Reportagem

O desafio da água à prova das ameaças actuais

Vasta área no sul de Angola atravessa uma forte seca desde há um ano. De facto, é a retoma de situação semelhante ocorrida recentemente, ou seja, com pequeno intervalo.

03/09/2019  Última atualização 12H55
Arão Martins | Edições Novembro| Huíla

 A área atingida não está oficialmente delimitada. Segundo umas fontes, abrange a província do Cunene, partes do Cuando Cubango, do Namibe e da Huíla. Outras, incluem a totalidade destas províncias e acrescentam Benguela, total ou parcialmente. Este desacordo suscita dois dados muito diferentes sobre a população de alguma forma afetada. De oitocentos e oitenta mil a dois milhões, consoante a perspectiva.
Também não há precisão no número de vítimas e prejuízos. Alguns círculos referem apenas perda de animais, num total da ordem dos trinta mil bovinos. Outros, apontam de quatro a cinco crianças que morrem de fome por dia em Angola, sobretudo nas zonas afetadas pela seca. Assim, sem se saber ao certo onde há seca e quantas pessoas estão dentro dela, é muito difícil estabelecer diagnósticos e fixar meios.
O governo angolano fez uma alocação de 200 milhões de dólares, por vezes apresentada em divisas e outras em moeda nacional. Agências da Nações Unidas são citadas como tendo prometido cerca de 465 milhões de dólares norte-americanos e o presidente da empresa namibiana de água, Namwater, ofereceu em Ondjiva, no dia 22 de agosto ultimo, quinhentos mil dólares namibianos como ajuda de emergência, algo equivalente a trinta e quatro mil dólares US. Mesmo em moeda da Namibia, esta doação pode ser usada diretamente, dada a existência de produtos vitais no respetivo mercado.
Ainda assim, causa alguma estranheza que uma pequena economia venha em ajuda, mesmo simbólica, de uma muito maior em volume de PIB. Mas a Namíbia tem grande interesse na normalização da situação do lado angolano, tanto mais que numa faixa do seu território também se sentem efeitos da seca. Por um lado, os pastores angolanos e namibianos praticam transumância com os seus rebanhos, em função das disponibilidades hídricas - portanto, de pastagens. Por outro lado, barragens essenciais para o país vizinho encontram-se na margem angolana do rio Kunene: Calueque para fornecimento de água e Ruacaná para energia elétrica.
No caso concreto da água, Calueque foi concebida com uma capacidade de enviar, através do canal que liga à Namibia, seis metros cúbicos por segundo. Altos funcionários em Windhoek disseram-me já há algum tempo que, na verdade, o volume raramente ultrapassa os três metros cúbicos.
A Namwater gere a barragem e, ao mesmo tempo, construíu um canal no seu território para abastecer um polo agrícola e algumas cidades, incluindo uma área considerável de reserva hídricaem Oshakati, e, em Windhoek, um dos melhores sistemas mundiais de reciclagem. Coisas que Angola devia ter feito também. A ausência de canais a partir dos rios da região sob seca e de reservas hídricas de segurança tornam impossível resistir ao flagelo e explicam porquê o mesmo fenómeno meteorológico tem efeitos diferentes nos dois países.

