Opinião

Do que gosto e não gosto

Jacques dos Santos

Escritor

Detesto a mentira mesmo quando mascarada com meias verdades, a falta de carácter dos biltres, a ausência de educação que fere com palavras ou gestos, e o oportunismo do arrivista que faz tudo para ter sucesso, tal como não gosto de gente que, nos meandros podres da política, se movimenta em cima de muros, presa por cordas, em equilíbrios de malabaristas de circo. É difícil saber para que lado caem.

02/05/2021  Última atualização 10H06
Ora se inclinam para a esquerda, ora caminham pela direita. As suas habilidades e estratégias são normalmente despoletadas quando se aproxima o momento do tiro de largada para as campanhas eleitorais. Surgem as habituais guerras de narrativas entre os políticos da situação e os da oposição, com os seus acólitos no desempenho das suas funções, cada vez mais caluniadoras, de autênticos cabos eleitorais.

Bem ou mal estruturadas, muitas das suas explanações são recheadas de lugares-comuns, iguais à chuva de molha-tolos, que cai mas não molha. Com apoiantes de rua que se atiram de peito aberto e outros mais recatados, cobertos por sombras de confortáveis gabinetes, uns e outros juntam a esses actos alguns vícios que detesto, como a intriga e a abominável prática do anonimato. É vergonhoso que haja, nas redes sociais, tantos arautos da verdade e da falsa protecção ao "nosso povo”, sem coragem de se identificar, de se mostrar ao público.

É dos livros que esse tipo de indivíduos só contribuem para o acentuar das crises, quaisquer que sejam as formas de instabilidade que se vivam, provocando e não se incomodando com os caos que em certos momentos instalam nos partidos e se repercutem na vida dos países e das suas populações. A história, ao longo dos anos, mostra-nos que os tempos de crise sanitária como esta que nos envolve são susceptíveis de decisões arbitrárias, de gestos autoritários que, sub-repticiamente, ameaçam a democracia que se embandeira em tempo de campanha.

Apesar de não ter relação directa com a pandemia, não posso deixar de registar um facto ocorrido recentemente entre nós. Um acontecimento que mostrou as nossas fragilidades democráticas e foi ruidosamente condenado pela parte consciente da sociedade, mormente pela classe médica e que, apesar do incompreensível silêncio que se faz a seu redor e ao contrário do que parece, ainda não foi esquecida. Refiro-me à postura da bastonária da Ordem dos Médicos no diferendo que a opôs a um considerável número de colegas de profissão, uma atitude a todos os títulos contrária aos preceitos do Estado democrático e de direito que se perseguem, princípios invocados a todo o instante e ao mais alto nível.

A classe médica foi desclassificada, e o assunto ficou em "águas de bacalhau”, mandou-se a democracia para as urtigas. Não posso gostar desse tipo de atitudes, que acontecem em vários sectores da governação e, por arrasto, da nossa vida pessoal, nem de quem lhes dá força e protecção para as praticarem. Tal como não gosto de transportar botijas de gás incómodas e pesadas para andares sem elevador, como é o caso do prédio onde habito, não acredito e sou contra, não gosto mesmo nada, de pseudo organizações ditas da sociedade civil, intituladas de isentas e democráticas mas cuja origem é obscura e os seus procedimentos e objectivos igualmente pouco claros, que a minha consciência me obriga a classificá-las no âmbito das sociedades secretas.

Desgosta-me quando vou a um banco e não consigo crédito para o meu pequeno negócio apesar das garantias que dou, ou ainda quando não sou atendido por falta de sistema. Porém, entre o que menos gosto, não suporto mesmo, é de gente que não cumprimenta o outro quando sobe de posto. Igualmente da que não sabe assumir a sua condição de pessoa, de cidadão que é de facto, como veio ao mundo, pobre ou rico, que chega a questionar a vontade que houve ou não de o fazer nascer. Branco, preto ou mulato, cafuso ou albino, preto-fulo ou cabrito, que importa como lhe nasceram? Trago este pormenor à liça para dizer que da mesma forma que me repugnam os brancos aqui em Lisboa onde me encontro há algum tempo, quando tratam os mais escuros com desprezo, como se não fossem pessoas, também me enojam os pretos que afirmam em sessões solenes o seu ódio pelos brancos e pardos. Dos mulatos e brancos, não gosto mesmo nada dos que querem, por oportunismo e interesses velados, ser mais pretos que os próprios pretos, tomando em certos momentos atitudes ridículas de aproveitamento. Mesmo sabendo que é impossível mudar a cor da pele das pessoas, e que cada um não tem que se sentir superior ou envergonhar-se de ser quem é. Afinal, do que gosto eu? Simples e claro. O contrário daquilo que não gosto.

Chamem-me saudosista, pouco importa. Vou recordar os tempos em que fumava e detestava cigarros "caricocos”, "francesinhos”ou "hermínios”. Eram todos produzidos em Angola, na nossa terra, onde também era fabricada uma gama enorme de produtos de todo o género e suficientes para o nosso consumo interno, elevando a um nível invejável as exportações e a economia do território. Lembro-me com saudade, não da vida que os portugueses bem de vida viviam, submetendo os angolanos à miséria, mas sobretudo, do bom que eles souberam criar e que poderíamos ter mantido após à conquista da independência.

Não posso gostar de expressões que associem a recordação de símbolos do passado a uma pretensa saudade do colonialismo. Não fica bem pensar assim. Essa lógica de pensamento só pode ser atribuída a gente que não viveu aquele tempo e não pode ter noção como os angolanos que ansiavam pela independência nacional, tal como os que pegaram em armas, pensavam também em como nos seria útil a preservação da máquina montada pelo colono.

A guerra rebentou com muita coisa, é verdade, como é também verdade que muitas economias se desenvolvem em contexto de guerra. Escolas rurais e ensino integrado, agricultura, estradas, aeroportos, poderiam ter sido preservados e transmitida melhor educação e consciência aos donos do país. Constituiu enorme erro não se ter tomado conta, não se ter aproveitado com cuidado o valioso património deixado pelos portugueses. Partir tudo para reconstruir, não resultou nada bem. Foi dos piores erros que cometemos, infelizmente movidos por preconceitos perniciosos e ódios que sendo compreensíveis, só nos prejudicaram desde sempre.

Finalizo dizendo que também não gosto de ouvir que não há remédio para Angola, que não vamos conseguir. Conseguiremos sim, desde que se mudem as mentalidades pensando na reconciliação nacional, o que não é tarefa fácil, que se pense mais no país inteiro e não apenas no património de cada um de nós, o que também e em abono da verdade, é muito difícil.
Esperançado que se consiga vencer esta etapa da Covid-19, insisto na ideia de se apostar rápida e seriamente na educação porque ainda vamos a tempo. Se tivermos respeito por nós próprios, valerá a pena viver a pensar nisso e a merecermo-nos. Com isto despeço-me dos meus leitores. Até domingo, à hora do matabicho, se não chover.

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