Opinião

A casa de Neto abandonada no horto

Se eu passasse o Natal naquela que foi a casa de repouso de Agostinho Neto, no horto botânico, no Quilombo dos Dembos, na cidade de Ndalatando, gostaria que fosse em circunstâncias parecidas as que vivi, em 1991: com vinte e três anos de idade, sendo ainda um aluno universitário, fiz um estágio na quinta “La Vigía”, a antiga residência que o escritor norte-americano Ernest Hemingway, Prémio Nobel da Literatura, em 1954, teve, em São Francisco de Paula, nos arredores da cidade de Havana.

24/12/2019  Última atualização 08H57


Ainda que quisesse, eu não poderei passar o Natal na casa de repouso que Agostinho Neto teve no Quilombo: ela está completamente abandonada, o que contrasta com o actual estado do horto botânico que, apesar de inspirar cuidados, em parte, conserva a sua beleza rústica e nele há muita vida e riqueza. Foi lá que estivemos, no sábado passado.
Logo que transpusemos os portões de ferro forjado do Quilombo, a estrada alcatroada impôs-se como se fosse incontornável. Sem saber que era sol de pouca dura, decidimos evitar todas as picadas, mas, logo, terminámos assumindo que era menos intrusivo ir mesmo por elas: pisámos a areia e a lama conscientes de que era mais agradável que o melhor dos tartãs.
O alcatrão não tardaria a desaparecer. Continuámos um tempo pela estrada, a descer, sem despegar-se do monte, vendo desde o cimo e da altura do carro as várias covas das canas de bambu e, aos seus pés, a língua de água a correr com o seu lento caudal, recontando histórias daquele Quilombo que os homens calaram.
Chegámos à barreira que impedia a entrada de qualquer veículo e entregamos o bilhete de entrada ao guarda: descemos do carro, cumprimentámos os artesãos, fizemos as perguntas da praxe para esfarelar antipatias e só por pouco não ajoelhamos ao ver a primeira sumaúma, com os seus rizomas e as folhagens com um longo diâmetro.
A natureza chamou-nos a atenção, imediatamente: o salalé pegado ao tronco da árvore, a jaca e o sape-sape com as suas irregulares formas redondas e as borboletas a voarem, a girarem e tentarem poisar na polpa dos caroços de manga tão amarelos quanto cremosos, faziam-nos adivinhar a doçura e a obstinação.
Indiferente ao nosso lento andar e parar, andar e parar: a vegetação bailoçando com o vento mostrava a sua exuberância e os lagartos desapareciam com os nossos passos, espreitavam ao menor silêncio e, depois, apareciam corajosos quando travássemos a respiração e ficássemos estáticos como os muitos bancos de pedra, com os seus arabescos da época do colono, colocados em vários pontos do horto.
Na maior parte do tempo, o ar húmido e o chilrear dos pássaros obrigaram-nos a ficar calados: a natureza só não é virgem porque os camponeses cultivam milho, beterraba, batata-doce, abacaxi e mamão, mesmo no sopé dos montes e das montanhas. Mas, surpreendeu-nos ver a floresta “parir” uma motorizada que, como se fosse um cavalo, trazia um adulto e duas crianças com três bidões de maruvo, quatro cestos com tomate, rama de batata e mandioca, mostrando-nos o evidente: na sua justa medida, a comunidade cuida, vive e desfruta do horto.
Depois de termos visto as plantas de rosas de porcelana ainda sem florescer, a ponte chinesa que por sinal é feinha, as crianças, os adolescentes e os adultos a caminho do rio Muambeje, já quase a sair é que decidimos regressar e apanhar a primeira picada à esquerda, percorremos uns cento e cinquenta metros e deparamo-nos logo com a casa de Agostinho Neto, em ruínas, no Quilombo: o tempo parado e os vestígios mudos a tentarem resistir ao capim, tão verde quanto alto, impediram-nos de ver bem as marcas e o testemunho de quem por lá passou.
Foi estando na quinta “La Vigía” que Hemingway escreveu o seu conhecido romance “O Velho e o Mar”. Após sucessivos labores de recuperação e de manutenção, a quinta permanece intacta, praticamente tal como o escritor a deixou: hoje é uma casa-museu, muito visitada e estudada, integrada no tecido social, artístico e cultural da região.
A Fundação Dr. António Agostinho Neto (FAAN) tem estado a empreender esforços para recuperar todos os sítios e lugares associados ao seu patrono, mas, é evidente que este é um labor que será mais célere e eficaz se o Estado também intervir activamente e de modo responsável, sobretudo agora que estamos às portas de comemorar, em 2022, o centenário natalício de Neto.
Oxalá, então, nessa altura, a casa de repouso, no horto botânico, no Quilombo dos Dembos, em Ndalatando, esteja completamente reabilitada e transformada, por exemplo, numa residência para que artistas, escritores e intelectuais bem seleccionados, no Natal e não só, possam ir lá passar temporadas a criarem, a escreverem, a pensarem e a desfrutarem da natureza, que Ernest Hemingway e Agostinho Neto adoraram.

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