Entrevista

“Nunca tiramos proveito do calor para fornecer produtos à Europa”

Uma das grandes paixões de Domingos dos Santos é o estudo do clima e da forma como este influencia as actividades económicas, sociais e culturais. Sendo antiga nele essa inclinação, desde muito novo ganhou um sentido apurado para a observação das marcas da passagem do tempo, tanto na natureza, como sobre os indivíduos e a sociedade

04/10/2019  Última atualização 08H19
DR

É engano que em Angola existem apenas duas estações climáticas anuais – a chuvosa e a seca – conforme o actual consenso?
Eu digo que não. Temos de respeitar a opinião feita há vários anos. A divisão somente em duas estações (chuvosa e seca) não ajuda a encontrar pormenores para uma planificação mais exacta das actividades humanas e gestão dos fenómenos da natureza. Considero que os conhecimentos e prognósticos do tempo em Angola, senão mesmo em África, são ainda menosprezados. Até hoje, nunca tiramos proveito do calor que a África Subsaariana possui para fornecer produtos hortícolas e flores para o Norte da Europa e da América du-rante o Inverno. Recordo que mesmo na Europa o ano era dividido em duas estações: o período quente – (Primavera, Tempus Veranus e Estivum) e o período frio (Tempus Au-tumnus e Hibernus). Depois, evidências científicas obrigaram à divisão do ano em quatro estações.

Os resultados a que chegou estão assentes numa recolha de saberes empíricos tradicionais, ancestrais ou se baseiam em estudos científicos verificáveis?
Por um lado, resultam do empirismo, porque, ao longo de mais de vinte anos, tenho me dedicado à produção agrícola nas províncias do Uíge, Cuanza-Norte, Malanje e Huambo. As observações das variações do tempo e do clima são, para o agrónomo, de extrema importância para definir as melhores datas de sementeira e colheita. As estações do ano, na base dos saberes tradicionais ancestrais em línguas locais, assemelham-se às variações do tempo e das estações do ano no Hemisfério Norte. São estudos científicos passíveis de verificação, visto que em 2004 realizei estudos simultâneos na Estacão Experimental de Chianga, no Huambo, e nos campos da Academia Timiryazev, em Moscovo, na Rússia. As variações do tempo ao longo do ano eram equivalentes, simétricas na sua amplitude. Cada vez mais fui consolidando a hipótese de existência de estações do ano simétricas, tanto no Hemisfério Norte como no Hemisfério Sul.
Se observarmos os períodos de sementeira do feijão, soja e milho, coincidem exactamente com estas estações do ano que evocamos. O início de cada estação e as diferenças existentes entre as localidades em Angola resultam do afastamento em relação ao Equador, isto é, ao deslocar-se do Norte ao Sul. Nas entrevistas com sobas e velhos das aldeias, eles dizem que estas estações do ano já existiam desde o passado remoto. Infelizmente, os portugueses não consultaram ninguém ou simplesmente desprezaram os conhe-
cimentos locais sobre o clima e as variações do tempo. São evidentes os sinais de mu-dança e as variações do tempo, com base nas quais as cegonhas orientam-se nas suas migrações, bem como os patos de água e os bagres. Os homens orientam-se com as variações do tempo para o exercício da agricultura e da pecuária e da caça aos grandes antílopes. Os dias longos ou curtos sustentam a produção de mel das abelhas selvagens e os rituais culturais de casamentos, circuncisão, grandes travessias em desertos e o comércio inter-regional.

Já publicou o resultado dos seus estudos, sobre as variações climáticas em Angola, em alguma revista científica académica, nacional ou internacional?
Não. Esse estudo tem sido realizado em simultâneo com a produção agrícola, para ajudar os agricultores e os empre-
sários jovens que ainda não possuem experiência na agricultura. Existe um projecto e uma equipa de professores universitários interessados. A grande dificuldade é como chegar às 18 províncias e realizar entrevistas, ao menos, em cinco línguas nacionais, durante dois ou três anos de observações. Apesar de ser muito importante, nem sempre é fácil encontrar recursos para o efeito. Por isso, estamos aqui para evidenciar estes conhecimentos. Pode ser que surja alguém que apoie o estudo, o seguimento das observações e a sua publicação em línguas locais.

