Reportagem

Quando pastores usam o “rebanho” para violações sexuais

A relação sexualmente de homens com menores de idade suscitam preocupações às famílias, à sociedade em geral e à Polícia Nacional, em particular. O caso mais recente de que há registo ficou conhecido há dias, no bairro Calemba 2. Um pastor da igreja do Espírito Santo, Mbakanu Zacarias, é acusado de violar uma menor, após, alegadamente, colocar droga no refrigerante que ela consumiu. Do acto sexual, resultou a gravidez da menor. Em Luanda, o número de crimes desta natureza cresce, nos últimos meses. As autoridades registam, por semana, mais de três casos de violação.

08/08/2019  Última atualização 09H14
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Magra, baixa e de pele clara, Marta António (nome fictício) fala de forma pausada, com voz meio trémula, como uma criança inocente que é. Com um longo vestido branco, ela tem os olhos e lábios secos. O relógio marca 16 horas e Marta António está pensativa. Não sabe o que o futuro lhe reserva, com uma gravidez indesejada de oito meses, da autoria do próprio pastor da igreja do Espírito Santo, onde foi procurar cura para o paludismo que a assolava.
A gravidez foi descoberta tardiamente, sete meses depois. Até aos sete meses, Marta António não compareceu a qualquer consulta pré-natal. Por isso, não conhece o estado de saúde da criança que está prestes a trazer ao mundo de forma inesperada, resultado da violação que sofreu do pastor em cujas orações acreditou.
A triste história começou quando a mãe, Luciana André, 40 anos, a convite de uma vizinha, passou a frequentar a Igreja do Espírito Santo, liderada pelo pastor Mbakanu Mampuya Zacarias, de 39 anos, natural do Congo Democrático.
Certo dia, Marta António, a menor abusada sexualmente, adoecera, com sintomas de malária. Aconselhada pelo líder religioso, a mãe levou-a à Igreja, onde a menina ficou internada, em companhia de outras. Conta a menor que num domingo, em Dezembro do ano passado, por volta das 21 horas, o pastor chamou-a e, depois de breve conversa, ofereceu um refrigerante já aberto, onde supostamente colocou droga.
Minutos depois de beber, Marta António adormeceu no recinto para onde fora chamada à conversa. Foi nesta altura, acredita a vítima, que o pastor materializou o seu maligno pensamento, estuprando-a até a desflorar, deixando-a a sangrar. Ao despertar, Marta sentiu dores na região da vagina e reparou nas manchas de sangue. Em choque, sem saber o que fazer, tomou banho e ficou em silêncio para tentar ultrapassar o problema.
Perante o silêncio e desorientação da vitima, o pastor aproveitou a inocência e timidez dela. Três dias depois, voltou à carga, com o mesmo procedimento. Ao voltar a despertar com os mesmos sintomas, Marta teve quase a certeza de que o pároco era responsável pelo abuso de que era alvo.
A menina redobrou a atenção, com o fito de apanhar o criminoso em flagrante. Três dias depois, o pastor aproveitou a ausência das outras meninas chamou Marta ao seu gabinete, para orar pela sua saúde. Depois da oração, pediu à menor que tirasse a roupa. Perante a recusa desta, intimidou-a com ameaças de morte da mãe.
Amedrontada, Marta consentiu que lhe tapassem a boca e foi violada, desta vez sem recurso a qualquer droga. Não contou à mãe, por temer represálias. O tempo passou e a menina sequer desconfiou de uma possível gravidez, até que as irmãs da igreja alertaram a mãe da menor, para os sintomas que já eram evidentes.
Preocupada, a mãe levou a filha ao Hospital Geral de Luanda, onde os médicos diagnosticaram uma gravidez de sete meses. Mesmo diante da realidade, Marta António recusou-se a revelar o nome do responsável, intimidada pelas ameaças do pastor, que ameaçou matar a mãe, se o denunciasse.
Desesperada, depois de vários dias a tentar persuadir a filha a dizer quem era o pai da criança, Luciana André, ameaçou suicidar-se, armada de uma corda, para um possível enforcamento. Foi nessa altura que a menor decidiu contar tudo.
Com uma vida de profunda devoção à igreja, a mãe não quis acreditar no que ouvia. Porém, perante as evidências, não teve outra saída, senão cair na real e accionar a Polícia Nacional. As autoridades detiveram o pastor, que aguarda julgamento.
Na esquadra, a família assegura que o pastor confessou o crime e a autoria da gravidez. Mas se recusa a dar dinheiro para as consultas pré-natais. Marta António é a terceira filha de um total de seis irmãos. Por conta da gravidez, abandonou a escola, onde frequentava a nona classe. Diz-se receosa do olhar acusadores das colegas. Diz sentir imensa raiva do pastor e que não lhe passa pela cabeça ser sua esposa.

