Sociedade

Bairro do Rangel um dos viveiros da luta de libertação nacional

Considerado como um dos viveiros da luta de libertação nacional, por ter acolhido, em 1974, a primeira delegação oficial do MPLA, após a sua chegada a Luanda, e que, posteriormente, procedeu a inauguração da sua sede, cujas instalações foram cedidas pela senhora Dona Amália, que era proprietária de armazéns na área, o bairro do Rangel foi também naquela época um dos guardiões da luta anti-colonial.

24/02/2019  Última atualização 16H01

A circunscrição que surgiu nos anos 1930 do século XX, o seu nome está associado à Marica Rangel, uma matriarca da conceituada família Rangel que herdou o espaço dos seus ancestrais.
O bairro do Rangel, segundo relatos de antigos moradores, era naquela época um terreno abandonado onde havia algumas lavras, pedaços de terra não cultivados e um cemitério no meio do bairro (zona da Joaquina).
Esse espaço que se denominou Rangel foi no entanto ao longo dos anos reivindicado pela matriarca da família que se chamava Dona Marica Rangel.
Na década dos anos cinquenta, Marica Rangel, considerada como herdeira do terreno, cobrava mensalmente aos seus habitantes uma espécie de imposto devido a ocupação e a construção no local de casas na sua maioria de pau a pique.
Na altura, os montantes cobrados mensalmente pela herdeira eram muito insignificantes, razão pela qual os seus familiares não estavam de acordo com tais práticas de tributação.
Zito Rangel, um dos filhos da dona Marica Rangel, também não quis saber da cobrança desses impostos e foi assim que nos anos 1950 deixou de se proceder tais cobranças, uma tributação que transitou posteriormente para a tutela da administração colonial.
Na década dos anos 60, a administração colonial procedeu a urbanização, requalificação do bairro, mas para tal, antes, construiu algumas residências para realojar as pessoas que tinham construídas no enfiamento das ruas.
No entanto, foi nessa altura, que surgiram os processos de realojamento das populações que viviam em zonas de risco. Nesse processo de realojamento, no âmbito de um projecto social do Governo português, foram construídas habitações para receber também populações que viviam em alguns musseques existentes na zona urbana de Luanda.
Beneficiaram desse processo de realojamento as populações do Prenda e Bairro Indígena (zona da Cacimba), que foram instaladas em residências “condignas”, no âmbito do projecto “Um Lar Para Cada Família”, promovido pela Comissão Administrativa do Fundo dos Bairros Populares de Angola. Elementos fornecidos pelo Censo de Setembro de 1964 indicavam que o Rangel naquela época possuía trinta e cinco mil e 848 habitantes.
Reza a historia que as primeiras casas do Rangel foram construidas na sua maioria com o material de pau a pique e madeira. Estas últimas pertenciam as populações que já eram assimiladas. O bairro naquela epoca já tinha ruas com caracteristicas de urbanização.
A Comissão do Rangel surgiu nos anos 60, porque antes deste período era um autentico matagal. As casas foram erguidas quando o colono entendeu dar melhores condições de vida aos negros assimilados e não só, e então foram construídos essas casas que também foram habitadas por famílias de raça branca.
No tempo colonial havia no bairro um senhor chamado Santos Quipeixe que funcionava na Câmara Municipal e que tinha a missão de verificar quem é que deitasse água suja na rua e quem guardava o lixo doméstico em sua casa. Esse era no entanto o grande controlador.
As áreas e rua do bairro realojamento do Rangel, como era designada a circunscrição tinham o nome dos comerciantes que lá viviam. Como por exemplo: bairros Joaquina, Augusta, Bexiga, Augusto Saraiva, Massanga Ngombo e tantos outros.
As ruas tinham várias denominações como da Dona Amália, da Vaidade, Sangue Fúria, Abel Saraiva, João Ilheu, do Povo, do Diamantino, da Abrigada, Emídio Navarro e do Pica Pau, esta ultima que albergava o famoso restaurante do bairro com o mesmo nome.
Pedro Marcolino da Silva, conhecido por “Mukuaxi”, 70 anos, é um dos moradores antigos da circunscrição. O ancião diz que na rua denominada Sangue Fúria no tempo colonial havia uma Serração onde os moradores compravam o material para a construção da suas moradias.
Além dessa serração, cujo o nome lhe foge da memoria devido a sua avançada idade, havia, segundo ele, uma loja do comerciante português senhor Bexiga, que comercializava paus, bordões, chapas e outros materiais de construção.
O ancião conta que antigamente no local onde fora construído a loja do comerciante Bexiga, era o campo de futebol dos brasileiros. No período pós independência a loja do comerciante Bexiga foi transformado em Comité Njinga, uma instituição ligada ao partido MPLA.
Cota Mukuaxi que é proprietário de um estabelecimento comercial, junto antiga Casa Lusitano, diz que o Rangel do antigamente não se compara com o de hoje, apontado o seu dedo tremulo em direcção ao antigo hospital do São Paulo, hoje Américo Boavida.
“ Nos anos 50 a partir desse ponto onde nós nos encontramos, (Bar Cutato) era possível ver o quintal do hospital do São Paulo (Américo Boavida) um local onde nós íamos jogar a bola, erguer os nossos papagaios e caçar alguns pássaros”, conta o velho Mukuaxi.
No tempo colonial nem tudo foi um mar de rosas para os cidadãos autóctones que viviam naquela circunscrição, tudo por causa da arrogância e maus tratos do branco. Há relatos de que haviam brancos que eram maus e outros que eram muito humildes e humanos que defendiam a paz e tranquilidade.
“É bom que se diga isso. Nós que vivemos no Rangel temos que admitir que nem todo o branco que viveu no bairro era mau. Havia brancos que até escondiam vizinhos nos seus quintais e lojas para que os agentes da PIDE não os apanhassem. Esses brancos correram riscos porque a PIDE estava também a andar atrás dos brancos que eram pró independência”, disse António Venâncio, um dos antigos moradores.
O nosso interlocutor disse mais adiante que havia comerciantes que jogavam com paus de dois bicos, para não serem conotados com os chamado terrorista enquanto que outros eram informadores da PIDE.
Outros comerciantes que estavam com as massas arranjavam sempre maneiras para distrair os agentes da PIDE. “As vezes distraia-os com informações falsas como por exemplo: Olha o Joaquim Afonso acolheu em sua casa dois elementos que suponho serem terroristas”.
Os comerciantes lusos que estavam com a população quando ouvissem que a PIDE iria fazer rusgas no bairro esses por sua vez avisavam as populações indefesas para terem cuidado e fugir para locais seguros para não serem apanhados de surpresa.
No tempo colonial, as rusgas eram tão intensas e muito humilhantes. O pessoal era levado para o pátio que ficava no antigo hospital São Paulo onde eram revistados minuciosamente nos bolsos, conta António Venâncio.

