com os próprios doentes, quando recuperavam. Por isso, agora só trazemos crianças até aos 16, 17 anos.

Houve alguma criança que lhe tenha custado mais devolver à família?
Quando levo uma criança ao aeroporto, pode custar despedir-me dela, mas há um sentimento enorme de felicidade e missão cumprida. Nós investimos muito nas crianças. É sair da cama durante a noite para as levar ao hospital ao Porto, faltar aos aniversários dos amigos, aos almoços e jantares com a família.

Sentiu que algumas pessoas se afastaram?
Sim. Chega a uma altura em que não há tempo para os amigos. E eles não entendem. Deixei de explicar, porque as pessoas não percebem. E eu cansei-me. Até para a família foi difícil. Havia uma vida socialmente padronizada, aceitável, quase perfeita... E, de repente, a família não entende o que estamos a fazer. “E a tua filha? E o teu marido?”

O que mudou em si desde o início das missões?
Hoje sou muito mais atenta, mais preocupada, mais consciente. Há pessoas que dizem que ser altruísta é algo um pouco egoísta, porque de facto nos sentimos bem a fazer bem ao outro. E talvez seja viciante. Quando uma criança vai embora, é extremamente difícil, mas é muito gratificante. Ela chora, nós choramos, mas ficamos com um sentimento de missão cumprida.

Morte de dois meninos foi o pior que aconteceu

Mas nem todas as histórias têm um final feliz...
Não, já tivemos dois óbitos. Os dois meninos tinham estado na minha casa. Posso dizer que foi a pior coisa que me aconteceu na vida. Um era adolescente e sabíamos que ele ia morrer. Tinha o coração e os pulmões muito, muito mal. Queríamos enviá-lo para Bissau, mas não conseguimos. Faleceu aqui em Aveiro. A agência funerária foi fantástica, não nos levou dinheiro por nada. Demos a notícia à família, que nos pediu que enviássemos fotografias dele no caixão. Tínhamos vestido um fato ao menino e a família ficou muito grata, porque ele teve um funeral digno.

E o outro?
Foi muito difícil. Foi um menino que tinha estado na nossa casa três anos e meio. Tinha 17 anos. Faleceu no Hospital de São João, na véspera de Natal. Andei muito tempo a bater mal. Ele não veio pela MSH. Tinha sido recebido pelo consulado da Guiné-Bissau, conheci-o no hospital. Era tão franzino, tão pequenino, tão tímido. Eu apaixonei-me pelo garoto. Houve uma grande empatia e fiquei com o menino quando teve alta. Estava muito bem, mas, a determinada altura, começou a descompensar. Entrou em coma e faleceu. Guardo uma caixa com as coisas pessoais dele. Não consigo desfazer-me dela, mas não lhe consigo tocar. Há coisas que nos marcam muito. Um projecto que temos é construir uma casa de acolhimento para estes meninos. Se conseguirmos, vai chamar-se Adelino Pedro Mendes, em memória dele.

O Projecto Esperança traz crianças para receber tratamento médico ou cirúrgico em Portugal. Na sua vida pessoal, alguma vez precisou de procurar ajuda fora do país?
Sim, já tive de sair de Portugal, porque o país não tinha resposta. Deixar a minha casa, a família... Já vivi isso, sei o que isso é. Foi quando a minha filha nasceu. Ela tinha uma doença congénita de visão e, na altura, não havia solução cá. Tinha feito imensas cirurgias, não havia mais nada a fazer. O prognóstico era péssimo... Estávamos desesperados. Fomos à Suíça e correu muito bem. Quando viajámos, não pensámos nisso, mas quando o médico nos disse o preço, percebemos que não tínhamos dinheiro. Perguntou-nos quanto podíamos pagar por mês. Sem nenhum papel, pagámos uma mensalidade durante mais de um ano. Mais tarde, voltei a repetir esta experiência.

Como?
Com o meu irmão, devido a uma situação de saúde muito grave. Ele tinha uma insuficiência renal e estava há vários anos em lista de espera para transplante. Não havia compatibilidade com nenhum familiar. Mas o meu irmão tinha ouvido falar de uma clínica nos EUA, onde podia ser possível fazer o transplante. E marcou uma consulta. Eu tenho um grupo de sangue diferente do dele, mas, como a tecnologia estava muito mais avançada, foi possível fazer a doação do rim.

Sentiu medo em algum momento?
Não. Sou bastante determinada. Decidi que ia doar o rim ao meu irmão. Houve quem me questionasse, me dissesse que ia ficar doente. A nossa mãe ficou muito assustada. Quem é que conhecíamos que tivesse ido lá? Ninguém. Que referências tínhamos? Nenhumas. Fiquei lá um mês, ele ficou um mês e meio. Correu muito bem.

A enfermagem continua a ocupar um lugar importante na sua vida?
Sim, mas um dia vou ter de a largar. Começa a ser incomportável conciliar tudo. É uma logística muito grande. Passo os dias entre Estarreja, Aveiro e Porto. São muitos anos. Hoje estou de greve, o que dá muito jeito. Já ando a gastar férias do próximo ano. Gosto do que faço, mas está a chegar a um ponto em que não dá para fazer tudo. E as missões podem ser muito mais gratificantes.

Aos 40 anos, sentiu que podia fazer mais. Nesta altura, o que lhe falta fazer?
A construção de uma casa de acolhimento é um sonho que gostava muito de concretizar, mas sei que é muito difícil. Gostava de deixar um legado. Estes miúdos reparam muito em nós, somos modelos. Não sei se algumas destas crianças não virão a envolver-se com a MSH, mas gostava muito que isso acontecesse.


 



Especial