Cultura

Memória do cantor e compositor Jivago: Ritmo das narrativas de um contador de histórias do semba

Jomo Fortunato

Jornalista

Embora tenha deixado uma escassa discografia, CD “Kiauaba”, 2008, e esparsas colaborações, LP, “Kenieke Tuene” (Nós somos assim), dos “Kiezos”, 1992, com a participação vocal de Artur Adriano, Jivago foi um narrador, enquanto cantor e compositor, das típicas ocorrências do quotidiano dos musseques luandenses, transformando em canções as situações mais hilariantes, como em “Avó Teté”, que se arrisca a partilhar as farras com jovens, e a caricatura dos conflitos amorosos, plasmada no tema, “Ramiro”, na verdade, dois incontornáveis sucessos da sua carreira.

05/10/2020  Última atualização 14H46
Cedida

Jivago foi um cronista do seu tempo e repórter do pitoresco luandense, as suas canções revelam um sujeito interventivo, perante situações de aparente pendor humorístico mas que, na verdade, ocultam motivações sociológicas profundas. Depreende-se na mensagem dos seus textos, a luta pela sobrevivência, sendo o recurso aos ambientes de diversão, um contraponto à situação de pobreza dos estratos sociais mais vulneráveis dos musseques de Luanda.

Múltiplo e versátil desde tenra idade, Jivago cantava fado, animando os portugueses em vários espaços de lazer na época colonial, este facto foi revelado pelos seus amigos de infância no “Show da Zimbo”, programa de entretenimento da Televisão, TV Zimbo, exibido no dia 3 de Outubro de 2020.

Filho de Gonçalves António e de Domingas Francisco, Adão Gonçalves, ou simplesmente Jivago, nasceu em Caxito, província de Luanda, no dia 1 de Abril de 1955 e começou a cantar no conjunto, “Bentiaba Show”, um pequeno grupo musical de antigos reclusos, formado em 1977, na cidade do Namibe, num altura em que estava preso em São Nicolau, Bentiaba, na sequência dos trágicos acontecimentos políticos do 27 de Maio de 1977.

Fenomenal
O grande impulso da carreira de Jivago, ocorreu com a sua integração no agrupamento Fenomenal, em 1983, convidado pelo falecido cantor e compositor, Zecax, onde foi recebido pelo guitarrista, Hildebrando Cunha, actualmente no conjunto os “Kiezos”. Na verdade, a primeira versão do sucesso, “Avó Teté”, de Jivago, foi gravada nos Estúdios da RNA, Rádio Nacional de Angola, em 1987, com o agrupamento Fenomenal e participaram os instrumentistas, Hildebrando Cunha, Brando, viola solo, Dulce Trindade, viola baixo, Verry Inácio, percussão, Toy Batera, bateria, Didi (viola ritmo), e Paulo Pakas, no teclado.

Kiauaba
Jivago assinou exemplares do seu único CD, “Kiauaba”, em acto de lançamento ocorrido no dia 23 de Março de 2008, no Cine Atlântico, em Luanda. Em “Kiauaba”, um disco com onze temas com produção iniciada em 2002, Jivago percorre os géneros semba, rumba, bolero, rebita e kazukuta, e regravou, com novos arranjos, os seus dois sucessos, "Ramiro" e “Avó Teté”. A base instrumental, de acordo com Jivago, foi produzida pelos integrantes da Banda Chamavo, Chico Santos, percussão, Lito Graça, bateria, e Carlitos Tchiemba, baixo, Paulo Paka, teclas, Galiano Neto, percussão, Israel, viola ritmo, Chalita, bateria, Joãozinho Morgado, percussão, e Beth Tavira e Gigi, duas coristas convidadas da Banda Movimento. Em “Kiauaba”, podemos ouvir as seguintes faixas, “Ngana burguês”, “Vou morar mais aonde”, “SuetaKuná”, “LumingaDyá Chico”, “Ramiro”, “Choramos Gaby”, “Mano António”, “Avó Teté”, “Katulahipotakumessu”, “Ndikuete Ongava” e “Choramos Gaby”, um tema instrumental.

Bonga
Em Dezembro de 2019, Jivago foi convidado a participar na primeira parte de um grande concerto do Bonga, Barceló de Carvalho, pelo impacto dos seus grandes sucessos junto do público. O espectáculo foi realizado no âmbito do projecto “Muzongué da Tradição”, para fechar o ano da programação do Centro Cultural e Recreativo Kilamba, em que participaram os cantores e compositores Lulas da Paixão e Massano Júnior.

