Sociedade

Mártires de Kifangondo, onde morava certa elite colonial

Naquela época, anos '30/'40 do século XX, o asfalto ia tomando conta do areal, e por exemplo, da rua “António Barroso” (hoje Marien Ngouabi) tinha uma picada que subia até aos depósitos de água (hoje EPAL) e desembocava num bairro clandestino, onde se construía em todo o canto e que, curiosamente, se chamava Bairro Salazar, nome atribuído em homenagem ao político fascista português António de Oliveira Salazar.

13/01/2019  Última atualização 12H54
João Gomes | Edições Novembro © Fotografia por: Ao longo dos anos o Bairro Mártires de Kifangondo foi sofrendo transformações em função das realidades políticas, sociais e até regionais

Reza a história que esse bairro, cujos moradores surgiram há noventa anos (1938), tinha no seu interior muitos cajueiros e imbondeiros, razão pela qual era popularmente chamado Bairro dos Imbondeiros.

Essa era a designação que o bairro tinha até aos anos quarenta. A denominação Bairro Salazar surge muito mais tarde, quando começaram a surgir as primeiras edificações, provavelmente por volta na década de cinquenta.

“A circunscrição passou a ter essa designação por causa daquela  atitude  oportunista de alguns dos seus moradores, na sua maioria de raça branca, em atribuir o nome para homenagear o líder António de Oliveira Salazar,  isto nos princípios da década de sessenta”, diz  António Cunha, que vive no bairro há 48 anos.

António Cunha, que na época colonial era leitor assíduo da publicação semanal “Notícia”, a revista fundada por João Charula de Azevedo, conta que havia um projecto da Cãmara Municipal  para fazer a demolição das poucas casas que havia então no bairro.

No entanto, os moradores foram avisados a tempo por um alto funcionário da Cãmara Municipal  das intenções dos agentes da fiscalização. Os buldozeres e outra maquinaria estavam preparados e nesse dia os moradores, na sua maioria funcionários públicos, decidiram não ir trabalhar. Os moradores fizeram cartazes, dísticos e um abaixo assinado a dizer e a avisar  que o então governo da Província Ultramarina de Angola estava contra Salazar. Revoltosos, os moradores já não queriam saber de Salazar,  e então, como diz  o ditado popular, quem conta um conto aumenta sempre um ponto, a informação terá chegado distorcida a Portugal. Quando a informação da revolta, por causa da demolição das casas, chegou a Portugal, conta António Cunha,  Salazar terá preferido “deixar ficar o bairro como estava”. Terá sido assim que os moradores se viram livres da demolição.

 

Moradores militares

Maria Fernanda Baptista, nascida a 12 de Maio de 1938 no bairro e hoje ainda em pleno gozo de saúde, é considerada a munícipe mais antiga e uma das grandes referências da circunscrição. Segundo ela, as primeiras moradias do bairro foram construídas  com madeiras compradas na serração. E as poucas casas de tijolos que existiam eram de famílias influentes.

Devido a proximidade aos quartéis, alguns moradores  acabaram por ser os antigos militares oriundos de Portugal, que no final das suas missões já não regressavam à terra de origem porque tinham encontrado o “El Dourado”. Muitos formaram as suas famílias, com as quais moravam nas casas construídas na clandestinidade.

Cláudio Arroba, um miliciano português que viveu no antigo Bairro Salazar, conta  com alguma nostalgia dos tempos passados na guerra em Angola. “Penso que quem não esteve na guerra não vai conseguir compreender o que foi. O soldado português foi considerado opressor, quando afinal vinha com a convicção de defender a pátria”, disse.

 

Acesso privilegiado

Situado num local privilegiado da cidade capital, o bairro Salazar era habitado também  por gente da alta burguesia, colonos oriundos de proeminentes famílias, tais como  Paulo Robalo, os irmãos Oceano e os Borges de Sousa, que participavam em corridas de carro, além de Rui Gomes, Mário Nunes, Manuel Lupi, senhor Lopes, Rui Manuel e tantos outros.