Santos Muchicheiro
No tempo colonial o Rangel contava com vários comerciantes portugueses que nele se instalaram. Destes, de acordo com o Cota Muakuaxi se destacam o Soeiro, Abel Saraiva, Victor, Castro, Nogueira, Arnaldo, Fernandes, Manuel António, Santos Muchicheiro, Chico Laranjeiras, Joaquim, Teixeira e tantos outro, que não vêm á memoria do nosso entrevistado devido amnésia de que padece.
Este último comerciante luso (Santos Muchicheiro), disse Mukuaxi, foi que em 1961 matou a tiro um dos seus colegas de escola no São Domingos. “ Esse comerciante vivia na rua dos estudantes e aproveitando-se dos acontecimentos que se viviam naquela época, 1961, fez alguns disparos que atingiram o nosso colega. Era uma fase de mata o preto”, diz Cota Mukuaxi.
O comerciante Alberto Saraiva também foi um dos carrascos das populações da circunscrição. “Foi ele que em 1961 subia no tecto do seu estabelecimento comercial e empunhando uma arma do tipo caçadeira disparava indiscriminada contra os negros. Dos disparos recordo ter morto o nosso amigo Jacinto”, disse Mukuaxi.
Para além do Saraiva, havia também no bairro o João Ilhéu que morava na rua Sangue Fúria considerado no tempo colonial de comerciante agressivo. “ Vários relatos de moradores diziam que na sua residência ele tinha construído no seu quintal um anexo dentro de uma frondosa mulembeira, onde praticava os homicídios de jovens inocentes que viviam na circunscrição”.
Em relação a agressividade no bairro não é tudo: No Rangel residiu também o comerciante luso Marcolino Zundo que funcionava nos Caminhos de Ferro e que possuía uma motorizada de marca BSA.
Esse comerciante era tão agressivo que numa das desavenças que teve com o pai do Simoni, deu uma grande galheta sem motivos aparente ao velho que este distraidamente caiu ajoelhado.
O lesado estatelado no chão, olhou para o comerciante e num tom vingativo disse ao seu carrasco no seu dialecto em kinbundo . “Ondo mone”, que em português significa vais ver só depois o que vai te acontecer.
Reza a historia que o velho que era kimbandeiro quatro dias depois o braço do comerciante Marcolino Zundo inflamou, e o homem não conseguia conter as fortes dores provenientes do braço inflamado.
No entanto, dias depois, vários amigos do comerciante também de raça branca aconselharam Marcolino Zundo a ir pedir desculpas ao ofendido que ele tinha desferido tal bofetada para que o braço voltasse a normalidade.
Além de Marcolino Zundo no bairro havia também comerciantes de tratos fácil. Estamos a falar do Xaxado, um comerciante em quem os convívios dos Kotonocas eram realizados em frente a sua residência na área do México, nos edifícios do Caminhos de Ferro, zona que faz fronteira com o bairro da Precol.
Havia também na circunscrição a Casa Lusitana Comercial, propriedade de um comerciante português que vendia artigos domésticos, e que no período pós independência deixou as instalações com a família Mascarenha do planalto central.
Cota Mukauxi revelou que foi nos armazéns deste estabelecimento comercial onde começou o Bar Cutato. Para além da Casa Lusitana havia também o comerciante Maya que comercializava na circunscrição material de construção civil.
A Dona Amália era, no entanto, uma comerciante diferente dos outros, porque comercializava vários produtos como frutas, legumes e tantas outras. Portanto era uma mulher muito dinâmica, visionaria e que conduzia o seu próprio camião.