Kiezos
Jivago participou no LP, “Kenieke Tuene” (Nós somos assim), com o conjunto os “Kiezos”, em 1992, com o cantor e compositor Artur Adriano. No LP, estão alinhados os temas, “Quem deve paga”, interpretação de Juventino Arcanjo e composição de Fausto Lemos, “Mendonça”, Jivago, “Milhorró”, com novos arranjos interpretado pelo Juventino (falecido) com arranjos de Hildebrando Cunha, “Soba Kambimbi”, com voz de Artur Adriano (falecido), “Boa disposição”, instrumental de Hildebrando Cunha, “Uexilekambadiami”, interpretação de Artur Adriano, “Princesa Rita”, Adolfo Coelho e Inácio, “João Botelho”, lamento de um amigo de cela no Bentiaba, tema interpretado por Jivago. O LP, “KeniekeTuene”, contou com a participação dos instrumentistas, Jorge Ferradosa (baixo), Victor Kumbo (bateria), Anselmo de Sousa Arcanjo, Marito, (guitarra), Adolfo Coelho, Fausto Lemos e Joãozinho Morgado (percussão), Gegé Faria (guitarra ritmo), Hugo da Mota Viega (Saxofone), Hildebrando Cunha (guitarra solo), Paulo Pakas (sintetizadores), NFuloKanda Manuel (trombone), e Yassaka Daniel (trompete). Jivago participou ainda no CD, “Kiezos, em homenagem ao Vate Costa”,2013, com Alice Ferreira, Lulas da Paixão, Augusto Chacaiá, e Zecax.

Homenagem
Jivago foi homenageado pelos seus sucessos musicais, em Agosto de 2018, no âmbito dos “Duetos N’Avenida”, um projecto de valorização da Música Popular Angolana, concebido pela promotora de eventos, “Zona Jovem Produções”. A homenagem aconteceu na “Casa 70”, e, na ocasião, Jivago pronunciou as seguintes palavras, “Eu pensei que fosse morrer sem ser homenageado”. Jivago cantaria o tema, “Ramiro”, interpretado por Mister Kim, na última edição do “Top dos mais queridos”, realizada no dia 3 de Outubro, sexta-feira última, num desfile de setenta canções, gravadas nos estúdios, CT1 da Rádio Nacional de Angola (RNA).

Nome
O nome artístico, Jivago, foi inspirado no filme, Doutor Jivago, 1965, baseado no romance de Boris Pasternak, do realizador, David Lean. O cantor e compositor gostava muito do enredo da película, que narrava aos familiares e amigos do seu bairro. No filme, Dr. Jivago é um médico e poeta que inicialmente apoia a revolução Russa, mas, aos poucos, se desilude com o socialismo e se divide entre dois amores, a esposa Tânia e a bela do povo, Lara. Conta o guitarrista, Hildebrado Cunha, que Adão Gonçalves, o nosso Jivago, vestia-se de preto à semelhança do protagonista do filme. Com base nesta afeição do cantor pelo filme, Artur Arriscado, falecido sonorizador da Rádio Nacional de Angola (RNA), substituiu, o nome, Adão Gonçalves, por Jivago, que considerou mais artístico.

Morte
Embora a notícia da morte do Jivago tenha surgido de forma inesperada, na classe musical, em particular, e na sociedade angolana, em geral, a verdade é que já circulava a informação na comunicação social angolana, uma semana antes da sua morte, que Jivago , sessenta e seis anos, estava internado no Hospital do Prenda, com um quadro clínico “estável que inspirava cuidados delicados”. Soube-se depois, que a fatídica ocorrência aconteceu no dia 1 de Outubro de 2020.


Hildebrando Cunha enaltece a dimensão artística de Jivago

Hildebrando Cunha, Brando, guitarrista ecléctico e um dos mais importantes da história da Música Popular Angolana, gravou dois clássicos da canção revolucionária, “Valódia” e “Massacres de Kifangondo”, da autoria do cantor e compositor Santocas. Brando fez o seguinte depoimento sobre Jivago, como amigo e fundador do agrupamento “Fenomenal”: “Provavelmente, à excepção do Zecax e outros amigos do bairro Marçal, todos nós desconhecíamos as qualidades do Jivago, como cantor e compositor. Na verdade, tive o privilégio de ter contacto, directo, com o Jivago e sabia que ele ainda tinha muito para dar como compositor, sobretudo de textos escritos em Kimbundo. Neste sentido, ele gravaria muitos mais temas, incluindo “Lamentos” de cantores e compositores falecidos. O tema, “Candonga”, por exemplo, foi gravado pelo Zecax e “Patrícia Faria”, no seu último CD. O Jivago possuía qualidades morais muito raras e respeitava os seus amigos. Tenho a certeza do seu talento como um grande compositor, uma figura que marcará a história da Música Popular Angolana. É possível estabelecer, sem medo de errar, um paralelo do seu perfil com o do Bangão, enquanto contador de histórias dos musseques de Luanda. Importa realçar que a primeira versão do tema, “Avó Teté”, as outras versões foram posteriores, foi gravada com o agrupamento “Fenomenal”, em que eu era guitarrista solo, portanto sei do que estou a falar. Sempre que o assunto for a formação do agrupamento “Fenomenal”, tenho a certeza que vou me recordar do Jivago. Paz à sua alma”.

 

 

Especial