Cultura

“Está em mim a diversidade africana”

A artista camaronesa, que ainda criança fixou residência em França, assume ser fruto da diversidade rítmica e de culturas do continente. Ela apresentou em Luanda o seu segundo álbum “Kwin Na Kingué”, que exorta ao orgulho pelo continente africano.

02/06/2019  Última atualização 12H05
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 Em Luanda pela terceira vez, Valérie nesta última passagem veio sem o seu pai musical, Manu Dibango. Participou num concerto na Casa das Artes do Talatona, em alusão ao Dia de África, no dia 26 de Maio, numa produção da Alliance Francesa.
Ela começou por afirmar ao Jornal de Angola que teve a grande oportunidade de fazer parte da banda de Manu Dibango, “Soul Makossa Gang”, durante 8 anos e de ter podido acompanhar outras estrelas africanas. Tem como grande objectivo partilhar os valores e a música africana.
Valérie considera que Manu Dibango é uma grande escola, não apenas no plano musical, mas da vida. Quanto ao facto de muitas das principais estrelas do continente terem passado pela formação de Manu Dibango e de ela própria ser amiúde apontada como a próxima grande estrela camaronesa, ela diz: “a vida é feita de coisas estranhas, há escolhas que fizemos, tive esta experiência e estou a me preparar para o que está para vir. Quando comecei com Manu eu soube que tinha de aprender muito. Mais tarde fui à escola para fazer uma formação. Sempre manifestei que gostaria de exprimir-me como cantora. Desta forma, todas essas experiências prepararam-me para outras etapas. Quanto a ser a próxima estrela, só o tempo dirá, mas obrigado pela boa vibração”.
Um outro aspecto levantado é a forma como Valérie, assim como o seu mentor, apesar de viver grande parte da sua vida em França, consegue preservar os ritmos camaroneses. Eis a sua justificação: “quando se é criança, conseguimos captar tudo. E é normal que eu tenha também absorvido muitas coisas. Em França escuto música africana e convivo no meio. Uma outra coisa: sempre tive a vontade de trabalhar com ritmos africanos e, felizmente, trabalhei com Manu Dibango”.
Mesmo a trabalhar num ambiente cosmopolita, ela consegue manter a chama acesa. “Como uma africana que saiu pequena do continente, tenho a seguinte razão para manter a chama acesa: acima de tudo, as memórias da minha infância; eu saí dos Camarões mas as memórias nunca saíram da minha vida”.

Um trunfo na manga

Valérie dispõe de mais um trunfo: o seu produtor, Guy Nwongang, é uma autêntica memória de ritmos africanos. O produtor, que também tem trabalhado com Manu Dibango, falou da concepção do disco de Valérie, que, segundo disse, mostra um universo alegre do continente. “O álbum 'Kwin Na Kingué' foi feito em bons estúdios e com excelentes músicos. Trabalhou-se muito bem nos textos”.
Guy Nwongang disse ainda que optaram por jovens e talentosos instrumentistas. Confidenciou-nos que essa opção foi uma forma de mostrar que há uma continuidade rítmica entre os jovens africanos que vivem na diáspora e que não se perdeu a identidade africana. Também, acrescentou, a intenção era mesmo trabalhar com músicos que poucos conhecem e com isto ajudá-los também a brilhar.
O também respeitado percussionista está em sintonia com Valérie ao afirmar que no álbum de estreia fizeram diferente quando optaram por trabalhar com artistas consagrados, de forma a homenagear os mestres e agradecer-lhes por tudo quanto têm feito.
Nessa nova fase das suas carreiras, já passaram pela Tanzânia, Alemanha, Áustria, Japão e Camarões e no verão embarcam numa tournée pelo Canadá e Estados Unidos.
Reconhecem que os grandes nomes da música africana passam pouco pelo continente e que gostariam de ver este quadro alterado e, assim, poderem partilhar mais com os artistas radicados no continente.
Valérie diz que, como mulher, gostaria de ajudar jovens cantoras. No entanto, ambos afirmam que sentem que alguns artistas mais urbanos têm feito concertos em África e são muito mediatizados, enquanto outros, que não são deste segmento, são pouco destacados.
Mostraram-se preocupados com a forma de divulgação da música africana, que mostra apenas um lado do que é feito. Deram como exemplo as novas estrelas da música nigeriana, que muitas vezes, no Ocidente, são vistos como o resumo da música africana.

Música angolana

Ambos também falaram do conhecimento que têm da música angolana, centrado sobretudo em dois nomes: Bonga e Paulo Flores. Mas revelaram possuir também uma relação de cumplicidade com Afrikkanitha, com quem já trabalharam, e Lulendo, que tal como eles próprios, colaborou com Manu Dibango. Referiram ainda Vivalda Dula, a cantora e percussionista com quem partilharam o palco no Festival Womex.
Valérie Ekoumé reiterou que está satisfeita com a nova fase da sua carreira. Ela defende que a característica principal da música africana é a diversidade de ritmos e diz mesmo, cheia de orgulho: "eu sou a diversidade".