Preocupação de mãe

"Não sei o que fazer", confessa Luciana André, a mãe da menina. Magra, a mãe sobrevive da venda ambulante para sustentar os quatro filhos. Lamenta o estado em que a filha se encontra e mostra-se arrependida de ter frequentado a igreja do pastor Mbakanu Mampuya Zacarias. Lamenta a falta de apoio para fazer as consultas da menina, isto para não falar de medicamentos e roupas para a criança.
"A família do pastor mostra pouca sensibilidade em ajudar nas despesas", confessou. O Jornal de Angola apurou que o pastor tem sete filhos, de duas senhoras com quem viveu maritalmente. Ambas as relações terminaram e os descendentes do pároco residem em casas de renda.

Pastores são condenados por violação

Pastores são denunciados em Luanda e em outras províncias do país por violação sexual de crentes, muitas delas menores de idade. Alguns já foram detidos e actualmente cumprem pena de prisão. A 13ª Secção do Tribunal Provincial de Luanda condenou, este ano, a 12 anos de prisão maior, João Pedro Maria, 44 anos, pastor da Igreja Pentecostal Efatá, por violar uma menor de 14 anos, crente da mesma congregação religiosa.
Antes de praticar o acto, colocou droga na gasosa que deu a beber à vítima. "João Maria agiu de forma livre e consciente, para satisfazer a sua lascívia, contrariando as leis de Deus", segundo o Tribunal Provincial de Luanda. Perdeu os direitos de pastorado durante 12 anos, sendo também condenado ao pagamento de uma indemnização de seis milhões de kwanzas à família da vítima.
Outro caso que resultou em condenação foi o do pastor da Igreja Ministério de Alsadam, no Cunene, Cornelius Simon, de 42 anos. O pároco de nacionalidade namibiana cumpre uma pena de 10 anos, aplicada pelo Tribunal Provincial, por abusar sexualmente de três das quatro meninas crentes que viviam em sua residência.
Ficou provado em Tribunal que o pastor praticava actos sexuais com as meninas de 14 e 21 anos, que se acolhia em sua residência, com consentimento das famílias, para sessões de orações de curas divinas, desde Julho de 2017.
As autoridades consideram, igualmente, que o condenado não tem o propalado poder de cura divina. Pelo contrário, manteve actos sexuais com as vítimas, aproveitando-se das suas fraquezas e alegando que os actos faziam parte do tratamento. Perante sinais de resistência, ameaçava as vítimas com uma suposta "maldição divina".

CICA reprova atitude de pastores

A Secretária Geral da Conferência de Igrejas Cristãs em Angola, reverenda Deolinda Dorcas Tecas, disse que pastores com comportamentos do género são doentes, psicopatas e anormais. Para ela, um adulto deve relacionar-se com alguém também adulto e de forma convencional, conquistando a pessoa da sua idade e personalidade.
"Drogar, violar ou abusar sexualmente de menores são práticas anormais e inaceitáveis em qualquer sociedade", enfatizou.
Para a reverenda, esse comportamento de alguns "ditos pastores" choca a comunidade cristã, uma vez que o pastor só o é em nome da própria comunidade cristã. Defendeu a formação em Teologia Bíblica, antes do exercício da função de pastor, acrescentando que muitos são consagrados em casa e na companhia de amigos.
"As pessoas consagradas para actividade pastoral devem encarar este acto com responsabilidade, rigor e lealdade, porque no acto da consagração, a pessoa se sente voltada para o chamado. O indivíduo consagrado para o serviço da Igreja é aquele que se sente entregue de corpo e alma para o Senhor, ao serviço das comunidades".
A reverenda refere ainda que os pastores que violam as crentes, ainda por cima menores, apresentam desvios de comportamento e merecem uma certa atenção de pastores iguais e de psicólogos. Acrescenta que o pastor ungido, consagrado e que recebe a unção do espírito santo tem um carácter que sempre prima pelo bem das pessoas.
"O que temos ouvido através do órgãos de Comunicação Social, redes sociais, é que existem pastores que conseguem desfazer uma certa relação familiar, prometendo dar outro parceiro ou parceira. Nós não temos o mandato de desfazer os lares, mas de unir e fazer com que as pessoas se amem e cultivem o diálogo onde houver conflito", concluiu.

A influência da pobreza no problema

O sociólogo Marcelino Pintinho considera que a situação actual das confissões religiosas em Angola é um problema social, que requer um novo modelo de abordagem, pelas repercussões que tem causado na estrutura de algumas famílias e o efeito latente para a sociedade em si.
"É lamentável que determinadas pessoas (pastores), fazendo recurso ao nome de Deus, aproveitem a vulnerabilidade das crentes, usando a dimensão divina para concretização dos seus desejos e aspirações sexuais. Por vezes, recorrem ao uso da força, como técnica de defesa, resultando em violação sexual".
O especialista lembra uma frase do Presidente da República, segundo a qual “é necessário regular o negócio da fé”. Refere que "devemos aplicar a maior mudança de modo a desencorajar essa prática social, que resulta de comportamentos destrutivos e irresponsáveis de alguns pastores. Por outro lado, os níveis de pobreza extrema têm uma influência determinante, sobretudo nas zonas periféricas da capital".
Como medida de sanção a tais práticas sociais criminosas e delinquentes, o Conselho das Igrejas Cristãs (CICA) e outras instituições religiosas devem adoptar procedimentos rigorosos que resultem em denúncia e afastamento de alguns pastores que se dizem mensageiros para difusão da palavra de Deus, sugere Marcelino Pintinho.
Na sua óptica, o Instituto Nacional para os Assuntos Religioso (INAR), desempenha um papel importante, enquanto representante do Departamento ministerial para questões inerentes as Igrejas, seitas e confissões religiosas. "O mesmo deve acompanhar todos estes fenómenos de perto, como auxiliador das autoridades competentes, nomeadamente PGR, SIC, Polícia Nacional e Tribunais, exigindo julgamento público de alguns pastores que violam as crentes".

