Cultura

Do Ponto de Vista

António Quino

Se há pessoas que nasceram para encarnar a desonestidade, Do Ponto de Vista estaria certamente entre elas. A esse jornalista não se lhe podia inculcar a ideia de honestidade. Essa palavra nem se punha a hipótese de existir no seu léxico.

10/01/2021  Última atualização 12H17
Jornalistas © Fotografia por: DR
A sociedade, induzida e consumista, achava Do Ponto de Vista o ícone do jornalismo. Assim, a lagartixa ia transformando-se num dinossauro. Jornalista algum o suportava. Encheu-se da arrogância de estrela e se fazia notícia da notícia. Sensacionalista sem escrúpulos, seria capaz de fotografar as suas próprias cuecas e publicar como se fossem de Cristiano Ronaldo.
Por falar em Cristiano Ronaldo, Do Ponto de Vista foi fortuitamente acompanhar uma partida de futebol federado, por o Belito da Popa, seu cunhado, ter sido finalmente convocado.

Sentia-se em dívida com o seu cunhado, com quem mantinha uma relação de interesse assumido. Perdia-se de paixões pela irmã mais nova daquele fracassado jogador de futebol. Graças a ele, Do Ponto de Vista conquistou a jovem exageradamente bonita. Além da beleza e elegância, o jornalista nutria uma admiração única pelo passo ágil e gracioso de Anita.

- Meu mano, faz só os baixos. Quero ficar com a tua irmã! Do ponto de vista geral, não vais te arrepender! – pediu Do Ponto de Vista sonhando na altura com os atributos de miss da agora sua mulher.
Do jogador de futebol recebeu a garantia de apoio.
- Minha irmã, esse jornalista tem futuro. Sei que é feio, labiudo, testudo e tudo, mas ele pode ser o teu mundo. Aproveita o cheque, minha ndengue.

Ouvido esse incentivo do irmão, Anita dissimulou caimentos nos galanteios do jornalista e correspondeu a um amor que não sentia. O milagre do matrimónio atracou neles.

Fazer favores ao seu cunhado significava fazer-lhe agrados para a manutenção do seu doce lar.
Naquele dia, não sendo um jogador por aí além, acabava sempre no banco dos suplentes. O jogo todo. De nada valeu o seu cunhado ter pressionado o treinador com truques de escalar a equipa na imprensa dias antes do jogo:

- Seja qual for o esquema ou variante; 4X4X2, 3X5X2, 4X5X1, o Belito da Popa é fundamental para a vitória da sua equipa. O hábil treinador conhece a competência e sabe que, se quiser ganhar, o Belito da Popa deve estar no onze. – induzia o jornalista, entretanto ignorado com bastante sucesso. O seu cunhado não coube no onze.

Ofendido pela petulância do técnico, que obteve uma vitória de 7X0 sob o adversário, Do Ponto de Vista criticou severamente o treinador, tendo-o considerado o elo mais fraco da goleada. Sobre o seu cunhado, não foi anedótico ter escrito:
- "… mesmo não tendo entrado em campo nos 90 minutos de jogo, a classe jornalística que cobriu o jogo considerou-o o melhor jogador em campo, uma apreciação que os adeptos do futebol e da equipa adversária corroboraram comigo em entrevista conduzida no local.

Do ponto de vista de quem assistiu o jogo, compreende-se porquê que um suplente não utilizado foi indicado por muitos como o melhor jogador em campo. A sua atitude e movimentação no banco dinamizou a movimentação e ocupação dos espaços dos seus colegas no jogo, o que dispensou a sua entrada em campo, pois a sua influência foi muito maior fora das quatro linhas.”

Na sua mania de perseguir desgraças, foi surpreendido por um facto num dia antes do Natal. Freelancer de renome, quando coscuvilhou que um indivíduo tinha sido apanhado, pela esposa, com outra mulher em casa, mobilizou a televisão para transmitir em directo o desenlace. Qual vida privada, qual quê.

Já no local, viu uma mulher fora de casa agredindo a porta, pedindo para entrar, mas sem maneiras, recorrendo a uma linguagem vulgar e rasca. Percebeu que era a traída.

