As autoridades no poder no Sudão e os rebeldes colocaram ontem ponto final há 17 anos de guerra, ao assinarem um acordo de paz histórico, mas analistas internacionais já questionam a capacidade financeira e política para o Governo poder colocá-lo em prática.
Segundo a AFP, que não adianta pormenores sobre o modo como a cerimónia decorreu, o acto teve lugar em Juba, a capital do vizinho Sudão do Sul, cujos líderes lutaram durante 40 anos contra o poder em Cartum, antes de conquistarem a independência em 2011, no final de uma guerra que deixou dois milhões de mortos e quatro milhões de desalojados.
As autoridades de Cartum, que actualmente integram militares e civis, na sequência da revolta popular que pôs fim à ditadura de 30 anos de Omar al-Bashir, em Abril de 2019, fizeram da paz com os rebeldes uma das suas principais prioridades. “Este foi um dia histórico. Esperamos que a assinatura ponha fim aos combates para sempre e abra o caminho ao desenvolvimento”, disse, em declarações à AFP, Souleiman al-Dabailo, membro da comissão de paz do Governo sudanês.
“O acordo foi assinado por todos os movimentos rebeldes, excepto dois, e esperamos que a assinatura os encoraje a se juntarem ao processo, porque o documento aborda os problemas de forma realista e, se implementado à letra, conduzirá à paz”, acrescentou Dabailo. O texto foi assinado pelo poder em Cartum e, no lado rebelde, pela Frente Revolucionária do Sudão (RSF, na sigla em inglês), uma aliança de cinco grupos rebeldes e quatro movimentos políticos das regiões de Darfur (Oeste), Kordofan do Sul (Sul) e Nilo Azul (Sul).
Duas facções armadas, o Movimento de Libertação do Sudão (SLM), uma filial de Abdelwahid Nour em Darfur, e a SPLA-Norte, de Abdelaziz al-Hilu, no Kordofan do Sul e Nilo Azul, recusaram-se a assinar o acordo de paz. A guerra em Darfur fez, pelo menos, 300 mil mortos e provocou a deslocação de 2,5 milhões de pessoas, desde o seu início, em 2003, de acordo com a ONU, e afectou cerca de um milhão de pessoas nas outras duas regiões.
O acordo estende-se por oito protocolos: propriedade da terra, justiça transitória, reparações e compensações, desenvolvimento do sector nómada e pastorício, partilha de riqueza, partilha de poder e regresso dos refugiados e pessoas deslocadas. Também estipula o eventual desmantelamento de grupos armados e a integração dos seus efectivos no exército, que deve ser representativo de todas as componentes do povo sudanês.
“Este dia marca o sucesso da nossa revolução e da nossa luta contra o antigo regime. O acordo ataca as raízes da crise e abre o caminho para a democracia”, disse à AFP o porta-voz da FRS, Oussama Said. Para Said, o acordo respalda as palavras de ordem da revolução, “liberdade, paz e justiça”, e “leva a julgamento aqueles que cometeram crimes contra os sudaneses”.
Mas o caminho está cheio de obstáculos, considerou Osman Mirghani, editor do diário sudanês Al Tayyar. O acordo prevê a partilha do poder entre as autoridades e os signatários rebeldes, mas “o que acontece com os não signatários”, questionou o jornalista, citado pela AFP. “O acordo vai ser muito caro”, disse, por outro lado, o investigador sudanês Jean-Baptiste Galoppin.
“Sem ajuda externa, o Governo não será capaz de o financiar, porque a economia está em colapso. A prioridade financeira será provavelmente a integração de milhares de combatentes, à custa da sua desmobilização ou compensação das vítimas dos conflitos”, acrescentou. “Existe o risco de uma grande parte das provisões no acordo permanecerem letra morta. Mas não é essa a questão.
O que está em jogo é uma reorganização do equilíbrio nacional de poder entre as regiões”, acrescentou o investigador. As forças militares conjuntas, reunindo efectivos das forças armadas governamentais e dos cinco grupos rebeldes que assinaram a carta de intenções de paz no passado dia 31 de Agosto, deveriam ser treinadas e em seguida destacadas, mas, ao invés, estão a abandonar os centros de treino e foram concentradas em várias regiões do país.
Preços duplicaram
Entretanto, o preço dos alimentos aumentou cerca de 200% num ano no Sudão, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o que antecipa um quadro sombrio no país, atingido pela inflação, a desvalorização da moeda nacional e inundações.
“Os preços dos alimentos locais aumentaram quase 200% em relação a 2019, segundo o Programa Alimentar Mundial (PAM), e a inflação levou a um aumento do preço dos alimentos básicos, como o sorgo, que subiu 240% num ano”, frisou ontem o gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (Ocha), citado pela Reuters.
De acordo com o relatório da organização, “os preços dos alimentos continuarão elevados até que a produção actual chegue ao mercado neste Outono”.
A situação é susceptível de “prolongar o elevado nível de insegurança alimentar, um dos mais altos numa década” no Sudão, acrescentou o Ocha. Também os custos dos serviços de saúde quase duplicaram, aumentando 90% durante o mesmo período.
A situação económica é catastrófica, com uma inflação anual de 170% em Agosto, agravada pela escassez de combustível, alimentos, medicamentos e produtos de higiene. A constante desvalorização da libra sudanesa em relação ao dólar, que passou de 70 para 230 libras sudanesas num ano, reduziu o poder de compra num país onde 90% das famílias gasta 65% do seu rendimento em alimentos.
“São as populações mais vulneráveis, empobrecidas e marginalizadas do país que são mais duramente atingidas”, acentua o relatório. Segundo o Ocha, a situação “aumenta a fome, reduz o acesso à educação, à saúde e a outros serviços essenciais”. Cerca de 9,6 milhões de pessoas, um quarto da população, estão “gravemente inseguras do ponto de vista alimentar”, alerta a organização humanitária.
“Espera-se que a redução planeada do Governo nos subsídios aos combustíveis aumente a inflação e assim atinja ainda mais fortemente as famílias mais vulneráveis”, acrescentou o Ocha. As cheias no país foram mais um rude golpe, afectando 860 mil pessoas, segundo o último relatório ontem divulgado, embora as águas do Nilo tenham começado a descer. As inundações mataram 138 pessoas, segundo a Protecção Civil, enquanto 172 mil casas foram destruídas ou danificadas desde Julho.
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