Reportagem

Man Tay: “Começamos do nada e conquistamos a fama”

António Júnior

Jornalista

A vida futebolística de Salviano está intrinsecamente ligada ao “seu” Progresso Associação Sambizanga e não é por acaso que continua a residir no Sambizanga. Falar de um sem fazer menção ao outro é falsear a história de um dos clubes mais populares do país. Como co-fundador do PAS, revelou que tudo começou sem terem a noção da dimensão que teria a iniciativa.

03/10/2020  Última atualização 08H50
Edições Novembro © Fotografia por: De equipa do bairro para os grandes palcos internacionais Sambilas mostraram que com vontade se pode ir ao longe

Humilde e conformado com o destino que a vida reservou-lhe, Man Tay, como também é carinhosamente tratado pelos mais próximos, deixou a sua marca como um dos melhores defesas da sua geração. Tido como viril para os adversários, inteligente, com sentido de antecipação e marcação invulgar na avaliação dos técnicos, os mais jovens chamavam-lhe de carrula. 

“Havia aqui, no Braguês, o Torneio do Bucavú, e o papão era o Santo Rosa FC. A outra equipa era o Chuping FC, formado por mais velhos que quando terminassem de jogar, o ambiente era só beber. Num belo dia, o falecido Kiferro disse-me: “vamos formar uma equipa para acabar com a hegemonia desses gajos”, salientou.

Prosseguiu, dizendo que “foi assim que apareceu o Ginguma, Praia, Luís Cão (ambos já falecidos), Santinho, Abreu e Manuel e formamos a nossa equipa, na altura apenas de futebol de sete. A partir daí destronámos todos os adversários e passamos a ser falados no bairro”, contou.  Salviano sublinhou que o grande incentivador para formarem uma equipa de futebol-onze foi o senhor Rui de Jesus, que seria então o primeiro presidente de direcção do clube.

Revelou que, impressionado com a qualidade do futebol praticado e o talento dos executantes, ofereceu o primeiro par de equipamentos.  “Reunimos em casa do Kiferro e depois de várias sugestões, ele disse, porque é que não fica Progresso Associação do Sambizanga. Decidimos então que o nome passaria a ser este, mas para não pensarem que seria apenas uma equipa do Sambila, retirámos o “do”, para não sermos tidos como bairristas”, esclareceu. 

Depois de vários convites para jogos fora e dentro de Luanda, o PAS passou a ser uma marca no futebol nacional e a suscitar curiosidades em certo círculos. Todos queriam saber quem eram realmente estes jovens que brincavam com a bola em campo, mas surgiu o inesperado.  “Volvido algum tempo, aconteceu a intentona do 27 de Maio e iniciou-se a busca aos fraccionistas, o que afectou bastante o Progresso. Bonducho, Jinguma, Kiferro, Adão e o Zé Castelo já tinham sido presos”, salientou.

Como estavam a ser conotados como uma equipa de fraccionistas, foi chamado para tomar conhecimento da triste informação. “O camarada Nicolau da Silva disse-me ‘Salviano, o Progresso tem de acabar’. E eu questionei-o; “Porque camarada Nicolau? Quem participou no fraccionismo não foi o Progresso, mas sim uns elementos que eram militares”, reforçou, triste com a notícia que acabava de receber.

Inconformado reagiu e disse “para acabarem com o Progresso é melhor acabarem também com todos nós. Foi esta resposta que dei. Depois fui ter com o camarada Brito Sozinho e informei-o da intenção que tinham em acabar com o clube. A Secretaria de Estado de Educação Física e Desporto (SEEFD), na altura dirigida pelo camarada Rui Mingas, manifestou também a mesma intenção”, precisou.

Salviano, como bom defesa, saiu em contra-ataque e advertiu: “se acabarem com o Progresso, não vamos mais jogar futebol, porque o clube não tem nada a ver com a intentona do 27 de Maio. Somos apenas atletas e não políticos”.  A expectativa era tanta em relação à sorte dos sambilas que dias depois surgiu a boa nova.

“Qual foi o nosso espanto, recebemos uma mensagem do camarada José Eduardo dos Santos, ‘avisa a esses miúdos que se acabarem com o Progresso, todos vão presos’. Ficamos tremidos e disse ao Praia, ouviste bem o recado. A partir daí decidimos recolher uns tantos jovens, na maioria da equipa Havemos de Voltar e formamos um grupo bastante forte”, frisou.

