Entrevista

António dos Santos: “Ensino da arte tem especificidades técnicas e pedagógicas”

O gravurista António Feliciano Dias dos Santos “Kidá” completa 40 anos dedicados à criação e ao ensino da arte. Entre outras funções que desempenhou, foi director nacional de Formação Artística do então Ministério da Cultura. Em entrevista ao Jornal de Angola, “Kidá” fala do seu percurso artístico, das suas conquistas e decepções. O artista considera o facto de lhe ter sido atribuído em 2018 o Prémio Nacional de Cultura e Artes “o maior reconhecimento do Estado angolano” pelo contributo que prestou, e ainda presta, à produção, promoção e divulgação das artes plásticas

24/10/2020  Última atualização 22H00
© Fotografia por: DR
Como descreveria o estado actual das artes plásticas no país? 

Repare que, e não obstante ser significativa a produção de obras de artes plásticas, encontram-se dificuldades a nível da divulgação, por falta de espaços privilegiados (galerias de arte) para se fazerem exposições de arte com a dignidade merecida. Os artistas produzem, mas o mercado local não absorve, sobretudo, por duas grandes razões: o fraco poder de compra e a falta de educação estética do público. Essa anomalia é extensiva às instituições públicas e privadas que deviam ter sensibilidade no apoio aos profissionais de arte. Quanto à gravura artística, não difere tanto em termos de divulgação relativamente às outras vertentes e matizes artísticas. Precisa de maior apoio para a sua permanente produção, divulgação e valorização.

A gravura artística tem, em certa medida, pouca expressão ou aceitação no seio das novas gerações. Por quê?

Isso prende-se com a falsa ideia que se criou, segundo a qual essa disciplina não fazia, até então, parte das demais disciplinas que eram premiadas, pelo que os autores, sobretudo os emergentes, preferiam seguir a pintura ou a escultura, por serem mais destacadas no mosaico da plasticidade angolana. Por outro lado, fazia falta o ensino dessa disciplina nas escolas de arte. Esse ensino actualmente já não é feito com o mesmo rigor pedagógico, em igualdade com as demais disciplinas de artes plásticas. Essa disciplina passou a fazer parte do leque de disciplinas artísticas a serem institucionalmente premiadas. O quadro é muito mais animador, pois a gravura passou a ser uma disciplina de especialização no Complexo das Escolas de Arte (CEARTE), instituição escolar de nível Médio do Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente.

O que motiva alguém a continuar a fazer a arte da gravura? Tem muito a ver com o gosto pela disciplina em apreço?

Exactamente, porque a sua feitura, do ponto de vista técnico, difere da execução das demais disciplinas artísticas. Importa sublinhar que para além da gravura encontramos, no mosaico plástico, outras disciplinas como a pintura, escultura, cerâmica, tecelagem, desenho, banda desenhada e fotografia. No meu caso, entrei para o mundo das artes plásticas por via do desenho (que é a base que suporta qualquer expressão plástica), e posteriormente, fiz muitos outros cursos, como de gravura, pintura, cerâmica e design gráfico. Contudo, tenho na gravura o meu perfil de apresentação artística, pois assumi essa disciplina pelo seu rigor técnico. Ela obedece a três fases principais, para a sua feitura: gravação (num suporte de madeira/xilogravura, de linóleo/linóleogravura, em metal/calcografia, em pedra/litografia e demais suportes), tintagem e impressão gráfica.
 
Pela gravura ganhou espaço e conquistou o seu lugar na arte da gravura?

É verdade. Por tanto gostar da disciplina, nunca mais me afastei e, com as goivas, produzi centenas de matrizes, feitas, fundamentalmente, em xilogravura e linóleogravura. Pela gravura, ganhei o meu espaço criativo e conquistei o meu lugar, graças ao aprendizado que tive com grandes mestres, como Viteix. É longa a caminhada, iniciada em 1980, completando 40 anos de gravura artística este ano. Estava a preparar a minha exposição retrospectiva com vista a assinalar a trajectória artística, infelizmente a Covid-19 veio adiar o meu projecto.
 
Qual é o legado que transmite e partilha com as novas gerações?

O legado que sempre transmito aos jovens artistas é o de continuarem a valorizar a arte da gravura, herdada dos ancestrais, que, ao longo de milhares de anos, já faziam gravuras rupestres, usando materiais pontiagudos. Portanto, é nosso dever continuar a honrar esse valor cultural histórico, transmitindo às gerações vindouras o legado herdado. É nosso dever fazê-lo por via da pedagogia, para uma valorização da gravura.
 
Temos muitos talentos a emergirem no país?

Sou suspeito em aferir se há ou não muito bons talentos em gravura artística. Como se sabe, ao longo de toda a minha vida artística, boa parte dela, dediquei-me ao ensino, à formação artística. Nesse contexto, ajudei a formar centenas de alunos, alguns dos quais com inclinação também assumida em dar continuidade à produção e divulgação da gravura artística. Saber que o futuro da disciplina de gravura artística no país está entregue em boas mãos, e tem continuidade assegurada, é muito importante. Falar de referências desses talentos emergentes não se afigura tarefa fácil. Posso citar alguns nomes que fazem gravura com boa qualidade técnica, como José Ventura, Paulo Vemba, Jocelino Gimbi, Lino Damião, Marques Correia, Josélia e o SD.
 
Como deveria funcionar a formação artística em Angola?