Arrastador nato de telespectadores, Do Ponto de Vista transmitia em directo, inflamando nos gestos e palavras, alimentando a violência. Claro que fingia, e muito bem, alguma discordância com a violência. E reportava:
- Do ponto de vista do amor, nada justificaria uma provável violência verbal que estamos a ouvir da mulher traída. Ela está fora de si.

Do ponto de vista moral, não é concebível que se diga tanta barbaridade partindo apenas de um simples adultério. Homens e mulheres traídos há muitos. Caros telespectadores, nem parece que estamos a viver o espírito de Natal. Já sinto o cheiro da violência. Devemos é ter a capacidade de lidar com essa situação sem criar escândalo. Se ela continuar com essa verbosidade, corre o risco de ser respondida na mesma proporção pelo seu esposo, que pode também responder com violência. E isso pode acontecer a qualquer momento.

Por falar em esposo, ele pode ser visto pela nossa câmara, que o flagrou dentro de casa, circulando, provavelmente depois de se deliciar com alguma carne religiosamente condenável. Apreciem o seu vulto dentro de casa! Vejam como o homem se sente encurralado. E isso pode gerar alguma violência, porque animal algum gosta de se sentir encurralado.

Dentro de casa, o vulto masculino movia-se pra lá e pra cá. Uma única porta e uma única janela não permitiam certamente ao adúltero livrar-se da prova do adultério sem dar nas vistas.
Quando finalmente a dona do marido conseguiu arrombar a porta, diga-se com a ajuda do repórter, foi impedida de entrar pelo esposo.

- Vou mostrar a essa tua bandida que marido da outra não é para comer! Me deixa entrar seu cabrão…
Envolveram-se numa luta corpo a corpo bastante renhida. Ela procurando entrar e ele, meio embriagado, impedindo-a.
- Desse ponto de vista, vejam como o amor pode ser violento. Vejam telespectadores como o casal reage a um suposto adultério! Infelizmente, vocês não podem sentir o cheiro de álcool que faz brilhar o esposo flagrado pela esposa. Assistam esse espectáculo só proporcionado pelo vosso amigo e repórter Do Ponto de Vista, assim popularmente alcunhado por vós.

Asseverava ao microfone o repórter muito enérgico. Mas isso não parecia ser suficiente. A atenção dos presentes estava centrada nessa disputa do casal. Por isso, chamou o repórter de imagem para o seguir e entraram a socapa na pequena casa de quarto e sala. Perseguia o furo de entrevistar a prova do adultério. A mulher que teria levado o homem a trair a sua esposa. Estacionaram na umbreira da porta, mas já no seu interior.

Do quarto, os dois viram sair uma linda mulher, com um laço de menina virgem preso no cabelo em desalinho. Sem pinturas. Meio atrapalhada nos gestos, a mulher parecia divertir-se com aquele cenário. Os seus olhos avermelhados e desorbitando-se, brilhavam intensamente, como brilhava o seu corpo coberto por uma bata vermelha menstruação.

Com passo ágil e gracioso, a prova do adultério chegou-se ao Do Ponto de Vista que parecia petrificado pela esplendorosa imagem daquela jovem mulher exageradamente bonita cheirando a pecado. Olhavam-se com o coração. O operador de câmara, ora filmando o repórter, ora a mulher, não perdia um segundo daqueles ângulos imortais. Provavelmente os telespectadores também não piscavam os olhos.

Dentro da casa, Do Ponto de Vista recuperou o fôlego e, com o microfone em punho, em posição de entrevistador, disparou:
- Anita, sua bandida duma figa, afinal é você a prova do adultério??

E Do Ponto de Vista, o repórter que transmitia em directo uma cena de violência gerada por um acto de adultério, partiu ele próprio para a pancadaria física e verbal contra a potencial entrevistada, depois de ter ouvido a afirmação pela boca dela, notoriamente embriagada:

- Do ponto de vista da nossa relação, és um granda corno! – rematou na ocasião a amada esposa do repórter ensopado em despeito e espumando de ódio.
Ali mesmo, em vésperas de Natal, terminou a transmissão em directo da reportagem do repórter Do Ponto de Vista.

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