“Foi assim que fomos à busca do Matateu, Zezinho, Antoninho Maradona, Lino e tantos outros. Tornamos a formar uma equipa forte, mas qual foi o nosso espanto, as equipas aqui do musseque não queriam jogar connosco, porque diziam que éramos clube dos fraccionaistas”, lamentou.

Inimigo do Progresso

O técnico Severino Miranda Cardoso (Semica), na passagem pelo Sambila, deparou-se com situações que em nada abonavam o bom nome e o prestigio que o Progresso granjeara a nível nacional e além fronteiras.  A conhecida frase, ‘o inimigo do Progresso é o próprio Progresso’, num desabafo do categorizado treinador, já falecido, é corroborado por Salviano que viveu momentos tristes no seu clube do coração.

“Ele fazia de tudo para a melhoria das condições, mas a direcção pouco ou nada fazia e por trás diziam que davam as condições, quando, na verdade, era uma pura mentira. Concordo plenamente, e que a sua alma descanse em paz”, disse. Em jeito de remate disse: “hoje somos considerados embaixadores do clube, mas não somos tidos, nem achados. Devíamos ser os conselheiros, mas ninguém fala connosco.

É triste que dirigentes que não saibam a verdadeira história do Progresso Associação Sambizanga”, criticou. “Uma cena caricata aconteceu, num dia destes, aquando da visita de um grupo de alunos com os respectivos professores, que queriam conhecer a verdadeira história do PAS, mas como os dirigentes nunca se interessaram em conhecer a história do clube, à última hora mandaram-me chamar para explicar”.

“Aquecíamos a dançar ao som de uma música”

Diz ser uma pessoa que não gosta de falar apenas de si, mas também do grupo com quem trabalhou ao longo da carreira. A voz pausada e os passos lentos contrastam com a garra e a determinação de outrora. É a demonstração de que a idade não perdoa.  Defende que para uma equipa sem treinador, Augusto Pedro, como o mais velho e experiente, acumulava o papel de capitão com o de técnico.

A qualidade do futebol que praticavam era impressionante. Disse que a magia era tanta que aqueciam ao som de música de aparelhagem.  “O nosso aquecimento era feito com música. Abríamos o aparelho e dançávamos. O Franklim era o mais brincalhão do grupo, viajava sempre com um gravador e tocava uma música. Assim que terminasse, entravamos em campo todos aquecidos”, narrou.

Com o nome do Progresso a fazer furor em várias paragens, “foram surgindo os convites de fora de Luanda, fomos para Benguela, Huíla e Huambo. Todos queriam conhecer a equipa que estava a dar tanta porrada em Luanda”, afirmou.  “Fomos jogar com a Académica do Lobito e, para nosso espanto, o árbitro impressionado com o nosso ‘show’ de bola, não apitava determinadas faltas que sofríamos.

Insurgi-me contra ele e perguntei por quê não assinalava as faltas, e ele limitou-se a responder ‘estou tão impressionado e emocionado. Acho que devia estar na bancada a assistir”.  Salviano revelou um episódio que considerou caricato, naquela altura. Um treinador comprometido com um clube manifestar interesse em treinar o adversário.

“Lembro que vencemos um torneio em Benguela e, no final do jogo, o técnico Ferreira Pinto, encantado com o nosso futebol, foi ao balneário e quis conhecer o nosso treinador. Respondemos que não tínhamos treinador e quem orientava a equipa era o nosso capitão”, destacou. “Ele predispôs-se a orientar a nossa equipa, mas nós questionámos quem lhe vai pagar o salário.

O Progresso não tem dinheiro. E ele perguntou: “vocês não têm direcção?” Esta vossa equipa é uma maravilha. Aconselhou-nos a treinar a sério e disse que muitos de nós tinham valor para jogar em Portugal”.  Fomos ao Lubango jogar com o 14 de Abril, vencemos por 14-0, o Santinho marcou oito golos e todos ficaram encantados.

“Corri o risco de falhar a final”

Considerado como o dérbi do povo, Progresso e lº de Agosto protagonizaram, em tempos idos, os jogos mais emotivos da capital. As feras que emergiam nos respectivos clubes justificavam merecer tal estatuto. 