Ou, pelo menos, já submeteu o seu estudo ao INAMET, por exemplo?
Não. Mas tenho informação da existência de vários interessados, que recomendam atrelar o estudo com os dados do INAMET sobre o tempo em Angola. Também acho isso importante e necessário. Em 1997 e 1998, por minha iniciativa, reerguemos os pluviómetros nos municípios do Uíge e Negage, ainda du-rante o período de pouca estabilidade política que assolava o país. Para mim, sendo agrónomo, o estudo das variações do tempo foi sempre um as-sunto na minha agenda, pela sua importância na planificação do agro-negócio.

O quadro das estações climáticas que apresenta é relativo a todas as regiões do país ou a uma determinada região?
Este quadro é genérico. Como eu disse, as variações das estações estão relacionadas com o afastamento ou a aproximação ao Equador (do Norte ao Sul). Essas estações observam-se em todo o país. Hoje, apesar de eu não ter domínio de outras línguas locais, tenho informações de que também existem noutras regiões de Angola. A maior dificuldade reside na impossibilidade de viajar às 18 províncias para fazer entrevistas, marcar e fotografar a natureza (variação da vegetação) ao longo do ano, sob a influência das variações das temperaturas, das precipitações atmosféricas e outros factores.

A terminologia aplicada remete imediatamente para a cultura Kongo. Daí, extrapolou as conclusões para todo o país?
Replico dizendo que não domino outras línguas nacionais, não queria arriscar traduzir as estações para outras línguas locais. Todas as observações e variações do tempo são possíveis e passíveis de verificações. Em Angola, em função ao paralelo, as datas do início e fim de cada perío-do podem variar. Por exemplo, numa mesma província, o mês de início das precipitações atmosféricas (chuvas) nem sempre é igual em cada localidade. A generalização do assunto é uma forma de chamar a atenção a todos os interessados para a importância de que se re-veste o tema e a abrangência dos seus efeitos na vida de todos os angolanos.

Considera as conclusões a que chegou uma verdade “indiscutível”?
Sim. Pode ser que agora tenha pouco argumento e recursos sobre o assunto, devido à dificuldade de aprofundar as pesquisas, mas tenho confiança absoluta que o tempo vai demonstrar a sua valida-de. Os livros escolares no país, a breve trecho, irão falar da existência das quatro estações do ano. Já que Angola está a fomentar a actividade agro-pecuária, estes conhecimentos sobre o clima e suas varia-
ções serão importantes para produzir em maiores quantidades, afinar a qualidade, reduzir custos, prevenir doenças do gado...

Durante a sua formação académica, e no seu passado profissional, esteve dedicado ao estudo do clima ou vinculado a instituições de estudo do clima?
Sou engenheiro agrónomo e doutorado em Fitotecnia (cultivo de plantas). Nasci numa pequena aldeia do Bembe e vivi nesta aldeia até aos 13 anos. Ajudava os meus pais nos trabalhos do campo e gostei sempre de conhecer o clima. Hoje, dedico-me ao estudo do clima e das suas variações, como mais uma confirmação dos conhecimentos que vivo e vivi desde criança.
A Climatologia fez parte dos meus estudos. Estudei Meteorologia ao longo da formação. Estudei no Cazaquistão, um país desértico com um clima árido; também estudei na Rússia, numa região com um Verão curto. Nestes países, o conhecimento do clima e as variações do tempo constituem a base da planificação agro-pecuária e do sucesso do agro-negócio. O desprezo por estes conhecimentos traz consigo surpresas e prejuízos avultados, como é o caso que assombra o Sul de Angola. O clima é um factor a ter em consideração em todos os sectores da vida nacional, já que influencia a vida de todo o ser vivo.