Habitavam também o bairro colonos madeirenses, bem como oficiais da Força Aérea Portuguesa, devido à proximidade ao antigo aeroporto Craveiro Lopes,  hoje internacional 4 de Fevereiro.

A circunscrição estava separada do Bairro Rebocho Vaz (hoje Cassequel) pela avenida Dom Moíses Alves de Pinho, e do Bairro Américo Tomaz (hoje Kassenda) pela ex-Avenida Lisboa (hoje Revolução de Outubro). E lá existiam estabelecimentos comerciais e fabris de referência.Uma dessas referências era a fábrica de calçados Águia D´Ouro, cuja proprietária era a Dona Ofélia Carvalho. Hoje a fábrica está transformada num estabelecimento comercial denominado Caluk.

Os calçados produzidos na Águia D´Ouro eram posteriormente comercializados na conhecida Sapataria Águia D´Ouro, uma loja que se situava na zona do Largo Serpa Pinto, nas imediações do prédio da Oliva de Angola.    

Para além desta infra-estrutura (fábrica de sapatos), o Bairro Salazar contava também com o Supermercado OK, local onde hoje está instalado o supermercado Kero, na famosa rua 15.

De referências da circunscrição não é tudo. O bairro tinha ainda as oficinas da Friauto, uma estrutura que montava equipamentos de ar condicionado, geleiras e outros artefactos; e a Fábrica de Mobílias Empromóvel, entre outros empreendimentos.

Havia também no bairro Salazar, estamos a falar da época colonial, uma oficina auto para onde os taxistas, na sua maioria de raça branca, se deslocavam com regularidade  para proceder à revisão das suas viaturas. O empreendimento tinha como responsáveis os senhores Laranjeira e Campozana.

O restaurante Valongo, que ficava na esquina das ruas 13 e 19,era um ponto de encontro dos habitantes do bairro. Tinha um bar que servia “cerveja tirada” (fino) da boa, que era frequentado por gente fina, como era o caso do José Pinto da Costa, um senhor que não tem nada a ver com o do famoso caso “Apito Dourado”. No Valongo os utentes tinham sempre o prazer de se deliciar com uma boa corvina assada, chegada à mesa com salada e, de preferência, acompanhada com vinho tinto alentejano de treze graus. 

O restaurante Valongo também servia do bom  uísque, conhaque, gin, bagaço e outras bebidas espirituosas, a preços “descomunais”. Havia nesse estabelecimento um destacado empregado que chamava a atenção dos clientes. Tratava-se de Manuel Vaz, um algarvio que tinha um bigode raso quase invisível e uma postura que dava a impressão de estar no “estado de nervos”, sobretudo nas “viagens” da cozinha para a mesa. A Manuel Vaz tremiam-lhe as mãos ao pousar os pratos cheios e o vinho tinto à mesa do cliente.

Das memórias daquela época destaca-se ainda a Escola de Transmissões do Exército Colonial, que posteriormente, no pós-independência, passou a ser a Companhia de Transmissões Comandante Economia; havia ainda o quartel dos Adidos Militares Portugueses, que depois foi a Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares (UPIP) e  hoje está a ser construído, no mesmo lugar, o Centro Integrado de Segurança Pública do Ministério do Interior.

Na antiga Escola de Transmissões  do Exército Colonial foi, já nos dias de hoje, erguida a infra-estrutura denominada Cidade Desportiva do Clube Central das Forças Armadas Angolana, o “glorioso” 1º de Agosto.

 

Outras referências históricas

Outras referências históricas são os casos da Paróquia de São Francisco Xavier, na rua 12, próximo à mui famosa Farmácia Garcia, dos colégios Santa Teresinha, Bom Saber, Rainha Santa Isabel e da Tacabaria Detinha.

No que concerne à recreação e ao desporto, no tempo da “outra senhora” a circunscrição contava com um salão de festas pertencente ao Clube Recreativo do Bairro Salazar, uma formação desportiva que deu muitas alegrias ao bairro.