O número 3 dos Sambilas, camisola que deveria ser retirada e pendurada pela sua fidelidade ao clube, recorda a célebre final do Torneio da Agricultura, disputada no Estádio dos Coqueiros, à noite, um jogo que parou a cidade.  “A nossa grande reaparição em Luanda aconteceu, em 1978, no jogo frente ao 1º de Agosto, na final do Torneio da Agricultura, em que empatámos 3-3, numa altura em que estávamos a perder, por 3-2, e poucos acreditavam no empate, com golo de Praia”, recordou.

“Sempre acreditamos nas nossas capacidades, embora o 1º de Agosto fosse uma selecção porque foram à busca dos melhores da praça nacional. Nós éramos um grupo de jovens do bairro, formados por Eduardo André, Augusto Pedro, Praia, Santinho, Santo António, Salviano, Jaime, Luís Cão, enfim éramos também uma nata de bons jogadores”, avaliou.

Em risco de não jogar, por estar febril, recorda que recebeu o incentivo dos colegas, com destaque para Santo António. “Ele veio ter comigo e disse-me: “Salviano joga mesmo assim porque a tua presença em campo é muito importante, vai intimidar um pouco os avançados”. Perguntei-lhe: “e se eu morrer?” Respondeu-me: “não vais morrer”.

Admitiu que a equipa em momento algum sentiu a pressão do jogo. “Ao longo do percurso fomos todos descontraídos a contar algumas anedotas. Quando chegámos no estádio a minha febre passou e a motivação do grupo foi ainda maior”, revelou.  Com um brilho nos olhos descreveu o lance do empate como se ainda tivesse a viver este momento inesquecível.

“O Praia na marcação de uma falta para a baliza em direcção à sede do Sporting de Luanda, enganou o Napoleão com um remate directo e não cruzado. As pessoas que estavam na Mutamba e Kinaxixi, regressaram a correr. Foi um momento ímpar”, realçou.  “Na marcação de grandes penalidades o 1º de Agosto foi mais feliz e venceu o jogo. Deixamos o Estádio dos Coqueiros de cabeça erguida, pois tinhamos travados uma grande equipa, com estatuto de selecção”, enalteceu.

“Jornadas Angola-Cuba marcaram a minha vida”

A prática e a convivência da vida mostra-nos que a primeira vez em tudo, para qualquer ser humano, é marcante. Salviano aponta a sua integração no leque dos convocados para a primeira Selecção de Angola, no pós- independência, como o momento mais alto da sua vida desportiva.  Foi no inesquecível ano de 1976, nos conhecidos jogos ‘Angola-Cuba’, que ao lado de nomes sonantes na praça futebolística nacional, entrou pela porta principal, jogando a titular nas três partidas de confraternização.

“Fiz muito boas exibições pela Selecção Nacional, mas as célebres jornadas Angola-Cuba continuam na minha mente. Desculpem a expressão, mas na altura era um matumbo desportivo, um atleta sem o ABC do futebol dos grandes treinadores e oriundo do bairro”, disse orgulhoso. Uma palavra de apreço para Rui Clington, na altura treinador do Progresso e fazia parte da equipa técnica nacional.

“Todos perguntavam quem é este miúdo que veio do bairro, pois era um desconhecido. Admiro até hoje a sua coragem. E como prenda, não o defraudei e correspondi”, reconheceu.  “Considero ser o meu melhor jogo na minha carreira, embora ter feitos muitos outros. Mas este pela sua especificidade e o momento que aconteceu é marcante sem sombras de dúvidas”, confessou.

Jurei fidelidade ao Progresso

Man Tay revelou que, ao contrário daquilo que muito boa gente sabe, quem deveria ter ido primeiro ao Petro, “era eu e não o Santo António. O camarada Carlos Teixeira tudo fez para persuadir-me a ir jogar no Petro, mas a minha exigência foi apenas que me construíssem uma casa e nada mais. E tudo ficou apenas pela intenção, porque eles não reagiram”, explicou.

