Opinião

Direitos e oportunidades

Apusindo Nhari

Jornalista

Éramos jovens envolvidos no movimento estudantil e comprometidos com o ideal da igualdade de direitos e de oportunidades. Acreditávamos - e continuamos a acreditar - ser essa a base da sociedade justa e dinâmica, prometida pela Independência.

31/01/2021  Última atualização 09H31
Ficámos por isso chocados ao assistir àquele diálogo, entre o 1º secretário provincial da JMPLA (de que também fazíamos parte) e um companheiro, que só era da Associação Estudantil da Faculdade:

"O camarada devia tratar da sua entrada na Jota” - afirmou de forma peremptória.
"Vou pensar sobre o assunto...” - respondeu o colega, pouco entusiasmado e de forma meio evasiva, como se estivesse em falta.
"Mas olhe que isso é importante para a sua carreira futura! E se quiser chegar a cargos de direcção…” - retorquiu, insinuante...
Não resistimos a protestar contra o que nos pareceu ser um apelo ao oportunismo e também uma ameaça de discriminação na base da filiação partidária. "O camarada 1º Secretário não deveria estar a convencer alguém a entrar para a nossa organização por tais motivações”, balbuciámos nós, algo ingenuamente.

Já era para nós evidente que, pelo contrário, se deveria atrair para a Jota e para o MPLA apenas as pessoas que acreditassem num determinado modelo de sociedade… Atrair os jovens na base da promessa de "vir a ser chefe” haveria de - estávamos a adivinhar… - inundar o nosso futuro partido de pessoas à procura de oportunidades, mas não no sentido da "igualdade de oportunidades” que deveria prevalecer.

O nosso colega nunca se deixou convencer. E chegou a ser, mesmo assim, um profissional bem sucedido e até a assumir posições de liderança no Estado, não tendo sido vítima de discriminação por razões de "confiança partidária”, que tantos afectou.
Promover a igualdade de direitos e de oportunidades entre os angolanos, sem preconceitos de origem, raça, filiação partidária, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; é obrigação do nosso Estado, estabelecida pela alínea h) do artigo 21º da Constituição.

O conteúdo desta alínea deveria ser um dos principais alicerces de uma visão de país e da acção governativa ao seu serviço. O desafio está em, simultaneamente, promover uma cultura que desenvolva um sentido republicano de igualdade e construir as instituições que garantam a sua concretização.
É fácil ver quão distantes estamos desse ideal e como essa distância tem raízes profundas. Algumas, culturais, conseguiram manter-se, e por vezes até ramificar-se, mesmo no período em que dizíamos querer construir o socialismo.

Era improvável, sabemo-lo perfeitamente, que se conseguisse em pouco tempo construir uma sociedade justa e equitativa sobre os alicerces herdados da época colonial, num processo liderado por estruturas que se consolidaram num ambiente de luta militar.
Os primeiros anos da Independência foram marcados por clivagens políticas profundas, e pela absoluta urgência de defender a pátria das invasões militares, não permitindo dar a devida atenção à promoção da igualdade. O acesso aos cartões de abastecimento, às bolsas de estudo, às distribuições de viaturas e outros bens materiais, e até aos serviços de saúde e ensino, foi sendo cada vez mais desigual e regido, frequentemente, por uma lógica elitista e clientelista.

Mas depois de já termos conseguido um ambiente de paz e beneficiado de imensos recursos financeiros para investir no bem estar da população, a verdade é que no país que temos hoje, a discriminação, para muitos, começa logo no momento do registo de nascimento e na obtenção de um documento de identificação. Esta barreira legal e administrativa é a primeira das muitas que essas pessoas têm de enfrentar ao longo da vida, e a que se juntarão a alimentação deficiente, a falta de acesso à escola (ou a uma escola de qualidade) e, mais tarde, a um emprego.

A debilidade das instituições agrava as desigualdades e permite - apesar dos discursos de moralização - que o acesso à terra, à habitação, ao crédito, ao financiamento de estadias para formação no exterior, para referir apenas alguns aspectos, seja exclusividade de uns poucos: os que acumulam património, riqueza e influência, usada também para perpetuar a sua posição, à custa da negação dos direitos à maioria.

Esse enriquecimento acelerado de muito poucos tem assim uma estreita relação com as deficiências do processo político e do funcionamento institucional, mas também com as já referidas raízes culturais, que não podem ser esquecidas. A estigmatização das origens, sociais ou familiares, e certas práticas tradicionais que inibem a emancipação dos jovens e das mulheres - impedindo, por exemplo, às viúvas, em muitas zonas rurais, herdar terra ou bens que partilhavam com os seus ex-esposos, numa clara violação dos seus direitos - são barreiras que marcam a vida de muitos.

A prolongada guerra civil e o arrear das bandeiras ideológicas da utopia são insuficientes para nos ajudar a perceber o que permitimos que acontecesse, em termos de desligamento entre discurso e prática, e que se traduz no esvaziamento e na descredibilização de instituições que deveriam garantir o acesso equitativo aos serviços básicos, aos recursos económicos e à justiça - alicerces indispensáveis para alcançar a igualdade de direitos e de oportunidades.

A sociedade - todos nós portanto - não pode senão assumir uma parte central da responsabilidade pelo estado a que chegámos. E, o que é o mais importante agora: pelo esforço necessário para construirmos uma sociedade mais equitativa e justa.

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