Constou-nos que foi através da iniciativa e esforços dos sócios do Clube  Recreativo do Bairro Salazar que se mandou construir a Paróquia de São Francisco Xavier, instituição pertencente à Igreja Católica. Antes as missas eram realizadas num barracão que ficava defronte à Fábrica de Mobílias Empromóvel, debaixo de um alpendre montado pelos fiéis, segundo conta Paulino Baiona, um ancião que vive no bairro há décadas.

Havia também na circunscrição o Banco PintoSotto Maior, um estabelecimento situado na rua onde hoje está a funcionar a direcção da Associação Nacional dos Deficientes de Angola (ANDA).

De memórias não é tudo. Na área onde posteriormente foi construído o Parque da Presidência da República e o Instituto Nacional de Estatística (INE) os colonos instalaram uma Feira Popular, para onde os garotos do bairro, e  não só, se deslocavam aos fins-de-semana.

Havia também, claro está, as figuras emblemáticas. Uma delas era o senhor João, um português de Aveiro que se instalou na circunscrição nos anos sessenta e que passava o dia a cuidar do seu rebanho de cabras, levando os animais a pastar por todos os lugares onde havia capim.

Bairro segregado

A  circunscrição era um vilarejo onde, sobretudo à noite, os autóctones não tinham acesso. Vieira Kaluanga, antigo morador que testemunhou os factos ocorridos na década de setenta, diz que não era permitido à rapaziada negra deambular pelo bairro. Se o fizessem eram considerados vadios.

“Os negros eram proibidos de andar pelo bairro, a não ser acompanhados por pessoas da sua raça que trabalhavam nas residências dos colonos. Eram os chamados criados e que já estavam bem identificados.A Polícia de Segurança Pública estava sempre alerta para prender os ‘vadios’”, diz Vieira Kaluanga.

“Para alcançar o bairro Rebocho Vaz, hoje Kassequel do Lourenço,  tínhamos que utilizar como ‘escudo’ os garotos que iam ‘biscatar’ nas residências dos colonos, porque eles eram os únicos que tinham acesso à livre circulação, sem nenhuma  perturbação da polícia portuguesa”, conta  Kaluanga.

Como se vê, nem tudo era um mar de rosas. Moradores menos escrupulosos faziam os mais inesperados, proibitivos e chorudos negócios, tais como a troca de moeda, que implicava câmbios altíssimos, a venda de ouro, hipotecas e outras negociatas, além da transação das lotarias premiadas.

As festas no nobre bairro Salazar, entre os privilegiados moradores, eram realizadas sem grandes constrangimentos. Os foliões, na sua maioria colonos e alguns de raça cigana, divertiam-se até altas horas da noite sem o incómodo da polícia que rondava por perto por causa das instalações do aeroporto Craveiro Lopes.

Das histórias do bairro Salazar não é tudo. Nos tempos de outrora os garotos, para saciar a fome, fisgavam os pombos dos vizinhos, mas perdiam  a esperança  depois de os  ver a esvoaçar em redor da Paróquia de São Francisco Xavier.

Arcanjo Jorge, um transmontano que se instalou no bairro nos anos sessenta, diz que vivia num primeiro andar  directamente oposto a um terreno vazio que proporcionava uma vista privilegiada do Quartel R20. Num contacto via online com o caderno Fim-de-Semana, disse que os seus pais eram funcionários públicos e que sempre gostou do tempo que esteve cá. “Eu era vizinho de um senhor de que não me recordo o nome, que tinha aquários, fazia criação de peixe que depois fornecia à instituição Aquário Tropical, na zona do Kinaxixi”.

 

Ocupação de  moradias

Em 1973/74, período que antecede a independência, algumas casas foram invadidas e vandalizadas  e outras compradas por cidadãos nacionais que tinham boa relação com os proprietários portugueses.

António de Carvalho, residente no bairro há mais de 40 anos,  é um desses elementos. Diz ter comprado a sua residência ao colono proprietário no valor de vinte mil escudos. “Como já havia uma certa agitação devido aos movimentos revolucionários, os brancos estavam a ir embora. Entendi negociar o imóvel e tudo deu certo. Tenho toda a documentação que comprova tal facto”, diz peremptoriamente, deixar margem a dúvidas. O seu caso não foi isolado. Revela António de Carvalho que alguns cidadãos  nacionais foram cautelosos,  enquanto outros invadiram as casas, resultando alguns casos em mortes.