Fracassada a possibilidade de representar os tricolores foi aconselhado pelo sr. Pascoal, um antigo dirigente do clube, a não mais pensar abandonar o Progresso. Pois ele trataria de lhe dar o dinheiro para construir a sua casa.  “Quando ele tomou conhecimento, falou comigo e pediu para que não saísse do clube, pois ele iria resolver o meu problema da casa. ‘

Vou para a minha terra, no Golungo Alto, à busca de dinheiro para construíres a casa, por isso podes manter-te no clube’, aguardei ansioso”, comentou.
Salviano afirmou que em memória a este dirigente prometeu fidelidade aos sambilas, até ao fim da carreira. “No seu regresso de Golungo Alto sofreu um acidente e faleceu.

Chorei tanto a pensar no senhor que assumiu resolver o meu problema da casa e em sua memória decidi, não sair nunca do Progresso”, recordou.
Reconheceu que sentiu muito a saída do Santo António, mas não teve alternativa se não conformar-se. “Antes de ir para o Petro falou comigo, e dei-lhe a maior força e disse-lhe para não olhar para trás: “boa sorte e vamos ser sempre amigos”.

“O Santo António era mais duro do que eu, e, quando fosse com o 1º de Agosto, na brincadeira, ameaçava afiar os pitões, eles têm que sentir-nos. Em campo, o nosso lema era: “não podes levar constantemente cartão amarelo e se tiveres de levar tens de dar mesmo a sério para o homem sair”, avançou.
Recordou que nos dias em que um tivesse muita cerimónia o outro impunha ordem.

“Às vezes eu dizia, você mata eu enterro. Ou seja, quando eu for lá é para tirar o avançado e ele não voltar mais. Havia jogos em que trocávamos de posição. Defendíamos que os avançados não podiam dar-nos muito trabalho”.

Duas viagens abortadas para Portugal

Em duas ocasiões, num espaço de dois meses, Salviano viu a oportunidade de mostrar o talento em Portugal a fugir-lhe das mãos. Admite que a sua vida teria outro rumo se uma das viagens se concretizasse.  Recorda que chorou amargamente, mas não teve outra solução se não conformar-se, levantar a cabeça e seguir em frente. “Trabalhava na Textang de manhã, à tarde treinava na equipa da empresa e à noite ia para a escola. Era muito cansativo, mas não tinha outra alternativa”, precisou. 

Com17 anos, o seu talento despertou a atenção das pessoas que o acompanhavam nos treinos e jogos. Foi convocado para selecção de trabalhadores que disputaria um torneio em Portugal, antevendo assim um novo rumo na sua vida.  “Quando estava tudo a postos para a viagem, fui alistado para o serviço militar e mandaram-me para o Leste.

Os dirigentes, surpreendidos, ainda tentaram localizar-me para evitar que fosse para tropa, mas sem sucesso”, recordou com uma lágrima no canto do olho.  Ainda assim, os responsáveis do clube inconformados, “mandaram um telegrama para o Leste a pedirem o meu regresso. O Comandante que recebeu-nos, perguntou quem era o Salviano e questionou-me se eu era tão bom assim para justificar a pressão que estava a ser exercida sobre si a partir de Luanda”, contou.

Revelou que, sem demora e para ter a certeza das suas qualidades como futebolista, no dia seguinte, o Comandante organizou um jogo.  “Deu-me um par de chuteiras e a minha equipa venceu por 4-2. Dei um show de bola e marquei dois golos, na altura jogava a médio. Ele ficou encantado e mandou logo em seguida um telegrama para a direcção da Académica de Coimbra em Portugal”, lembrou sorridente.

“Dentro de dias estarei aí de férias e vou trazer um grande jogador para fazer testes. Criadas todas as condições para regressarmos a Luanda e depois viajar para Lisboa, surge uma delegação das tropas do MPLA, dirigida pelos Comandantes Ngongo e o Orlogue, este último já falecido, para iniciarem as conversações com a tropa portuguesa”.

Perfil

Nome
Salviano Ferreira Magalhães
Data de Nascimento
19-4-1951
Estado Civil
Solteiro
Filhos
Oito
Clube
Progresso Sambizanga
Tempos livres
Jogar sueca e ver jogos das velhas guardas
Bebida
Vinho
Internacionalizações
18
Virtude
Ser amigo dos amigos
Defeito
Ter a comida na mesa à hora