Reportagem

A história da ascensão de um jovem empresário

Segundo filho de nove irmãos, Francisco Silva nunca pensou ser empresário. O seu grande sonho era comprar uma casa para a mãe. Hoje, tem empresas, com destaque para a Jefran (acrónimo de Jesus e Francisco), a clínica Anjos da Guarda e mais de 50 condomínios que muita gente não acredita lhe pertencerem.

27/04/2019  Última atualização 10H29
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Já foi conotado como “testa de ferro” de altas figuras do país (com algumas lhe foi atribuído, inclusive, parentesco). Nega ter ligações com esses personagens e diz ser vítima de preconceito, por ser “jovem e negro”. “Não acreditam que um jovem, que um dia era escravo, possa ser rei no meio de príncipes. Este é o meu caso”, sublinha.
A sua história de vida começa em Malanje, onde nasceu em 1978. No início dos anos 1990, devido à guerra, os pais decidem deixar a terra natal e fixam-se no bairro Prenda, em Luanda. Apesar do conflito armado, a mãe deslocava-se quase sempre à terra da Palanca Negra Gigante, para comprar produtos do campo e revendê-los em Luanda e assim sustentar a família.
“No Prenda, vivíamos no décimo andar do lote 7. Depois, o meu pai construiu uma pequena casa junto ao Centro Recreativo Bela Vista, por detrás do Instituto Médio Simione Mucune. Mais tarde, a minha mãe tornou-se peixeira”, recorda.
Então com sete ou oito anos, Francisco começa a ajudar a mãe na venda de peixe. O pai, por seu lado, ganhava pouco com o trabalho de carpintaria. Por isso, a família viveu imensas dificuldades.
O ensino primário fez na chamada escola Branca e no posto 15, ambas no Prenda. O secundário foi na Ngola Kanini, com passagem pelo Ngola Kilwanje. Quando terminou o secundário, pretendia ingressar no Instituto Médio de Economia de Luanda (IMEL), mas as dificuldades da vida fizeram-no desistir.
“Tinha de ajudar a minha mãe no mercado, porque não tínhamos grandes condições de vida”, justifica.
Aos 12 anos, começa a vender bolos feitos por si. Além disso, foi “roboteiro” e ajudou a construir muitas casas anárquicas que surgiram no bairro. O objectivo, reforça, era ajudar a mãe. Um dos momentos mais críticos, recorda, foi quando a mãe adoeceu.
No hospital, depois de feito o diagnóstico, o médico disse-lhe que era urgente ela fazer a medicação receitada, caso contrário, morreria.
Sozinho, sem a irmã mais velha, que tinha ido às Lundas fazer negócio e por lá ficou vários anos, sendo dada como morta, Francisco decidiu fazer alguma coisa para comprar os medicamentos para a mãe.
“Naquela altura, éramos apenas três irmãos: eu, a minha irmã mais velha e o recém-nascido”, esclarece.
A solução foi vender água fresca no mercado do Banga Sumo, no bairro Prenda. Desta forma, conseguiu o dinheiro para comprar a medicação da mãe. A partir daquele momento, Francisco Silva diz ter chegado à conclusão de que não dependia de ninguém para sobreviver. Só de si mesmo. Daí para frente, não mais parou. “A partir daí, sustentei a casa, enquanto a minha mãe esteve doente. Depois, ela ficou boa e retomou o seu negócio de quitandeira”, disse.

