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EUA: o dilema do Partido Republicano

Donald Trump, líder do Partido Republicano e ex-Presidente da República, perdeu a última eleição presidencial nos EUA para Joe Biden, candidato do Partido Democrata.

08/02/2021  Última atualização 19H58
Inconformado com a sua derrota eleitoral, Donald Trump(à direita), passou a difundir a tese da “fraude na votação” © Fotografia por: DR
Apesar de ter sido derrotado, Trump conseguiu uma votação expressiva, pois votaram em si mais de 74 milhões de eleitores, que representam cerca de 47 por cento do eleitorado, contra os mais de 81 milhões (cerca de 51 por cento do total) que votaram em Joe Biden. Para fazermos uma ideia mais precisa do peso eleitoral de Donald Trump, convém recordar que, na eleição presidencial de 2008, Barack Obama, o vencedor, alcançou cerca de 69,5 milhões de votos.

A sociedade norte-americana está, assim, profundamente dividida, tendo a mensagem populista, extremista, divisionista e, segundo alguns círculos, racista, de Donald Trump encontrado eco em quase metade do eleitorado dos Estados Unidos da América.

Inconformado com a sua derrota eleitoral, Donald Trump e os seus mais fervorosos sequazes passaram a difundir, nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais, a tese da "fraude eleitoral” e da "eleição roubada”, que foi rejeitada pelos tribunais, por não provada, mas logrou incendiar os ânimos e envenenar o ambiente pós-eleitoral. E assim se chegou aos dramáticos acontecimentos do dia 6 de Janeiro, em que apoiantes armados de Trump invadiram o Capitólio, edifício que alberga o Congresso dos EUA, tentando impedir a confirmação dos resultados eleitorais e a vitória de Joe Biden. O mundo acompanhou, incrédulo, as manifestações violentas protagonizadas pelos mais radicais apoiantes de Trump de que resultaram 5 mortos e alguns feridos.

O ex-Presidente George Bush, do Partido Republicano, ao comentar este episódio, referiu, em comunicado, que "(…) a insurreição dos partidários de Donald Trump, que invadiram o Capitólio, em Washington, é a reminiscência de uma república das bananas. É assim que os resultados eleitorais são contestados numa república das bananas, não na nossa república democrática.”

Os cientistas políticos norte-americanos, professores na Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no seu livro, intitulado "Como Morrem as Democracias”, analisam este fenómeno a que chamam "autogolpe”. Estes dois politólogos escalpelizam os perigos que espreitam as democracias modernas, com o florescimento da onda populista de extrema-direita, propiciada pelo desencanto de crescentes franjas da população com a classe política, por não verem os seus problemas resolvidos, e agravada pelos efeitos do Covid-19. E sustentam que, no autogolpe, a democracia não termina com a ruptura do quadro constitucional, como acontece nas revoluções ou nos golpes militares, mas sim com o enfraquecimento gradual das instituições-chave das demo- cracias, como o poder legislativo, o poder judicial e a imprensa, o que facilita a concentração extraordinária de poderes na pessoa do Presidente da República.

Citando Steven Levistky, "Assistimos a uma variante daquilo que, na América Latina, chamaríamos de autogolpe. É um Presidente mobilizando os seus apoiantes para permanecer no poder ilegalmente. Será um golpe fracassado, mas é uma insurreição para tentar subverter os resultados da eleição. A grande diferença entre este e os autogolpes da América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares. Um Presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente, sem o apoio dos militares, tem muito poucas hipóteses de sucesso.”

Manuel Carvalho, no perspicaz e contundente artigo, que publicou, no dia 7 de Janeiro, no jornal Público, chama a atenção para o facto de que "Basta que uma sociedade avançada de um país com instituições sólidas eleja um louco para que a ordem constitucional, estabilizada ao longo de décadas, fique sob ameaça. Basta que haja um führer ou um duce, a gerir o ódio, o ressentimento e a intolerância para que o respeito pela vontade da maioria, a legitimidade e a soberania das instituições fiquem em causa.”

A invasão sangrenta dos apoiantes de Donald Trump teve e vai continuar a ter profundas repercussões na vida política norte-americana. Competia a Donald Trump, enquanto guardião da Constituição - que jurou defender na tomada de posse - e da estabilidade das instituições, ser o garante do Estado Democrático e de Direito norte-americano, que tem no Congresso uma das instituições mais representativas do sistema político. Constituiu um choque, não só nos EUA como no mundo inteiro, ver o garante das instituições, numa sociedade com um sistema democrático consolidado, transformar-se no seu algoz e coveiro, para a satisfação esquizofrénica do seu desmedido ego.

As consequências desse acto, verdadeiro haraquíri político, para uns, mas de afirmação de um poder forte perante burocratas timoratos e acomodados, para outros, não se fizeram esperar.
Na segunda volta das eleições para o Senado da Geórgia, Estado tradicionalmente republicano e conservador, realizada em Janeiro - depois de, nas eleições de Novembro 2020, nenhum dos candidatos obteve mais de 50 por cento dos votos -, os candidatos democratas, pastor Raphael Warnock e Jon Ossof, derrotaram os candidatos republicanos, senadora Kelly Loeffler e David Perdue, respectivamente, passando a controlar o Senado, apesar do igual número de senadores para os dois partidos, uma vez que a Vice-Presidente, Kamala Harris, tem o voto de desempate.