Kwin Na Kingué

O álbum “Kwin Na Kingué”, com dez faixas musicais, saiu em 2017, dois anos depois da estreia a solo de Valérie com o disco “Djallé”, onde encontramos a participação de Manu Dibango em “Dipita na Wéllisane”. Tudo depois dela ter sido corista e bailarina de artistas como Manu Dibango, Koffi Olomidé, Maceo Parker, Alain Barrière, Courtney Pine, Passi, MC Solaar, Papa Wemba, Rokia Traoré, Kaissa Doumbe, Etienne Mbappé, Youssou Ndour, Kaissa Doumbe, Coco Mbassi e o angolano Lulendo. Igualmente depois da sua passagem pela Maraboutik Big Bang.
O álbum “Kwin Na Kingué”, fortemente marcado pelos ritmos Bikutsi e Essèwè, ambos muito apreciados nos Camarões, é cantado na língua Duala e tem rasgos de português e lingala.
A crítica considera que ouvir Valérie é “um convite para viajar pela musicalidade do Afro Pop”. Valérie desvendou que no álbum que apresentou em Luanda, no âmbito das celebrações do Dia da África, o tema de abertura “Faya (Weya)” é autobiográfico: Faya era o seu nome quando mais jovem; é uma alusão ao fogo e foi-lhe atribuído por ser muito aguerrida na escola e ainda por no ambiente francês sempre afirmar-se como africana, pois a energia camaronesa, a “Se Yaya”, sempre a acompanha.
O segundo tema, “Kwin Na Kingué”, que dá titulo ao álbum, fala do orgulho e da identidade africana. “Somos reis e rainhas e devemos preservar a cultura negro-africana”, defende a cantora, acrescentando que “existe um continente pós-colonial, que não obstante não ser bem representado na história, tem valores”. Exalta, a propósito, figuras como Thomas Sankara e Chaka Zulu.
Segue-se o tema “O Bosso”, onde a questão do renascimento africano e da sua diversidade cultural é apresentada, e “Mulema Mo”, um tema que apela à paz e onde se afirma que “temos um só coração”. É uma canção acerca da partilha de culturas, que conta com a participação da brasileira Flávia Nascimento. Já “O Bia é” apela a não desistir e a lutar contra os obstáculos. A mensagem é feminista, causa que Valérie abraçou, segundo disse, por ser africana.
“Lobiko” é a história de uma mulher que está triste porque foi abandonada pelo homem que ama. Cantada em lingala, é da autoria do congolês Basille Nteika. “Ingea” é uma balada que diz que devemos abrir os nossos corações, com os inconfundíveis acordes da Kora a deixar marcado o ADN da África Ocidental. O disco fecha com duas versões de “Mulema Mo”.

E assim foi a noite do concerto

Em hora e meia, a ex-corista de Manu Dibango surpreendeu a plateia da Casa das Artes com a sua arte e a sua proposta, que a crítica considera como um “Afro-Pop acústico recheado de baladas”.
Foi uma actuação cativante, com Valérie a fazer uma performance muito interactiva, conquistando a audiência, que reconheceu todo o seu potencial. A inclusão de “Kunanga do Amor”, de Paulo Flores, no reportório do concerto, não caiu apenas na mente dos espectadores como uma forte surpresa, foi uma demonstração de atitude.
A tentativa dela de trocar o Bikutsi camaronês pela Kizomba, com a ajuda do celular para cantar em português, mereceu imensos “likes” e todos ficaram à toa, como canta o poeta do povo.
Um outro momento marcante foi a presença de crianças do Liceu Francês Alioune-Blondin-Beye, que partilharam o palco com a cantora nas canções “Djalle”, uma música ritmada, e na balada “Ingea”, em que as crianças fizeram o coro em francês e português. Esta parceria resultou da visita que Valérie efectuou à instituição de ensino.
O inseparável Guy Nwogang comandou a formação instrumental com a sua cozinha percussiva, Chuchu Bass mostrou a força da escola dos baixistas camaroneses e o francês Christoffer, na guitarra, deu mais uma vez provas de que existem ocidentais que absorveram a rítmica africana.
Depois de uma abertura com o público meio tímido, temas como “Lobiko” viraram o cenário e Chuchu Bass brincou com o seu instrumento, alternando o “groove” do baixo com solos, numa interacção perfeita com o público e Guy Nwangong.
Christoffer demonstrou segurança em “Faya”, numa altura em que a plateia começava a perceber e a assimilar o fogo musical de Valérie, animado em “Kwin Na Kingué”, onde o dedilhar da guitarra parecia de um executante de um vilarejo de Douala ou Yaoundé. A cumplicidade artística entre Valérie e Guy pôde ser notada em temas como as dançantes “Mulemba Mo” e “Obosso”.
O percussionista não se ficou apenas pelas batidas, aventurou-se também na animação, como o faz na banda de Manu Dibango. O cubano Yasmane Santos, mais uma vez, demonstrou o seu interesse nos ritmos africanos e em “O Bia é” justificou por que a Alliance Françasie sugeriu o seu nome para partilhar o palco com Valérie e Guy.