A vida por um fio

Determinado a continuar a fazer pequenos negócios para sobreviver, começa a comprar fardo para revender na província do Huambo, onde foi enganado depois de ter sido envolvido num negócio de diamantes. Apesar disso, no regresso a Luanda, trazia frutas para vender. “Foi uma aventura; não sabia o que era diamante”, reconhece.
Apesar de ter sido burlado, Francisco Silva regressa ao Planalto Central. Já no Huambo, decide ir ao Cuito, no Bié. Nessa viagem, por pouco não perdeu a vida. Recorda que, para chegar ao Bié, pediu boleia ao motorista de uma carrinha que ia ao Cuito levar tijolos. Na cabine, iam, além do motorista, o ajudante e mais uma senhora. Francisco ia atrás no meio dos tijolos.
A viagem para o Bié corria tranquilamente, quando foram interceptados por um grupo armado. Para não chamar a atenção, conta, o grupo desviou a carrinha para o matagal e, depois de breve conversa com os ocupantes da cabine, matou a sangue frio o motorista, feriu a perna do ajudante e tentou violar sexualmente a senhora.
“Assisti a tudo. Estava na carroçaria e o grupo não deu pela minha presença. Não sei, mas, naquela hora, os outros ocupantes da viatura esqueceram-se de mim”. Explica que ficou em estado de choque. Só levantou a cabeça quando, mais tarde, apareceram os capacetes azuis da Missão de Paz das Nações Unidas, que retiraram a viatura do matagal.
“Daí apanhei uma outra coluna que me levou até ao Cuito, onde cheguei doente. Foi um momento emocionante da minha vida”, sublinha.
Traumatizado, Francisco Silva volta a Luanda. Aqui, junta-se a um amigo pedreiro e a uma senhora, já falecida, e criam a empresa de construção civil Dizima Perfil. Segundo ele, o amigo era bom técnico, mas não tinha visão de negócio. “Eu, na altura, junto-me a ele para arranjar clientes. Eu virei ajudante dele”, diz.
Para conseguir clientes, Francisco pegava em folhas A4, cortava ao meio e escrevia: “Faz-se aplicação de mosaico e pintura”. Com esses anúncios em mão, ia de casa em casa e deixava por baixo das portas, para os moradores.
“Antigamente, não havia telemóveis. Depois de deixar os anúncios, voltava para saber se precisavam de algum trabalho”, lembra. Numa das casas, conta, encontrou uma senhora que precisava fazer obras numa campa no cemitério da Sant´Ana.
Durante quatro anos, trabalhou nos cemitérios da Sant´Ana e do Alto das Cruzes, só a construir campas. “A mesma senhora contratou a nossa empresa para remodelar a sua vivenda. Surgiram depois alguns trabalhos de construção civil, mas eram coisas pequenas”, refere.
Sempre a pensar em grande, Francisco Silva propõe aos sócios a aposta na construção de casas de madeira na ilha do Mussulo. Sem dinheiro para fazer anúncios, arranja uma fotografia de casas de madeira no Brasil, de autoria de Jorge da Costa, e foi ter com o director de um semanário privado, para fazer anúncio nesse jornal.
“Ele perguntou-me como ia pagar o anúncio. Disse que não tinha dinheiro, mas, como pagamento, podia pintar as instalações do semanário. Ele aceitou”, recorda.
Três dias depois do anúncio ser publicado, Jorge da Costa contactou-o, reclamando a autoria da fotografia. “Disse que a foto era dele e questionou por que estava a fazer publicidade dela? Eu respondi que nunca disse que a foto era minha, mas que podia fazer a casa da foto. A partir daquele momento, ficámos amigos, até hoje”.
Encontrar clientes não foi fácil, devido, segundo ele, ao preconceito de que era vítima. Revela que houve quem recusasse que ele construisse a casa de madeira no Mussulo, pelo simples facto de “ser angolano, miúdo e negro”. Embora insatisfeito com a recusa, Francisco não desistiu. Conta que foi a uma instituição em Luanda, procurou um senhor branco e propôs-lhe um acordo.
“Disse que lhe pagava 200 dólares e comprava um fato completo se ele aceitasse ir comigo a uma reunião, onde devia fazer-se passar por meu patrão. Aceitou. Fomos à Samirana Comercial e comprámos um fato de 80 dólares”, descreveu.
Francisco, acompanhado do suposto patrão, procurou novamente a pessoa, que, ao vê-lo com um “branco todo barrigudo”, sem delongas, aceitou assinar o contrato e pagou numa única tranche o valor total da casa.
“Eram mais de 200 mil dólares. Pagou em dinheiro, sem conhecer o senhor branco. Mas só o facto de ele dizer que era o dono da empresa foi o suficiente para o homem lhe dar o dinheiro”, recorda.
Depois de conseguir o contrato, tal como combinado, Francisco Silva pagou os 200 dólares ao “patrão” de ocasião e colocou mãos à obra. Construiu a casa de madeira do senhor, cujo nome não quis revelar. “No dia da entrega da casa, o cliente perguntou pelo senhor branco. Respondi-lhe que era eu o patrão e não aquele a quem tinha dado o dinheiro”, revelou.
Pai de dois filhos, Francisco Silva lamenta que em Angola seja mais fácil o empresário estrangeiro falar com um governante do que um nacional. “Estamos diante de uma situação em que não acreditamos em nós mesmo”, considera.

