Opinião

A magia do sonho (Parte 2)

Estas cenas, de tão confusas e incomuns, não podiam ser reais. Só podiam ser originárias de um sonho, eram provavelmente de um pesadelo.

13/10/2019  Última atualização 06H30

Mais se adensaram e complicaram as imagens surreais quando, no ambiente quente da grande farra, entre passadas de lado e corridinhos de mestre, uns imitando Mateus Pelé do Zangado fazendo par com Maria sem Chucha e Jack Rumba com Joana Pernambuco, outros preferindo Fred Astaire com Ginger Rogers, e o genial Gene Kelly* com Debbie Reynolds, os donos da festança se confrontaram com uma marcha gigantesca que, ao som do rufar de uma orquestra de tambores, enormes, uns quantos, grandes, médios e pequenos, a maioria, ensurdecia a gente rica de bolso mas pobre de espírito, um desfile que tinha o condão de preencher com gente, os três quilómetros da avenida, ofuscando claramente os decibéis da aparelhagem do casório espampanante. Uma forma de luta inteligente, totalmente aberta contra os sonhadores do tempo antigo, representados pelo núcleo de intriguistas famosos que se misturavam/esfregavam no baile, aliados dos imbumbáveis mestres do instigamento aos incautos. “Temos que vencer a fome, vamos obrigar quem manda a olhar para nós”, gritava a consciência patriótica e trabalhadora. Caramba! Contrariando o renomado Paulo Freire, a voz dos oprimidos abafava a dos opressores! Eram professores e médicos, os enfermeiros, operários e camponeses, a classe média abandalhada, numa parada barulhenta mas serena, organizada, sem cães nem polícias, sem metralhadoras, todos a lutar pelos seus direitos, por uma Angola melhor. Bula Matadi, Álvaro Buta e Ekwikwi II, acompanhados por Emiliano Zapata, Simon Bolívar e Nelson Mandela, todos de mãos dadas, saudavam com sorrisos esperançosos, o desfile da classe trabalhadora angolana. Mas tudo acontecia já nos alvores de um domingo, dia do descanso semanal, para quem, de facto, trabalha.
Não! Era mesmo um sonho, não podia estar a acontecer comigo, nem sequer o cenário era Angola. Impensável! O certo é que, passado um breve intervalo em que cheguei a abrir os olhos e a esfregá-los com os nós dos dedos, o mundo imaginário levou-me, transportado, para um novo filme, um documentário copiado nas antigas “Actualidades Movietone” do meu tempo jovem, também cheio de imagens raras, e encabeçadas por um título sugestivo: “Os Arrasadores”. Os maus da fita arrasavam tudo, os sonhos e a paciência do povo, mesmo dos que estavam fartos e andavam baralhados com tanto oportunismo e insensibilidade, até dos que já se tinham isentado das taxas de convivência com aquela malta, os tais artistas que davam vida ao pesadelo. Foram desfilando com os seus estranhos comportamentos, tendo sempre o “exonerador implacável” como o inimigo a combater. Compunham o elenco técnico, profissionais de reconhecida capacidade, uns quantos bons rapazes, mas todos eles de carácter ruim. Produtores, técnicos de som e narradores de boa formação e seminariados às pressas na escola lisboeta, cenógrafos e argumentistas formados na Bélgica, todos com cartel fora e especializados longe das confusões da bwala.
No meio de misticismos cruéis e curas amaneiradas, eu via de novo o homem que parecia um mamoeiro. Ele imitava bem um magistrado, a sua má aparência, a voz fininha e a barbicha aparada, aquela capa preta a cobrir-lhe os ombros, o sorriso sarcástico nos lábios, a pose estudada ao empunhar um martelo enquanto gritava, dirigindo-se a um ajuntamento de pessoas, agindo sem dó nem piedade, “a crise para as maiorias!”. Apreciei-lhe demoradamente as atitudes. Só lhe via já! Atirava-se a um desdentado opositor que dizia, com expressão de pena, “meu irmão, o povo está a morrer com fome!”. Estariam seguramente num fórum, daqueles em que se discute muito e fala-se à toa, bastas besteiras, e no alto da sua tribuna, o homem que ria sempre, marimbou-se para o desdentado, continuou a condenar o povo, com bravura, sem contemplações, enquanto o defensor da maioria se opunha com as poucas forças que tinha. O homem que fazia de mau espantava-me. Mandava bocas, porque ganhara experiência com a participação no filme anterior onde se mostrou no papel do pai eufórico que via a filha a chegar das nuvens, vinda dos céus. Tamanha alegria só poderia ser fruto da oportunidade que teve de demonstrar esplendidamente, a quem desconhecia, a capacidade e a força do dinheiro. Do lado contrário, desvendavam-se segredos para nunca revelar, de como se pode fugir de ser cativo de um homem e de um regime.
No meu sonho, eu via-me a dizer, num descontrole de palavras, que detestava o ambiente dos dias em que chegavam rumores de que o ministro tal e o deputado sicrano ou beltrano estão com a corda na garganta. Nem em sonhos suporto conotações negativas vindas de intrigas curandeiras e políticas beneméritas, não posso com coristas de cânticos a louvar os que vivem embrenhados em sonhos de mando eterno, inúteis sonhos de encantar. Ai, os muitos empregos que acabam por ser nada, com a abertura de muitas e muitas lojas dedicadas à exploração do consumidor! Por isso é que, desperto ou embalado no meu sonho, eu espero que esse pessoal, ganhe um céu igualzinho a este inferno que aqui querem plantar. Mas garanto-lhes que quando eu chegar ao meu céu, vou mandar a todos, sem excepção, uma mensagem muito explícita de boas vindas.
No outro dia, sonhei com trabalhadores em luta, em manifestação pacífica, relatei mais acima. Mas agora, e perante o aviso que circula, num ambiente de verdadeiro sonho, eu pergunto, onde foram parar os sindicatos? Agora vamos estudar canto e música fechados em casa? Sabe-se, de facto, o que é justiça social nesta terra em que cada um puxa o seu interesse para seu lado? Que sociedade civil? Brincadeira tem hora, costuma cantar o Paulo Flores! Não vêm que é isso mesmo o que a malandragem pretende? Ai, santa ignorância, ai a força do dinheiro fácil! Recordo a avó Chica quando dizia, esse dinheiro cheira mal, é de porcaria, é de cocó! Rapidamente pensei, sonhando ainda, “meu Deus, os outros, os teus xarás mais pequenos enlouqueceram!”. E com a mesma rapidez, recuperei a minha fé, acreditei que é possível vencer malandros mal preparados.
Numa constante visão de cenário fantasmagórico, revoltante, com intérpretes capazes de pôr fora de si qualquer indivíduo como eu, um tipo compreensível até à exaustão, para entender as mudanças, ou as tentativas de mudança em curso no nosso país, eu acordei. Acordei assustado. Verifiquei que tinha dormido com a barriga voltada para cima!
*Sugiro aos apreciadores,
a visitação de “Sommer Stock”, de 1950,
um fantástico bailado a solo de Gene Kelly

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