Casos insólitos
No tempo colonial, a partir dos anos 1955, os jovens do Rangel cruzaram com um conjunto de episódios ou cenas, muitas delas bastantes interessantes do ponto de vista do bairro.
Naquele período, diz António Venâncio, antigo morador que viveu a época do Fernando Mayombola, Chico Noventa, Jaques Cobardia, Sangue Azul, Manlele Kina e Sebas, um conjunto de jovem se ocupava de coisas menos boas.
“ Eles não trabalhavam, ficavam o tempo todo a procura de oportunidades quer no bairro como na baixa da cidade. As oportunidades eram assaltos a carteiras das senhoras, pular quintais, assaltar lojas e depois dessas acções se reuniam no bairro para dividir os espólios que, às vezes, lutavam entre si , porque a divisão não era bem feita”, recorda António Venâncio.
Durante as pelejas da distribuição dos espólios se destacavam o Jaques da Cobardia, Chico Noventa e Fernando Maiombola, estes últimos eram irmãos e frequentavam com regularidade a casa da sua tia que morava no bairro Joaquina.
António Venâncio, recorda que Chico Noventa era um homem forte e musculosos embora o Fernando Maimbola tivesse mais agilidade nas quedas. “O Fernando Maiombola era o que tinha mais fama em termos de queda porque ele até tinha uma táctica que muita gente tentava imitar e não conseguia e que chamavam de queda a Maiombola”.
Por sua vez, Chico Noventa não era habilidoso mas tinha agressividade, era rude, e tinha uma voz roca que quando falasse estremecia tudo que tivesse ao lado. Eles eram pessoas que os adolescentes no tempo colonial admiravam bastante.