Durante muito tempo, fui professor de arte e director nacional de Formação Artística do então Ministério da Cultura. Devo dizer o seguinte: em primeiro lugar, devemos sublinhar que em termos de infra-estruturas artísticas nada herdamos do período colonial. Ao longo de muitos anos, já no pós-independência, trabalhamos em condições bastante adversas à formação artística, sem condições técnicas, materiais e humanas. Mas formamos muitos jovens. Enquanto directora nacional de Formação Artística e Cultural, Irene Guerra Marques foi uma das pessoas que muito fez na dinamização deste sector. O surgimento do Complexo das Escolas de Arte (CEARTE), instituição que congrega no mesmo espaço as Escolas de Artes Visuais e Plásticas, de Dança, de Música e de Teatro e Cinema, inaugurada em 2015, veio dar maior dignidade aos professores e estudantes. Técnicos e especialistas da área artística como Jorge Gumbe, Ana Clara Guerra Marques, Francisco Van-Dúnem, Gaspar Neto, Nelson Augusto, Sakaneno de Deus, Zola Ndonga, o malogrado Norberto Mantan'yadi, juntamente com técnicos do Ministério da Educação e professores especialistas cubanos, tudo fizeram para termos no país um subsistema de Educação Artística, que garantisse e respeitasse o ciclo de Formação Artística (Elementar, Médio e Superior), sem sucesso. Havia um programa estruturante para a expansão gradual do ensino artístico ao nível de todo o país, mas infelizmente o projecto não funcionou. Pessoalmente, confesso, pedi a minha demissão com sentimento de frustração. Como técnico, augurava um ensino artístico muito mais promissor para o país, o que não aconteceu.
 
A arte deveria ser aprendida desde o ensino elementar?

Obviamente que a arte da gravura deve ser ensinada, preferencialmente, no ensino artístico. Aliás, assim deve ser em relação às demais disciplinas artísticas. Seja em artes visuais e plásticas, dança, música ou teatro. De outro modo, definitivamente, não é funcional. O ensino artístico tem especificidades técnicas e pedagógicas que devem ser rigorosamente cumpridas. As pessoas têm muita dificuldade para entender isso.
Com a vasta experiência, prémios e distinções adquiridos ao longo dos anos, sente que ainda tem muito para dar às artes plásticas?
É claro que com a experiência adquirida ao longo desse meu percurso artístico ainda tenho muito para continuar a transmitir, em termos artísticos, aos mais jovens. Os prémios e distinções podem servir de estímulo para os jovens artistas emergentes. É óbvio que ninguém trabalha para prémios, mas em determinada altura são até bem vindos. Trata-se de reconhecimento.
 
Não se reformou muito cedo, quando o país produz tão poucos entendidos na arte da gravura?

Me reformei cedo? Até que não! Cumpri com o estipulado na Lei Laboral Administrativa. É preciso não confundir as coisas. Me reformei da carreira administrativa. No campo artístico estou sempre presente, até onde as minhas forças permitirem. E a gravura vai continuar a seguir o seu rumo, pois o testemunho foi devidamente dado aos jovens artistas emergentes. A melhor recompensa foi e continua a ser o reconhecimento e o carinho dos antigos estudantes de arte, que connosco partilharam salas de aulas durante muitos anos. Essa é a melhor recompensa de que me orgulho. Formar não é tarefa fácil, mas é algo de muita honra.
 
Em 1987 ganhou o primeiro Prémio Nacional de Gravura, instituído pela UNAP. Em 1999 ganhou o Prémio Cidade de Luanda de Artes Plásticas/Gravura. Essas distinções deveriam continuar?

Os prémios existem em qualquer sociedade. Eles servem para incentivar os que mais se destacam nas distintas áreas do saber, incluindo as culturais e artísticas. Daí que defendo, sim, que tanto o Prémio Nacional de Gravura, instituído pela UNAP em 1987 (do qual sou até hoje o único vencedor), bem como o Prémio Cidade de Luanda sejam repostos com vista a incentivar os criadores artísticos. A distinção que me foi feita em 2018, ao receber o Prémio Nacional de Cultura e Artes, creio ser, de facto, o maior reconhecimento do Estado pelo contributo que prestei, e ainda presto, na produção, promoção e divulgação das artes plásticas dentro e fora do país.


Perfil

António Feliciano Dias dos Santos (Kidá) nasceu aos 25 de Setembro de 1961, na aldeia de Sassa-Cária/Dande, na província do Bengo. Filho de João Dias dos Santos (enfermeiro) e de Maria Manuel António (doméstica), fez o ensino primário em Caxito (1968/1972) e o secundário em Luanda (1982/1988). Entre os vários cursos que fez constam os de Gravura, 1980, UNAP, Luanda, Angola; Operador Ceramista, 1992, Escola Profissional de Ofícios Artísticos (EPOA), Vila Nova de Cerveira, Portugal; e de Design Gráfico, 1995, EPOA, V.N. Cerveira, Portugal.

Tem a licenciatura em Sociologia, 2011, ISCED/Luanda. Participou em várias exposições de arte dentro e fora do país.
Foi distinguido com Prémio Nacional de Gravura, UNAP/87; Prémio Cidade de Luanda/Gravura, 1999; e o Prémio Nacional de Cultura e Artes, 2018. Venceu o concurso para criação da logomarca de Angola na Expo-Zaragoza, 2008. Foi comissário (curador) do Salão Internacional de Exposições de Arte "Siexpo” 2002/2005 e director nacional de Formação Artística do Ministério da Cultura, 2015/2017. Depois de uma carreira de 40 anos como professor de Artes Plásticas está reformado desde 2017.