...E nasceu a “Jesus e Francisco”

Depois da construção da primeira casa de madeira no Mussulo, Francisco começa a receber várias solicitações. Mas nem tudo foi um mar de rosas. Por exemplo, um dos clientes recusou-se a pagar a adenda do contrato, depois de a sua esposa ter feito várias alterações ao projecto inicial.
“Comecei a obra sem problemas. A esposa começou a alterar o projecto inicial. O dono da obra disse que não havia problemas. Quando chego para cobrar a adenda do contrato, pura e simplesmente, o senhor não aceitou e tivemos sérios problemas. A partir daquele dia, decidi não receber mais obras de ninguém”, disse.
Francisco Silva pensava em desistir, mas a mãe aconselhou-o a não fazer isso, pois devia sempre acreditar que, com Deus, tudo é possível.
“A minha mãe disse que era de Deus e andava com Deus. Trabalha com Jesus. Quando disse isso, surge a ideia de criar a Jefran, acrónimo de Jesus e Francisco. Então, eu trabalho com Jesus”, justifica.
Depois disso, compra um terreno de 20/30 na zona verde do Benfica, divide ao meio e faz duas casas. Também foi difícil vender as casas, outra vez por causa do preconceito. “As pessoas chegavam e perguntavam quem é você? quem é o dono destas casas?’ quem fez estas casas? Respondia 'sou eu'. Mas diziam não ser possível”, explica.
Conta que, num belo dia, chegou um senhor e adquiriu uma das casas. Desse dinheiro, comprou mais terrenos junto ao cemitério do Benfica e começou a construir casas para vender. Surge então a ideia de construir vilas baptizadas com nome de cidades bíblicas, como Judá, Jericó, Nínive, Siloé, Hebron, Israel, Nazaré, Belém, Canaã, Betel, Emaus, Jerusalém, Sinai, Jordão, Damasco, Roma, Jubileu, Patriota, entre outras. Além de Luanda, a Jefran está representada nas províncias de Cabinda, Huíla e Benguela.
Entre os clientes, estavam alguns funcionários do Banco Sol, que o aconselharam a dirigir-se a essa instituição financeira para solicitar um crédito bancário. “Foi o único banco do qual consegui um empréstimo para começar a trabalhar”, reconhece. Diz ter sentido na pele o que é ser empresário em Angola. Já tentou desistir várias vezes, mas a persistência e o grande apoio da mãe fazem com que continue no mercado.

Anjos da Guarda para vítimas de acidentes

A clínica Anjos da Guarda é, a par da Jefran, o negócio mais visível. O grupo possui outros, mas prefere não revelar. A ideia da criação da clínica surge depois de um dos seus funcionários ter sofrido acidente no trabalho. Preocupado com a vida da vítima, conta, ele mesmo o levou ao Hospital Geral de Luanda, para receber assistência médica.
“De tanto esperar, o funcionário morreu nos meus braços. Decidi, então, criar um local para prestar primeiros socorros aos meus trabalhadores. Comprei um contentor de 20 pés e coloquei uma enfermeira e uma ambulância. Mas, depois de criar estas condições, fiquei um ano sem ter um acidente de trabalho”, explica.
Depois disso, comprou uma pequena máquina de análises clínicas, para que os trabalhadores deixassem de faltar e usar a desculpa de levar os filhos doentes ao hospital. Assim, surgiu a ideia de criar a clínica Anjos da Guarda, que, além dos trabalhadores, também presta assistência médica gratuita à vizinhança e às vítimas de acidentes de viação na Via Expresso.
“Vi muitos acidentes de viação na Via Expresso. Até chegarem ao Hospital Geral de Luanda ou ao Josina Machel, os sinistrados morriam pelo caminho. Comecei, então, a ajudar as pessoas que tinham acidente na Via Expresso. Hoje, gasto 720 mil kwanzas todos os dias para socorrer vítimas de acidentes naquela via. Graças a Deus, já ninguém morre na Via Expresso por falta de assistência, como antigamente acontecia. Muitas famílias já foram salvas pela clínica Anjos da Guarda”, refere.
O seu maior desafio é resolver os problemas ligados à Jefran e apostar em outros segmentos de negócios. Apesar das dificuldades, recorda que o objectivo é “ser rei no meio de príncipes. Muitos jovens olham para mim e querem ter o que tenho, mas não querem fazer o que faço. Todos os dias, acordo antes de dormir e as pessoas não querem isso. Trabalho como escravo para um dia viver como rei”, reforça.