Salões de festas
Havia, no Rangel, salões de festas como Sporting do Rangel, do Juvenil, dos Negritas, das Lavadeiras, dos irmãos Hondas, na rua do povo, o Faria, Maxinde, Ginásio, Recreativo de São Paulo. Havia ainda os salões de festas na rua do povo como a Boate Goma, Salão do Chek, e, na área do Diamantino, os Sengulas.
O bairro do Rangel viu também nascer grandes músicos como o Urbano de Castro, Luís Visconde, Óscar Neves, Elias dia Kimuezo, Lex Alberto, Toni dia Kimuezo, Minguito, Artur Adriano, Mamukueno, e tantos outros.
Para além destes atractivos aos sábados a tarde, os jovens do bairro tinham como divertimento as sessões musicais dos kutonocas, que se realizavam nas áreas adjacentes ao Centro Recreativo Kilamba, num espaço em frente ao antigo Hospital do São Paulo e no bairro Indígena.
As sessões do cinema volante eram exibidos às segundas e às sexta feiras nos locais onde se realizavam os kutonocas e incluíam as zonas das Bs e num largo que faz fronteira ao bairro da Precol.
Em relação a trumunos a circunscrição contava com o clube os Técnicos Futebol Clube do Rangel. Esta emblemática formação desportiva tinha sido dinamizada pelo Matreira, Adriano, Manico, João Pereira, Mendinho e outros jovens habilidosos.
Mais tarde surgiram pequenos clubes do bairro que disputavam entre si, como os do bairro Augusta, Bexiga, Joaquina e outros locais que rodeavam os comerciantes portugueses. Cada rua tinha um clube desportivo. Nessas equipes despontaram vários craques da bola como foi os casos do Canvunje, Lito, Chico Negrita e tantas outras estrelas de futebol inter bairro daquela época.
Ao sábado a tarde os trumunos eram uma constante alí no campo dos brasileiros. Num dos grandes trumunos no campo dos brasileiros um portentoso remate de Peliganga, entrou na baliza adversaria e abriu uma das janelas de uma das casas.
Nessa contenda, se registou também um caso caricato: O tio Chico, que era considerado um dos influentes árbitros do bairro tinha sido agredido por ter validado um golo de fora de jogo.
Naquela altura apanhou uma grande “berrida” (corrida), de aproximadamente duzentos metros em direcção a sua casa onde foi buscar para sua defesa um formão. “Gatuno, árbitro batoteiro eram as vozes discordantes que se ouviam”, durante a corrida.
Figuras lendárias
Cota Ximbinha, era um homem gigante e que tinha uma musculatura descomunal e que o seu soco podia derrubar uma janela de madeira, enquanto que o cota Bari Isidro era um individuo muito planista que já tinha fama de médico, enquanto era um simples enfermeiro.
Bari Isildo que já lizava os cabelos naquele tempo gabava-se de ser médico pelo facto de ter curado uma ferida crónica de uma modesta senhora, uma acção que conceituados médicos desconseguiram.
Quando se tratasse de arranjos de calçados no Rangel, a referência era o cota Salvador que trabalhava na Câmara Municipal como um dos grandes sapateiros da banda. Havia também o velho Mbemba que era proprietário de um prostíbulo no meio do bairro e que ganhou fama por causa das meninas de programa.
De figuras lendária não é tudo. Havia o tio “Zé 120 é ciumento”. Um individuo que era muito ciumento e que não deixava as filhas, sobrinhas andar pelas ruas. O senhor morava ao lado da casa da tia Maria Ritinha, uma senhora que fazia deliciosos doces de ginguba e que atraia naquela época a garotada que residia no bairro.
O Sabata, que também morou no bairro, foi uma figura incontornável do Rangel. Não se pode falar do bairro sem mencionar essa figura, por causa da sua rudeza no trato das pessoas que ele considerava inimigas.
Sabata foi um individuo bastante rude e chegou mesmo até a protagonizar coisas horripilantes de crimes gratuitos que afectaram e mancharam muito a imagem do MPLA. Ele aproveitava o nome do partido para abusivamente cometer os seus crimes.
Para além dessas acções reprováveis, Sabata foi uma figura mediática que influenciou até sobre maneira o processo da independência, nos últimos dois ou três anos. Ele ainda foi uma pessoa muito falada e influente nas decisões.
No Rangel havia também o Passarão um homem de raça branca e que depois foi morar no Cazenga. Essa personalidade era mais branda e estava ao lado das massas no bairro, para acudir as pessoas indefesas dos comerciantes.
O Zé da Minga e o Simonal eram indivíduos que estavam mancomunados com o crime. Tanto mais que algumas das suas acções eram contra os brancos mas outras acções eram contra pessoas indefesas. Foi uma época que eles jogaram um papel negativo de criminalidade.
O Zé da Minga foi o bandido que os portugueses deram uma oferta para a sua captura. Eles queriam apanhar o Zé vivo porque souberam que ele estava envolvido com grupos “terroristas” que tinham planos de semear o terror no seio dos comerciantes lusos que moravam no bairro.
Luís Cafrique, era um indivíduos que também se diferenciava ao Sabata. Ele foi um homem ligado a luta contra as injustiças sobre as populações, mas embora tivesse participado em actos menos correctos, esse cidadão acabou por ser uma pedra no sapato dos portugueses. Havia relatos que ele tinha um cafrique que quando lutava com os seus adversários esses poderiam mesmo morrer asfixiado. Desse seu jeito peculiar, uma das vezes, um cão polícia, de um comerciante, que foi contra ele, teve a morte imediata por causa do seu cafrique.
O dono do cão, um comerciante luso, assim que viu o seu animal estatelado no chão, tirou a sua caçadeira e disparou mortalmente contra Luís Cafrique. Foi uma morte horrível.

Macaco Cão: o Polícia destímido

No tempo colonial o bairro contava com um polícia muito destemido. Tratava-se de Macaco Cão, um algarvio que estremecia com os jovens considerados de malfeitores naquela época. “ As pessoas tinham medo da sua autoridade . Era um homem sem medo. De tal ordem que punha de pé muitos bandidos”.
Um dia aconteceu um caso muito caricato: Ele conseguiu travar num dos becos de Sangue Fúria mais de quinze pessoas e sozinho e começou a pedir identificação dos mesmos, fazia passar um por um no momento que os identificava. Quem entrasse pelo beco não tinha como recuar e ai ele aproveitava a oportunidade”, diz António Venâncio.
Para além de Macaco Cão, a circunscrição contava também com outros policiais como foi o caso dos Arara Kuara e Espera Jipes, que maltratavam os jovens durante as rusgas e operações de rotina que realizavam no bairro.
O Rangel tinha também, naquela época, um bufo muito temido na área e que se chamava Pina. Depois da independência nacional este fugiu do país com medo de sofrer retaliação por parte das populações. Alguns populares que sofreram dos seus actos disseram que foi ele quem denunciou os nacionalistas do 4 de Fevereiro, durante uma reunião nas instalações da Dona Amália.

 

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