Os crimes aumentam

Crimes de violação sexual são registados quase todas as semanas pela Polícia Nacional em Luanda e em outras províncias. Os meliantes chegam a ameaçar as vítimas com arma de fogo e facas para conseguirem os seus intentos. Recentemente, quatro jovens, entre os 20 e 25 anos, foram abusadas sexualmente por um grupo de seis rapazes, estando um deles detido numa das celas do Serviço de Investigação Criminal de Luanda.
A triste história começou quando, no dia 5 de Junho, Alice Moisés, que vive no Calemba 2, foi ao bairro Banga Wê, no Kilamba Kiaxi, visitar umaa irmã, Palmira Moisés. Como se fez tarde e o táxi estava difícil, Palmira convenceu a irmã a passar a noite em sua casa. Decidiram então ir passear no mercado do divórcio, no Golfe, onde se juntaram a duas amigas. Foram para uma barraca de venda de bebidas alcoólicas, onde ficaram até meia noite.
Nessa altura, as quatro jovens decidiram ir para casa juntas. Ao longo do caminho, num dos becos, encontraram dois jovens, que as ameaçaram com pistola. Levaram-nas até uma residência inacabada, na rua 10 do bairro Banga Wê. Dentro da casa, já havia outros quatro jovens, à espera das meninas e ali foram violadas em grupo e espancadas.
Os violadores agrediram sobretudo as duas jovens que mais resistiram às suas intenções. Os violadores consumiam bebidas alcoólicas, sobretudo cerveja e whisky. Além da violação sexual a que foram sujeitas, tiveram que entregar-lhe os pertences, como telefones, dinheiro e calçados. O trauma assola as meninas. Não há uma que queira recordar o que passou.

Números das violações sexuais em Luanda

De Janeiro a Junho deste ano, o Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional registou 382 crimes de violação sexual, em vários municípios de Luanda. O director do Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa da Delegação Provincial do Ministério do Interior em Luanda, intendente, Mateus Rodrigues, explicou que deste número, 52 casos envolvem menores de 18 anos.
Nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março, o Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional registou 159 crimes de violação sexual. Deste número, 31 casos foram esclarecidos, ou seja, os supostos autores foram detidos e aguardam julgamento do Tribunal Provincial de Luanda. Em 18 casos, as vítimas eram menores de 18 anos.
No primeiro trimestre de 2018, houve 187 casos, dos quais 15 com vítimas menores de idade. Comparando os dois períodos, regista-se uma diminuição de 28 casos e um aumento de três vítimas menores de idade.
No II trimestre, correspondente aos meses de Abril, Maio e Junho, foram registados 223 casos de violação. Das vítimas, 34 são menores de 18 anos. Regista-se aumento de 64 ocorrências e mais 16 casos envolvendo menores.
O crime de violação sexual esta plasmado no artigo 393 do Código Penal, cuja moldura penal geral vai de 2 a 8 anos de prisão maior. De acordo com explicações do jurista Domingos Betico, se a vítima for menor de 12 anos, a moldura penal é aplicada com base no artigo 398 do Código Penal, cuja pena tem um agravante especial fixado entre 8 a 12 anos de prisão maior.

Pastor está em liberdade

O Jornal de Angola soube, junto do pai da menina Daniel Kula, que o pastor Mbakanu Mampuya Zacarias foi solto, o que foi confirmado, por contacto via telefone, por uma fonte próxima ao processo junto do Serviço de Investigação Criminal do Kilamba Kiaxi.
O pastor foi solto pelo Ministério Público, mediante pagamento de uma fiança no valor de 100 mil kwanzas, devendo aguardar em liberdade a conclusão do processo e o consequentemente o julgamento.
A situação deixou descontente a família. O pai da menor, Daniel Kula, disse ao Jornal de Angola não entender a decisão do Ministério Público.
"Em minha opinião, pela gravidade do assunto, o pastor deveria aguardar pelo julgamento na cadeia".
O jurista Domingos Betico explicou ser, juridicamente, possível que as pessoas respondam o processo liberdade provisória, porque a prisão preventiva é a medida de coação pessoal mais gravosa.
Explicou que a prisão preventiva, à luz do artigo 16 da Lei 25/15, de 21 de Setembro, para que seja aplicada, deve obedecer a critérios como perigo de fuga, possibilidade obstruir meios de prova que o Ministério Público esteja a reunir e a possibilidade de continuar a praticar o mesmo acto criminal.
"Se há indícios de perigo de fuga, ele deve ser detido; caso não haja esse perigo de fuga, pode ser solto", explicou Domingos Betico.

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