Se estudos como o seu fossem tidos em conta pelas au-toridades, evitava-se o que está a acontecer actualmente no Sul?
Sim. Poderia diminuir os efeitos negativos. Isto é, ao invés de produzir danos - as variações do tempo ou mesmo as secas nunca vão trazer lucros para ninguém - mas ao menos poderia reduzir os efeitos negativos, como a perda de vidas humanas, empobrecimento das famílias, os avultados custos para o Orçamento de Estado e, ainda, evitava-se o constrangimento junto da comunidade internacional, como se não tivéssemos a capacidade de gerir calamidades naturais em Angola. Considero que devemos marcar o primeiro passo e o início é sempre o mais difícil e controverso. Os conhecimentos sobre o clima e as suas variações ajudam a reduzir os efeitos negativos do tempo e a produzir oportunidades.

Apesar das alterações climáticas globais, que são cada vez mais evidentes, mantêm-se absolutamente válidas as conclusões a que chegou?
As alterações climáticas globais vão influenciar, sobremaneira, no clima de Angola e é importante dizer que estas alterações vão produzir mudanças na duração das estações do ano. Por isso, seria necessário sa-bermos como estamos hoje, para nos adaptarmos amanhã. As alterações climáticas são ou serão nefastas para aqueles países “distraídos”, que não tomarem medidas antecipadas para reduzir os seus efeitos negativos. Os mais atentos poderão gerar negócios lucrativos. Um pequeno exemplo: nas regiões frias, se as alterações climáticas globais provocarem aumento de tem-
peratura e chuvas abundantes – os efeitos negativos serão as cheias e a erosão dos solos - cria-se uma oportunidade para o agro-negócio, através da plantação de palmeiras, que evitarão a erosão dos solos e produzirão oxigénio e óleo para biocombustíveis.

Quais sãos os passos que pretende dar, para fazer valer as suas teses?
Realizar estudos em toda Angola, encontrar as traduções das estações do ano nas línguas locais de Angola, desenhar o mapa de Climatologia. Se possível, realizar estudos comparativos com o trabalho do engenheiro Castanheira Dinis, na obra “Ca-racterísticas Mesológicas de Angola de 1973 a 2003”. Também, se for possível, cooperar com outros estudiosos do clima na região da SADC. O grande objectivo é apresentar um livro sobre as estações do ano em Angola, que possa contribuir para a planificação, gestão de fenómenos relacionados com o clima e meio didáctico para as escolas. En-fim, para o resgate dos valores e conhecimentos dos povos de Angola.

“Angola tem quatro estações climáticas”

Essa conclusão, segundo o engenheiro agronómo, re-sulta de estudos que realizou durante três anos, baseados em observações, entrevistas a camponeses, caçadores e pescadores das comunidades rurais dos municípios do Bembe, Uíge, Songo e Ambuíla. Domingos dos Santos disse ter ouvido também geógrafos e biólogos e utilizado informações divulgadas pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INAMET).
O investigador refuta ca-tegoricamente o consenso actual que aponta para a existência no país de apenas duas estações climáticas (período quente e cacimbo), por basear-se unicamente na ausência de chuvas.
“É pouco coerente e muito relativo o estabelecimento dos referidos períodos em Angola. As precipitações atmosféricas verificam-se em todos os meses, somente variam as suas quantidades”, justifica.
Ele tem em conta outros indicadores e padrões climáticos, associados às actividades socioeconómicas e socioculturais dos povos. Pelo que, segundo afirma, o estudo das estações do ano com base nos conhecimentos dos povos das localidades analisadas, associados a dados científicos, permitiu-lhe criar um quadro das quatro estações em Angola, “cujos nomes podem ser alterados de região para região, sem influenciar as variações climáticas”.
O investigador refere que o seu estudo vai ser amplamente divulgado nas principais línguas nacionais, para auxiliar os agricultores, silvicultores, pecuaristas e outros profissionais, cuja actividade está ligada à terra e ao clima, para que possam programar atempadamente as suas tarefas, bem como prevenirem-se de quaisquer intempéries.
“As estações do ano influenciam as actividades do homem na agricultura, navegação aérea e marítima, na moda, na gastronomia e no estado de espírito de cada indivíduo. Reconhecer o valor do conhecimento na base das tradições e culturas dos povos de Angola é devolver a dignidade e a auto-estima aos nossos povos”, sublinha Domingos dos Santos.
Eis, a seguir, a denominação e a caracterização de cada uma das quatro estações climáticas de Angola, segundo o engenheiro agrónomo e professor universitário Domingos dos Santos:

KUNDE – Caracterizado pela insolação radiante, elevadas temperaturas e diminuição das precipitações atmosféricas no final desta estação. É marcado pelo início das colheitas do amendoim ou ginguba, milho e feijão ma-cunde e, simultaneamente, a preparação da terra para as sementeiras da segunda épo-ca agrícola. Esta estação co-meça em Dezembro e termina em Fevereiro.