Carvalho disse ainda que os invasores, na sua maioria, eram provenientes dos musseques Prenda, Cassenda, Cassequel e Calemba, muitos deles imbuídos já do sentimento revolucionário. “As casas ocupadas compulsivamente eram dos colonos, que na sua maioria eram fascistas e tinham uma relação com a UNITA.  Na ocupação das casas foi encontrada muita propaganda deste movimento de libertação”.

O luso angolano Mateus Andrade, antigo morador do bairro, estudante da Escola Industrial nos anos sessenta, foi um dos militares  destacado no agrupamento de engenharia  de Angola. Diz que o bairro sofreu grandes transformações no período pós-independência.

Sportinguista ferrenho e espectador atento do telejornal da RPT-África, Mateus Andrade disse guardar boas recordações do tempo em que esteve na guerra na região de Milunga (ex-Carmona), hoje província do Uíge. Andrade, que nasceu na cidade de Vila Real de Trás-os-Montes, revelou que “no período da guerra,  a milhares de quilómetros  de casa,  as recordações mediam-se em sorrisos.  Quando o correio não chegava, o que era frequente, os rostos ficavam carregados, o ânimo caía a pique e as pessoas mudavam”.

Pós-Independência

Com a proclamação da Independência e o consequente nascimento da República Popular de Angola, o  Governo decidiu homenagear os heróis tombados na Batalha de Kifangondo, passando o antigo Bairro Salazar a chamar-se Mártires do Kifangondo.

A partir dos anos ‘90, cidadãos de outros países começaram a fazer visitas a Angola com muita frequência. Com o alcance da paz, e antes mesmo disso, muitos cidadãos estrangeiros acabaram por se estabelecer em Angola. Alguns de forma legal e outros de modo ilegal. Muitos deles fugiam dos seus países por razões de guerra ou económicas. Assim se pode compreender o elevado número de estrangeiros em Angola, sobretudo do Centro, Este e Oeste de África. 

E nesse aspecto o Mártires de Kifangondo era um microcosmo. O bairro passou a ser um destino privilegiado, dado que lá podiam fazer pequenos negócios, tanto lícitos como ilícitos.E havia também o grande chamariz que era a proximidade ao aeroporto 4 de Fevereiro.  

A Monique era uma casa nocturna frequentada por jovens, na sua maioria provenientes da RDC. Por lá passaram conceituados músicos daquele país, como foram os casos do General de Fao, Koffi Olomide, Papa Wemba, Pepe Kale e tantos outros. O local também era conhecido por ser um antro de prostituição e de outros negócios escuros. 

Um dos negócios que se faziam no bairro era o de compra e venda de diamantes, tanto é assim que alguns moradores proeminentes foram pronunciados no famigerado Processo 105. É o caso da Dona Candondinha, que marcou muito o bairro também por um aspecto trágico: a morte de uma das suas filhas num acidente de carro à saída da Ilha de Luanda, quando vinha de uma festa, abalou completamente os moradores do Mártires de Kifangondo, muitos dos quais ainda hoje se lembram bem do episódio.

Esse é o retrato incompleto de um bairro que passou a ser uma alternativa “natural” à banca, apesar do preço especulativo em que se transacionava a moeda. O negócio da venda de divisas abrandou nos últimos meses, depois do bairro ter sido “sacudido”por uma mega operação por parte dos Serviços de Investigação Criminal.

Dados do Censo Populacional e da Habitação, realizado em 2014, indicam que o bairro tem 15 mil 400 habitantes e duas mil e 700 habitações, num total de cerca de quatro mil agregados familiares. O estudo refere ainda existirem habitações que albergam mais de quatro famílias.

O actual bairro Mártires de Kifangondo, onde se chegou a registar a existência de 15 denominações religiosas e uma mesquita,  é  constituído  por vinte ruas, sete travessas, e quatro becos. No domínio da  educação existem três escolas públicas do ensino de base, uma comparticipada e dois colégios.

 

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