Opinião

Desafios da Administração Pública angolana

No início do ano transacto, foi aprovado, por Decreto Presidencial n.º 105/19, de 29 de Março, o Roteiro para a Reforma do Estado, cujos propósitos são: articular a adequação dos órgãos do Estado e da Administração Pública, a novos critérios e metodologias de governação, bem como agregar elementos no processo, desde os que definem o caminho a trilhar até a forma de os operacionalizar.

31/10/2020  Última atualização 13H55
Dos sete grandes eixos estruturantes, que suportam o Roteiro, incidimos a análise no primeiro que se debruça sobre a Reforma na Administração Pública. Tal eixo, contém sete principais domínios, dentre os quais o desenvolvimento organizacional da Administração Pública directa e indirecta e a valorização dos recursos humanos e dos serviços públicos, para mencionar apenas dois exemplos.

O aludido roteiro teve como referência o diagnóstico das reformas anteriores. No caso da Administração Pública, a sua principal referência é o Programa de Reforma Administrativa, PREA, lançado em 2000, que emergiu da necessidade de sistematizar e desenvolver, através de um documento estratégico, um plano que traduzisse a política de reforma institucional e modernização administrativa que o Governo vinha implementando, desde o início da década de noventa.

Entre 2010 a 2016, o PREA foi sendo balanceado, tendo sido considerado globalmente positivo. Entretanto, se as suas linhas fundamentais, objectivos e tarefas, bem como os seus subprogramas e projectos foram de aceitáveis qualidades concepcionais, impõe-se-nos reflectir, para efeitos correctivos, e sem prejuízo nos avanços globais obtidos até que ponto os seus propósitos terão sido amplamente alcançados, focalizando o nosso exercício nas medidas que terão resultado ineficazes e as lacunas que ficaram por se preencher nesse percurso. 

Ao longo dos anos, temos notado um défice no processo de monitorização do programa de reforma. Agregamos a esse défice a falta de diagnóstico ou pesquisa da cultura e clima organizacional em todo o sistema da Administração Pública, que nos permitiria  buscar uma avaliação mais realística, por via dos funcionários públicos, ajudando-nos a identificar com maior clareza as fraquezas do programa.

Outro procedimento, que merece correcção, tem sido a contínua sobreposição do domínio da organização ou estruturação da Administração Pública, em detrimento do domínio da gestão de recursos humanos por parte dos vários actores que conduzem as reformas, quando o ideal seria a adopção de uma posição de equilíbrio. Um dos exemplos, que reforça a nossa afirmação, é a não inclusão na agenda do actual Roteiro da Reforma na Administração Pública  das sessões de esclarecimentos preliminares aos funcionários públicos para a dissipação de eventuais inquietações psicológicas e melhor compreensão das razões, necessidade e fins da implementação das reformas e, sobretudo, os efeitos do redimensionamento da macroestrutura da Administração Pública e outras acções, não menos importantes do roteiro. Tal postura reduz os funcionários públicos à condição de objectos da reforma, em vez de sujeitos desse processo. 

A decisão tomada, há meses, de canalizar para o sector social, os milhões de kwanzas poupados  com as extinções de certos departamentos ministeriais e Institutos Públicos, constitui outro exemplo que sustenta a asserção da subalternização dos RH. O ideal seria que estes valores se destinassem, em primeiro lugar, ao suprimento de um conjunto de pendentes, associados às despesas com pessoal na Administração Pública (como o corte das horas extras, por exemplo), há alguns anos congeladas, em decorrência da crise financeira do país. Após estes acertos de contas, admitir-se-ia que os valores remanescentes fossem destinados ao sector social.

Uma das principais razões das posições de subalternização, acima citada, decorre, em nossa perspectiva, do facto de a Administração Pública angolana ainda não ter quebrado os padrões da gestão tradicionais dos RH, actuando, na maior parte das vezes, no cumprimento de rotinas administrativas e burocráticas, como a elaboração de efectividade, preparação e pagamento da remunerações e benefícios, avaliação de desempenho, etc. 

Torna-se, pois, imprescindível a adopção de uma política de RH que alinhe as necessidades estratégicas da administração pública com o desenvolvimento e necessidade dos funcionários públicos e agentes administrativos. Olhar para uma visão estratégica a gestão de RH é enquadrar o capital humano na condição de um parceiro estratégico, resultando daí maior produtividade e qualidade. Sem uma aposta estratégica no capital humano, os resultados dificilmente hão-de ocorrer ou, quando ocorrerem, serão pouco sustentáveis.

A gestão dos sistemas de carreiras profissionais, tem sido outro dos maiores problemas da Administração Pública angolana, constituindo um desafio, nem sempre bem conseguido, em razão das disfunções que o sistema apresenta. O aumento de funcionários públicos e a escassez de recursos financeiros são apontados como  principais causas.Se do ponto de vista teórico e legal, a abertura de vaga ocorre com a verificação de um conjunto de eventos, como a extinção da relação jurídico-laboral (exoneração, demissão e aposentação), a suspensão (licença ilimitada) e alguns tipos de mobilidade do funcionário, na prática, a concretização destes actos administrativos não tem garantido o regular funcionamento dos sistemas de carreiras, porquanto, a maior parte das vezes as quotas financeiras disponíveis não são proporcionais às reais necessidades.

A estabilidade da gestão dos sistemas de carreiras não se limita às competências dos gestores de RH, que actuam nesse processo. É fundamental, também, um comprometimento e sensibilidade, de todos os entes da superestrutura e instituições que intervêm na cadeia da preparação e aprovação do Orçamento Geral do Estado. É necessário uma política de planeamento de carreiras, que garanta, pelo menos, a regularidade do acesso ou progressão do pessoal do quadro, com provimento definitivo, que tenham demonstrado mérito no decurso do período legalmente previsto. Sem desmerecimento das necessidades de ingressos, actualmente, praticamente congeladas.

É decepcionante constatar que os planos de carreiras (anuais/plurianuais), elaborados para atender as necessidades das instituições, esbarrem de forma contínua, na falta ou pouca quota financeira. Este estorvo provoca um congestionamento de funcionários expectantes, acumulados por longos períodos, nas mesmas categorias (a maior parte delas de base), resvalando, quase sempre, em desmotivações generalizadas e um interesse desmedido pelo exercício dos cargos de direcção e chefia, para colmatar o mal enquadramento nas carreiras.

Por conseguinte, julgamos que, o reforço da monitoria e avaliação no processo de reforma; a assunção e universalização de uma gestão estratégica dos RH, em detrimento da gestão tradicional, bem como, a estabilização do sistema de carreiras, com progressão meritória e sem obstáculo, dos que colocam a máquina administrativa em funcionamento, seriam passos corajosos, rumo à qualidade e eficiência da Administração Pública. * Jurista e director do Gabinete de Recursos Humanos do MINEA.A sua opinião não engaja o MINEA

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