KITOMBO – Marcado pela cor verde das savanas e florestas e reaparecimento do “pássaro de cores vermelha e preta”. É caracterizado pela elevada humidade relativa do ar, elevadas temperaturas, chuva abundante, algumas vezes, com granizo e trovoadas. Não tem grande expressão na agricultura e complica as colheitas devido às precipitações e nebulosidade excessivas. Começa em Março e termina em Maio.

MBANGALA/SIVU – O início é caracterizado pela floração das gramíneas, céu pouco nublado e diminuição gradual da humidade relativa e da temperatura que provoca feridas nos lábios dos homens e mulheres. A ausência parcial das precipitações e diminuição da temperatura marca o início da horticultura de espécies de culturas temperadas como o feijão, o repolho, a cenoura e outras. Tradicionalmente, é o melhor período para marcação dos casamentos e grandes festas nas comunidades rurais e para a feira do café. Começa em Junho e termina em Agosto.

MASSANZA – O início é marcado pelo surgimento de novas folhas nas árvores, céu aberto e insolação radiante. Ouvem-se com frequência os cantos das aves, anfíbios e insectos. Marca a primeira migração ascendente dos peixes pela abundância das chuvas. É tempo da conclusão das la-vouras e início da sementeira das culturas anuais da primeira época: amendoim, batata-doce, abóbora e outras. Começa em Setembro e termina em Novembro.

PERFIL

Domingos dos Santos
Começou o Ensino Primário no município do Bembe, na província do Uíge, e terminou o Ensino Médio de Ciências Biológicas no PUNIV do Uíge, em 1988. Em 1990, beneficiou de uma bolsa de estudo do INABE para a República da Bielorrússia e depois ao Cazaquistão (ex-URSS), onde concluiu o curso completo de Agronomia, com o grau de Mestre em Ciências, em 1995. De 2002 a 2005, frequentou e concluiu o curso de doutoramento na Academia Agrária Timiryazev de Moscovo, na Federação Russa, na especialidade de Fitotecnia, com o tema dedicado à tecnologia de cultivo da soja na região de Moscovo e na região de Chianga, no Huambo.

percurso profissional
Em 1988, trabalhou como monitor/alfabetizador, na Escola Provisória afecta ao Lar dos Órfãos de Guerra na cidade do Uíge e no mesmo ano colaborou como monitor de Biologia e Química para a 8ª classe, na Escola do Partido MPLA, dedicada aos comissários municipais na província do Uíge. De 1996 a 2000 trabalhou como engenheiro agrónomo na Direcção Provincial da Agricultura do Uíge.

2001 e 2004
Trabalhou como engenheiro agrónomo no Serviço Nacional de Sementes, em Luanda. Entre 2005 e 2010 exerceu como engenheiro agrónomo na Estacão Experimental do Quilombo, no Cuanza-Norte, adjudicada ao Instituto de Investigação Agronómica. Desde 2011, trabalha no ISCED/Uíge, como Professor Auxiliar. Lecciona as cadeiras de Biologia dos Vertebrados, Microbiologia e Prática de Laboratório. Lá, já passei pelas funções de coordenador do Centro de Investigação Científica, chefe do Departamento de Ciências da Natureza e regente do curso de Biologia. Tem como linha de pesquisa o Desenvolvimento Sustentável.

Tempos livres
Dedica-se à consultoria e elaboração de planos de negócios para financiamento de projectos junto dos bancos comerciais e do Banco de Desenvolvimento de Angola. Tem conhecimentos de estudo do mercado e agronegócio. Participo em programas da Rádio Uíge com temas voltados aos assuntos socioeconómicos e socioculturais. Falo fluentemente Kikongo, Russo e Francês.