Dispositivo de emergência

Durante a visita do responsável da Namwater, autoridades nacionais men­cionaram a existência dum dispositivo de emergência, compreendendo vinte camiões cisternas e quatrocentos reservatórios, bem como trabalhos de reabilitação de 171 poços de captação de água subterrânea, dados que requerem atenção. Os vinte camiões parecem pouco, considerando a extensão só da província do Cunene, a não ser que, com um grande número de motoristas, consigam fazer rotação constante.
A dimensão dos reservatórios e o seu ritmo de reposição é outro dado que não possuímos. Porém, o facto principal reside na reabilitação dos 171 poços. A sua paralização é um poderoso fator agravante do problema e corresponde à falta de manutenção de infraestruturas. Como ficaram inoperativos em número tão elevado numa região altamente sensível, tendo em conta, além disso, o investimento feito para a sua abertura?
A água subterrânea é sempre elemento central de abastecimento. Á escala planetária, a água de superfície representa cerca de 1,5% do total de água doce, enquanto a subterrânea equivale a 27,5% (os restantes 71% aproximadamente estão nos gelos da Antártida) . A correlação de 1 para 27 não se verifica em todas as partes do mundo, mas a configuração fluvial da região Namibe-Huíla-Cunene- Cuando Cubango permite estimar que não deve andar longe dela.
Conforme sabemos por experiências recentes, chuvas de alguma intensidade provocam rapidamente grandes alagamentos e inundações, mesmo em Ondjiva, revelando a existência de manancial subterrâneo. De tal forma que aparecem tradições orais a designar Ondjiva como “terra cercada de água” ou “ilha”.
A reativação desses poços deixados ao abandono e a abertura de outros aparece como resposta prioritária de curto prazo. Ainda no mesmo prazo, algumas formas de adução provisória a partir dos rios são concebíveis. O seu caráter provisório pode ser visto como aplicação de capital menos adequada, mas, perante o imobilismo na matéria durante todos estes anos, a ameaça direta à vida humana e à viabilidade económica da área constitui medida justificável.
Esta adução provisória implicaria moto bombas e canalização de montagem rápida (borracha ou plástico) a partir de três ou quatro rios. Dois são permanentes mesmo de caudal baixo no momento - o Kunene e o Cubango ou Okavango. Outros dois são sazonais, na maior parte dos cursos, mas têm faixas permanentes perto das nascentes, incluindo neste caso água subterrânea a pequena profundidade - o Cuvelai e o Curoca. Isto implica desde já estudos de urgência e a criação duma Autoridade de Bacias, agrupando estas referidas e mais outras cuja viabilidade urgente seja demonstrada.
Posteriormente, a coordenação entre as quatro bacias pode dar lugar a trabalhos de regularização de caudais com pequenas represas, abertura de canais do tipo Calueque, etc. No momento, trata-se de responder a uma ameaça imediata.

Retorno das chuvas permanece incerto

O recente fórum da SADC sobre clima, realizado em Luanda, debruçou-se também sobre previsões no conjunto da África Austral e permanece muito incerta a data de retorno das chuvas. Há esperanças para a partir de outubro até abril, porém, continuar entregue à dependência de circunstâncias aleatórias é arriscar o prolongamento desta crise ou a sua renovação mais tarde ou mais cedo.
A médio prazo, o país tem de pensar numa política de água como prioridade absoluta. Nada existe sem ela. A própria vida humana, mas também a diversificação económica. Ninguém investe numa zona sem água, seja urbana ou rural.
A rede fluvial angolana possui 47 bacias hidrográficas e uma gigantesca “caixa de água” no centro do país. Com efeito, numa relativamente pequena superfície do Bié nascem rios poderosos como o Cuanza, Kunene, Cuando e Okavango, sem contar outros, menores. Desde há muitos anos a FAO colocou Angola em primeiro lugar no potencial irrigatório africano, embora apenas um por cento desse potencial seja utilizado.
Projeções baseadas no aumento demográfico (de Engelmann & Le Roy, citadas por Leif Ohlsson) assinalam uma disponibilidade per capita anual de água em Angola no ano de 2025, em torno de 5.837 metros cúbicos. Dá quase 16 metros cúbicos per capita diário, sem contar com a hipótese da dessalinização oceânica fazer progressos consideráveis. Isto permite desenvolver agricultura de alto rendimento, sustentar as exigências dos demais setores e garantir a todo os angolanos mais que os 50 litros diários apresentados como direito mínimo de qualquer ser humano.
O ano de 2025 pode ser a referência de objetivo.

*Este artigo foi redigido segundo o Acordo ortográfico de 1990

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