“Maria Joana da Piedade é uma mulher que não olha para trás quando o problema é prestar serviço de enfermagem aos moradores da Cabala, uma comuna do distrito urbano de Catete, município de Icolo e Bengo, muito distante da sua área de residência.
Ela não reage exactamente como as ondas do oceano que banha as suas costas: Luanda é uma cidade que baloiça a toda hora, nunca ocupa um perímetro inamovível, oscila com as suas gentes, move-se com a cadência dos objectos que ela vê passar, obedece ao ritmo e à velocidade dos carros que galgam as suas estradas, ruas e avenidas. Mas, algum dia, deverá ser pensada como uma urbe que sirva melhor as necessidades dos seus moradores e visitantes.
Para quem vive em Luanda e nos seus arredores, indo de um sítio a outro com frequência, obrigado a suportar os engarrafamentos de manhã e de tarde, sabe que vivemos numa cidade ambulante. Nas horas de maior trânsito automóvel, centenas de pessoas vêm todos os dias às estradas, às ruas e às avenidas vender um pouco de tudo.
Sacos com castanhas de caju ou com paracuca, roupas de crianças, jornais, cartões de saldo para telefones, cadernos, fraldas, carregadores para telemóvel, água fresca, sheltox da marca killer, correntes para os cães, relógios e doce de coco, entre outros, são os principais produtos da cidade dos objectos.
Com tanta elasticidade quanto descontrolo, a cidade de Luanda varia ao ritmo dos subúrbios, com os seus becos e a sua arquitectura vernacular em pau-a-pique, madeira e tecto de zinco, precária e desordenada, à beira da decadência. Do centro histórico e colonial ainda há reminiscências, mas também vamos perdendo as casas que ruem e desaparecem da paisagem, das construções como memória cultural de uma época: a coincidir com os últimos dezassete anos de paz, tudo mudou completamente, a cidade betão irrompeu nas nossas vidas.
Da reinvenção pós-colonial e pós-modernas dos últimos anos vemos os prédios que crescem dando outra identidade à cidade, com os seus fluxos de pessoas que vêm e vão por largas temporadas ou aquelas que, estando nela, vivem uns tempos numa zona e depois noutra: procurar viver numa casa confortável é uma necessidade que mais da metade da sua população não consegue ainda satisfazer, retendo dentre os seus desejos nos da cidade sonhada
Nos últimos anos, a metamorfose da cidade acompanha os bairros que surgem do fluxo de pessoas que ocupam uma área determinada e nela tentar sobreviver como podem e, também, segue as centralidades que, longe do centro, com as suas avenidas e ruas arborizadas com acácias, eucaliptos e sentinelas, entre outras espécies, os seus jardins relativamente bem cuidados oferecem outra qualidade de vida aos seus moradores, mesmo que eles só a possam desfrutar aos fins-de-semana, nos dias feriados ou quando estão de férias. Este é o dilema de quem vive na cidade distante.
Com o centro numa única Mutamba, já houve um tempo que Luanda era uma cidade dura e, talvez, em muitos sentidos ainda continua a sê-lo. As fronteiras entre o centro e as periferias obedeciam à estrutura e à estratificação sociocultural, política e económica das suas populações e havia poucas dúvidas acerca da diferença entre os moradores dos musseques e subúrbios e os moradores dos bairros. Havia, então, a periferia da cidade com os seus musseques e a cidade do asfalto com os seus bairros mais ou menos nobres.
As distâncias eram mais curtas, andava-se e continua a andar-se muito a pé, mas os que tinham carros e/ou motorizadas não só chegavam mais rápido aos sítios como, muitas vezes, podiam dar-se ao luxo de sair da periferia para ir ao centro trabalhar e depois voltar e almoçar em casa, coisa que hoje é quase impensável.
A cidade ambulante coincide com a cidade dos objectos. A cidade de betão coincide, paradoxalmente, tanto com a cidade decadente como com a cidade esplendorosa. A cidade dos desejos é a mesma que a cidade sonhada. A cidade distante coincide com a cidade impensável: há coisas que os que lá vivem não podem fazer ou seria muito incómodo que o fizessem, porque vivem distante. A cidade de quem anda a pé ou de candongueiro não é a mesma que a cidade dos carros ou a dos autocarros: todas elas têm diferentes velocidades, cada uma tem os seus problemas, a lógica, os seus inconvenientes. O único que têm em comum todas as cidades que coexistem na cidade de Luanda é a areia sobre a qual elas vivem e sobrevivem e nós reagimos de forma diferente.
* Historiador e crítico de arte
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