Por outro lado, as sondagens indicam que o índice de popularidade de Joe Biden (56 por cento), no início do mandato, é superior à popularidade que Trump teve em igual período (46 por cento). Em segundas sondagens, o índice de popularidade de Biden subiu para 63 por cento, índice nunca atingido por Trump, durante o seu mandato; o máximo que Trump obteve, em Março de 2017, foi um índice de aprovação de 52 por cento.

No rescaldo do assalto ao Capitólio, os democratas desencadearam mais um processo de destituição (impeachment) de Donald Trump, apesar de ele já ter cessado funções, como Presidente da República. Claramente, o objectivo é frustrar a velada intenção de Trump de voltar a concorrer, na próxima eleição presidencial, em 2024.

Uma das reacções mais vigorosas ao assalto ao Capitólio foi a dos diplomatas americanos, em funções, no estrangeiro: "Tal como, rotineiramente, denunciamos os líderes estrangeiros que usam a violência e a intimidação para interferir em processos democráticos pacíficos e assim subverter a vontade dos seus eleitores, o pronunciamento público do Departamento (Departamento de Estado) acerca deste episódio também deve mencionar explicitamente o Presidente Trump. É decisivo que comuniquemos ao mundo que, no nosso sistema, ninguém, nem mesmo o Presidente, está acima da lei ou está imune à crítica pública. Tal seria o primeiro passo em ordem a repararmos o dano causado à nossa credibilidade internacional.            (…) Deste modo, enviaríamos uma mensagem forte aos nossos aliados e adversários, de que o Departamento de Estado aplica um standard de integridade e critérios objectivos sobre a democracia, internamente e no estrangeiro.”

Apesar destes desenvolvimentos, claramente adversos para a credibilidade do Partido Republicano e de Donald Trump, seria precipitado considerar Trump um político acabado. Longe disso.
A ilustrar a força que a mensagem populista continua a ter, no seio da sociedade norte-americana e do Partido Republicano, está o facto de apenas uma minoria de senadores ter ousado criticar, abertamente, Trump pelo seu papel na invasão ao Capitólio e parece disposta a votar contra Trump, no processo de impeachment. A estrategista republicana Sarah Longwell advertiu que, ou os republicanos aproveitam esta oportunidade de ouro para se verem livres de Trump, ou correm o risco de este controlar o Partido Republicano na próxima década, afastando, do Partido Republicano, os sectores moderados e independentes da sociedade norte-americana.

Como o referiu à Voz da América Marie Garza, uma incondicional apoiante de Trump, no Texas, "Votaria no Presidente Trump, se ele concorrer, de novo, na eleição de 2024. Os acontecimentos no Capitólio marcam o nascimento de um novo Partido Republicano.” No mesmo sentido, a recentemente eleita, senadora Marjorie Taylor Greene, afirmou estar disposta a propor contra o Presidente Biden, logo no seu primeiro dia em funções, um processo de impeachment com o fundamento de "abuso de poder”. Em sentido inverso, o congressista Jason Crow considerou a senadora Greene uma pessoa "moralmente falida” e as suas opiniões políticas como sendo "depravadas”e "perigosas”.

Ainda como resultado da invasão ao Capitólio, dezenas de altos funcionários, que desempenharam relevantes funções na Administração do Presidente George W. Bush, resolveram abandonar o Partido Republicano, por este já não ser "o partido que serviram”.  Rosario Marin, antigo Treasurer (Ministro das Finanças) de Bush, disse mesmo que "se ele continuar a ser o partido de Trump, muitos não vão voltar!” Este sentimento foi, igualmente, expresso por personalidades como Jimmy Gurlé, ex-subsecretário para o Tesouro e Inteligência Financeira, e Kristopher Purcell, ex-chefe das Comunicações, de Bush, todos eles desiludidos com a postura de muitos congressistas do Partido Republicano, de continuarem a defender a tese da "fraude eleitoral” e de não condenarem, publicamente, os acontecimentos de 6 de Janeiro e o papel que Trump desempenhou, na sua consumação.

Por esta pequena amostra, é fácil prever que uma luta encarniçada vai ter lugar, no seio do Partido Republicano, entre duas alas, nos próximos tempos.
Uma ala, mais moderada, fiel ao ideário republicano dos tempos de Ronald Reagan, de Estado mínimo, mas forte, eficaz e eficiente, defensor da lei e da ordem e da estabilidade das instituições; de crença incondicional no mercado, como modo mais eficiente de alocação de recursos na economia; de neutralidade fiscal, não interferindo o Estado na posição relativa dos grupos económicos e sociais; e de carga fiscal reduzida, para encorajar os detentores de riqueza a investir no país e, assim, promover o crescimento e a prosperidade.