Obras embargadas e reclamação de clientes

Hoje, a Jefran possui mais de 50 condomínios e acima de cinco mil casas construídas. Em tempo de crise, diz ter sido o único empresário a vender casas a renda resolúvel. Mas esta decisão, confessa, trouxe-lhe muitos problemas. Garante que mais de 170 famílias não conseguem pagar a renda resolúvel.
“Tenho a certeza absoluta de que se começar a tirá-las, vou provocar outro problema social. Foi o maior erro que cometi”, considera.
Os problemas começaram a surgir de todos os lados. Teve uma obra embargada, porque o terreno que havia comprado e onde já estava a construir as habitações, já pagas, era, supostamente, de um general.
“Ele apresentou documentos legais da administração iguais aos meus. A administração tinha dois processos legais. Os meus eram mais antigos. O tribunal decidiu embargar a minha obra”, lamenta.
Como solução, diz, propôs aos clientes a devolução do dinheiro ou que aguardassem pela resolução do litígio. Uns, desgastados com a demora na resolução do conflito, aceitaram receber as casas inacabadas e concluíram as obras. “Outros não aceitaram a minha proposta. Este caso até hoje está por resolver, em tribunal”, explica.
Por via extrajudicial, disse ter tentado resolver o litígio com o general, mas este exigiu o pagamento de dois milhões de dólares pelo terreno. “Não aceitei”, afirma, acrescentando que não correspondem à verdade as denúncias de que terá entregue casas da Vila Jericó, já pagas pelos clientes, ao Ministério do Interior.
“Prova é que já há famílias a viver nesta vila, mas que não pertencem ao Ministério do Interior. São clientes com quem negociámos, já à luz da actualização da moeda”, esclarece.
“Portanto, a denúncia não corresponde à verdade. Nós recebemos dois oficiais da Polícia Nacional, que, a título individual, compraram casas num dos nossos projectos. Eles, por sua vez, convidaram um dos comandantes a conhecer as habitações e este gostou”. Conta que aqui começou o interesse na aquisição de habitações para efectivos da Corporação.“Depois de oito meses de negociações, conseguimos celebrar o contrato com o Ministério do Interior. Deste contrato, construímos novas habitações na vila Jericó, para a Polícia Nacional. Os primeiros clientes entenderam que se tratava das suas casas, mas não. Na vila Jericó, estamos a construir casas do Ministério do Interior e dos primeiros clientes que pagaram a renda resolúvel”, explicou.

Mais polémica

Entretanto, o empresário nega polémica com a cooperativa Ondjango Yetu, que solicitou um determinado número de casas para os seus associados. Francisco Silva garante que a Ondjango Yetu recebeu as primeiras casas, estando a aguardar pelas outras.
“Muitos dos seus filiados já receberam as casas. Hoje, faltam ser entregue apenas 20 ou 25 habitações”, garante.
Sobre os clientes que apresentaram reclamações ao INADEC, Francisco Silva explicou que, devido à desvalorização do Kwanza, tentou renegociar o contrato com eles. Uns aceitaram, outros não.
“Uma casa que custava 100 mil dólares, antes da crise, baixou para 20 mil. Era uma desvalorização de 80 por cento. Para construir uma casa, na altura, precisava de três milhões de kwanzas. Com a crise, precisava de 15 milhões. Não sou culpado desta crise”, defende-se, esperando que os clientes e as pessoas em geral não o condenem por isso. As dificuldades foram generalizadas, desde a inflação à escassez de cimento. Foram os piores momentos para a Construção Civil. Prova é que poucas empresas sobreviveram”.
Por outro lado, queixa-se da atitude dos bancos, que não disponibilizam os recursos financeiros à medida do cronograma da empresa. “Como consequência, a empresa vê-se obrigada a alterar constantemente a programação, o que abre incumprimentos consecutivos dos contratos”, explica.
O responsável lamenta ainda a postura do INADEC, da qual se diz injustiçado. “Um órgão do Estado, que conhece a realidade do país e da qual esperamos uma mediação equilibrada. Pelo contrário, o INADEC tem um discurso de anjo, mas uma atitude de demónio, fazendo com que muitos empresários encontrem dificuldades desnecessária ou até desistam do negócio. Os seus funcionários pessoalizam as coisas. Já recebi chamadas destes a exigir pagamentos para ser levantado o embargo. Recusei”, denuncia.
“Eles embargaram uma empresa como se fosse uma cantina com produto expirado. Embargaram-nos durante oito meses, mas, mesmo assim, pretendiam que resolvêssemos os problemas dos clientes. Não tiveram em conta a existência de outros clientes com contratos em vigor, que acabaram prejudicados, sem falar já dos transtornos para os trabalhadores e famílias”.
A Jefran, segundo o seu mais alto responsável, chegou a ter 1.520 trabalhadores. Hoje conta apenas 200, o que lamenta.
“Não entendo que políticas o Estado tem para o empresariado, que tem responsabilidades na criação de empregos. Uma empresa como a nossa, neste momento difícil, nunca recebeu o apoio ou a visita de um membro do Governo para se inteirar das nossas necessidades. Apenas recebemos pré-julgamentos e incompreensões”, desabafou.

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