Outra ala, populista, fiel seguidora da mensagem de Trump, que aposta nas vantagens do caudilhismo e nas virtudes de uma liderança forte, explora os sentimentos de medo, desespero e frustração do comum dos americanos; instrumentaliza o desdém pelas minorias e pelos imigrantes, sobretudo negros e muçulmanos; e que prefere a ruptura ao consenso e aposta na confrontação económica com a China e a Europa, forçando os grupos económicos dos EUA, que deslocalizaram as suas empresas para o estrangeiro, a regressarem, como forma de tornar a América great again.

Vai ser interessante seguir este confronto, cujo desfecho determinará o futuro do Partido Republicano e a sua orientação política, bem como o papel dos EUA no mundo. Aguarda-se, com alguma curiosidade, que posicionamento os EUA terão face ao golpe de Estado, que os militares acabam de protagonizar, na República de Mianmar.
Como disse Tucker Carlson, politólogo norte-americano conservador, "no final, todas as campas ficarão desertas, sem ninguém a visitá-las!”

Pretendia ele, em sentido figurado, dizer que, por mais importante que seja o legado político ou económico dos homens, chegará o dia em que este legado é "enterrado”, sendo então substituído por outro, sem que, nessa altura, alguém se lembre de depositar uma coroa de flores na sua "sepultura”.
O futuro próximo dirá se, e quando, esta máxima também se vai aplicar aos ideais populistas de Donald Trump, tal como se aplicou ao consenso que dominou o Partido Conservador, desde os tempos de Ronald Reagan.
* Professor Universitário do MBA Atlântico


 Cresce ameaça de grupos de extrema-direita

O crescimento dos grupos de extremistas e supremacistas brancos nos Estados Unidos já tinha sido detectado há mais de uma década, mas não foi uma prioridade das autoridades, disse à Lusa o investigador e cientista político Juhem Navarro-Rivera.

"A ameaça de grupos de extrema direita e supremacistas brancos tem sido latente há já algum tempo", afirmou o especialista, director de investigação política na Socioanalitica Research e 'fellow' no Institute for Humanist Studies.
"Nos últimos vinte anos, a prioridade em termos de terrorismo nos Estados Unidos foi processar, investigar e reprimir muçulmanos", explicou, considerando que um dos primeiros testes à Administração de Joe Biden será a forma como vai lidar com a extrema direita.

"Certamente ele considera que a supremacia branca é um problema", analisou Navarro-Rivera, lembrando que Biden decidiu candidatar-se contra Donald Trump depois dos eventos de Charlottesville em 2017, quando a manifestação de supremacistas brancos "Unite the Right" resultou numa morte.
"A Polícia federal terá de olhar para estas ameaças não apenas como vindas de fora ou de pessoas de cor, mas olhar mesmo para o que está a acontecer e agir", defendeu.

Navarro-Rivera lembrou que há 12 anos um relatório interno do Departamento de Segurança Interna já avisava para o ressurgimento da extrema-direita e violência associada, mas as conclusões foram alvo de resistência por parte dos conservadores.

Na altura, em 2009, legisladores republicanos exigiram que o Departamento rescindisse o relatório e criticaram a utilização da expressão "extremismo de direita", bem como a conclusão de que veteranos do Exército poderiam ser alvo de recrutamento.

Por ter recebido "enorme resistência" e "exigência de retratação", o trabalho relacionado com o extremismo violento de direita foi posto de parte. "Definitivamente não foi uma prioridade para a Administração Trump", notou o investigador.
Agora, as atenções estarão no Departamento de Justiça e na prossecução dos casos contra os invasores do Capitólio.
"Teremos de ver como a Administração vai lidar com isso e o que vai acontecer com essas pessoas, em particular os que cometeram os actos mais sérios, os que lutaram, os que foram responsáveis pela morte de um Polícia", frisou Navarro-Rivera.

Apesar da insistência de Biden na unificação e na vontade dos republicanos de colocar o incidente para trás das costas, existe a noção de que terá de haver uma prestação de contas.
"A forma como estes casos em particular forem conduzidos será um teste a quão a sério levaremos os supremacistas brancos de extrema direita e a sua violência no futuro", considerou.

Isto será consequente para a estratégia de Biden em relação às tensões raciais no país, que foram agudizadas nos últimos anos. Algumas das primeiras ordens executivas assinadas pelo Presidente foram direccionadas à promoção de equidade racial.
"Ele goza de boa vontade junto de um grande segmento da população", frisou o cientista político, mencionando a intenção de Biden de abordar a Justiça criminal de forma diferente e menos punitiva.

"Estou certo que ele se vai mover nessa direcção, mas não sei se será de forma radical", indicou, acrescentando: "Não me parece que vá apoiar a eliminação da fiança em dinheiro, embora haja algumas indicações que o pode fazer, e haverá um avanço para terminar contratos com prisões com fins lucrativos".

Segundo o investigador, há mudanças a acontecer que se tornaram posições dominantes no Partido Democrata.
Numa perspectiva mais global, há um trabalho sustentado que o país tem de fazer para endereçar questões de racismo que só são abordadas quando alguma coisa rebenta.

"Temos de ter uma conversa continuada sobre o problema e aceitar a história americana, perceber de onde viemos para seguir em frente", disse, considerando que "os protestos por George Floyd foram um sintoma de um problema maior".

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